["Disclaimer":
esta mensagem representa apenas a minha _opinião_ (e a outra opinião
de que outra pessoa ela poderia representar?), que eu gostaria de
defender sem que ninguém se sentisse agredido com isto.]
PessoALL:
Sei que a maior parte das pessoas não vai se dar ao trabalho de ler
esta longa mensagem. Mas ficam registrados os argumentos --- quem
sabe ao menos encontrarão tolerantes e bem dispostos leitores futuros?
Agradeço as respostas enviadas, na lista ou em privado. Vou tentar
não ficar me alongando sobre o assunto em inúmeras réplicas, até
porque não sou tão presunçoso a ponto de imaginar que um quixote
sozinho possa mudar a terminologia de uma área --- supondo que ela já
esteja de fato "bem estabelecida no Brasil", como alguns parecem
acreditar. Acresço portanto apenas algumas breves clarificações sobre
o que eu disse anteriormente, e respondo alguns dos pontos principais
levantados pelos colegas.
(0) Não tenho dúvida de que é mais fácil não fazer nada, permanecer
acomodado ou até mesmo fingir que nunca ouvi falar do assunto do que
realmente rever sistematicamente, de caso pensado, algumas das nossas
práticas linguísticas. Se um caso de sucesso pode ser relatado,
contudo, posso eu próprio dizer que há vários anos abandonei a palavra
"prova" _em Lógica_, e hoje posso afirmar, com orgulho,que o vício
está inteiramente superado! (Como é que diz mesmo a "irmandade do
AA", neste tipo de situação?) ;-)
Quem trabalha em Ciência frequentemente se depara com dificuldades de
cunho linguístico, algumas das quais se desvanecem simplesmente ao
passarmos de uma língua natural para outra. O pessoal do Direito está
sempre se chateando com o fato de que as pessoas em português
confundem "right" e "Law" (ambas palavras que podem ser traduzidas
como "direito"), ou "legal" e "nice" (essa confusão só acontece no
Brasil, onde o primeiro termo é uma gíria conhecida). O pessoal da
Psiquiatria, por outro lado, precisa ter muito cuidado para não
confundir "consciência" (= "conscience") com "consciência" (=
"consciousness"). Por sorte (?) o primeiro termo (conscience!) está
relacionado com um estado de "consciência" (consciousness?) também
conhecido como "vigília". E por aí vai...
É claro que não estou sugerindo que o Português seria o "exemplo
paradigmático de pobreza linguística" (bom, o Português Científico é
de fato razoavelmente pobre, e a culpa disso é em parte nossa, como
tenho apontado). Em Inglês / Francês, por exemplo, também nos faz
falta muitas distinções importantes que para nós estão claras e são
fundamentais, a começar da diferença verbal entre "ser" e "estar"...
A "busca da língua perfeita" animou sempre bastante gente --- e o
Umberto Eco tem um belo livro a respeito.
Tenho, devo dizer, uma tese (hipótese?) de que muita "Má Filosofia"
[mais uma vez, a terminologia que uso aqui é obviamente
idiossincrática] tem como origem justamente algumas instâncias[*] de
pobreza linguística que levam as pessoas pensar que _isto_ é ^aquilo^
simplesmente por que as duas coisas são circunstancialmente chamadas
pelo mesmo nome, em um dado idioma... Mas não se preocupem, não vou
defender esta (hiper/hipo)tese aqui. Não agora. :-)
(1) Sobre a curiosa observação de que "não dá para proibir termos
consagrados pelo uso", esclareço: não propus _proibir_ nada, apenas
apontei o ^equívoco^ da escolha, "consagrada" ou não, de certos
termos, em campos específicos de estudo em que estes termos _precisam_
ser bem escolhidos / esclarecidos.
Em Computação, aliás, esse tipo de equívoco acontece o tempo todo,
justamente graças a uma certa leviandade daqueles que têm nas mãos o
poder de *decidir as coisas*. Foi assim que assistimos nos últimos
anos a introdução do termo "deletar" na língua brasileira, importado
do latim por uma via bastante oblíqua: a língua inglesa. Pior, graças
à Microsoft tivemos que aprender, por exemplo, que "gravar" se diz
"salvar" (to save), no Português 3.1. (A empresa Corel ainda tentou
enfrentar a onda, e insistiu longamente no "gravar", mas não adiantou
muito.) Distanciando-me do estritamente informático, já estou quase
me acostumando, também, com o fato de que o meu GPS quando ligado fica
"adquirindo satélites" (to acquire)... Sem contar aqueles barbarismos
(no sentido linguístico da palavra) dos brasileiros que ficaram muito
tempo fora do país, e que acabam dizendo (em "portanglês") que vão
"aplicar" para uma certa universidade, ou outras coisas do gênero. A
gente vai acrioulando a nossa língua, é natural. Longe de mim lutar
contra um princípio evolutivo ("liberal"?) tão básico.
Por sorte, no caso que aqui nos interessa, os termos "prova" e
"demonstração" estão ambos aí, dando sopa na nossa língua. E um deles
parece _mais adequado_ do que o outro, pelos motivos já apresentados,
para descrever em Bom Português o objeto de estudo principal da
Beweistheorie (que nasceu em Bom Alemão).
Não obstante, vale insistir que os cientistas têm mesmo o poder (e de
certa forma, também o dever) de _decidir coisas_ nas suas áreas, e em
particular eles *deveriam zelar* pelo estabelecimento de uma
^terminologia sã^, nas suas línguas nativas. Devagar e sem forçar ---
e sem vandalizar a Wikipédia, por exemplo. Basta querer! (estando
primeiro convencidos de que se trata de uma tarefa importante, claro)
Ah, e como há pouquíssima gente fazendo o que nós fazemos (Ciência, e
um tipo muito particular de Ciência, e às vezes apenas trabalhando em
uma sub-sub-área muito específica deste tipo particular de Ciência),
bastaria mudar o hábito linguístico de algumas poucas, muito poucas,
"autoridades", e ---zás-trás--- estabeleceríamos juntos uma nova
prática linguística em dois tempos! (Por acreditar neste tipo de
fantasia é que eu acho que vale a pena gastar tempo discutindo estas
coisas aqui.) Que pena que a maior parte dos cientistas, contudo,
prefira se furtar à responsabilidade que têm, queiram ou não, sobre
esta realidade, e se alhear a este tipo tão saudável de debate!
(2) O argumento da eufonia (do tipo "sempre usei a palavra 'prova',
que me soa bem, e não é agora que eu vou conseguir mudar este hábito")
me parece particularmente fraco. Se nos convencermos de que uma
mudança terminológica é bem justificada e bem-vinda, sem dúvida
faremos o _esforço_ necessário, paulatinamente, para estabelecê-la!
Testemunhem por exemplo o esforço que os biólogos evolucionistas tem
que fazer, cotidianamente, para se livrar do hábito linguístico
teleológico ---mais uma má contribuição histórica da
filosofia/teologia--- ao tratar das funções dos órgãos e organismos...
Digo mais. Se eu for usar apenas as palavras que me soam bem, vou
transformar metade da língua brasileira em "xodó", "cangote",
"cafuné", "pipoca" ou "bunda", e torná-la por conseguinte bastante
estrangeira no resto do mundo lusófono. De fato, estas são palavras
que me soam muitíssimo bem, e têm para mim conotações extremamente
positivas. Digo-as com imenso prazer. Infelizmente, elas são quase
sempre inadequadas como substitutas dos termos técnicos que eu preciso
usar na minha prática profissional...
(3) Não sei de onde exatamente teria saído a tal distinção entre
"demonstration" (que segundo vocês significaria "demonstração com
premissas") e "proof" (que significaria "demonstração sem premissas").
Não me parece de forma alguma consolidada na área, certamente não em
inglês... Em particular, não me surpreenderia receber (de novo, pois
de fato já aconteceu comigo) um teorema corrigido por um parecerista
anglófono, e que de maneira tão tipicamente anglófona protestasse
contra um termo latino _tão complicado e desnecessário_ como
"demonstration" e indicasse:
> technically, this is called "proof", my friend!
Em inglês, justamente de forma *oposta* ao que ocorre nas línguas
latinas, e na nossa língua em particular, "demonstration" é usado com
muito mais frequência justamente para a "apresentação de evidências",
por exemplo, em um tribunal... Mais um sinal, aliás, de que o termo
"prova" é uma má escolha, em português, quando o assunto matemática, e
principalmente lógica!
Agora, mesmo que eu não discordasse do que foi dito sobre a prática
linguística da linguagem anglo-matemática (what the h*** do I know
about it?), o argumento que foi apresentado sobre "demonstration"
consistindo em um "demonstração com premissas" ---da qual o caso sem
premissas ("proof") é obviamente um caso particular--- só parece
trazer _reforço_ à proposta de que "Proof Theory" é a teoria que
estuda justamente os primeiros objetos, mais gerais, que vocês mesmos
preferem chamar "demonstrations", e eu proponho chamar
"demonstrações"...
(4) Por fim, insisto que não propus "abandonarmos a palavra prova" ou
o seu uso (seja lá qual seja) em ciências formais. Só o que eu disse
é que no discreto ramo da lógica contemporânea conhecido como *Teoria
das Demonstrações* (que os matemáticos praticantes em geral ignoram
por completo, e da qual poucos sequer ouviram falar, e que certamente
ainda conta com pouquíssimas publicações realmente representativas na
nossa língua) precisamos de termos técnicos precisos e cuidadosamente
projetados/escolhidos, pois as "demonstrações", as proposições
"demonstráveis" e a própria noção de "demonstrabilidade" são seus
_objetos de estudo_! Eu em particular costumo dizer que
"demonstrações" são coisas muito amplas, e ensino meus alunos a
construir "derivações" em "sistemas formais" precisos, com
"formalismos dedutivos" escolhidos a dedo. Sim, e ao menos durante o
semestre em que eles estudam comigo ficam proibidos de usar a palavra
"prova" para outra coisa que não a "avaliação" na qual eles precisam
provar que aprenderam alguma coisa! ];-b Pior ainda: conforme
constatei recentemente, estes mesmos alunos saem das minhas aulas e
levam para casa o hábito de usar esta terminologia, e acham realmente
esquisito falar em "provas matemáticas"... Que estrago!
Não quero passar a impressão errada. O problema geral de *escolher
uma boa terminologia*, obviamente, também aparece em Inglês
Internacional, a atual língua franca da Ciência. Na área da Teoria
das Demonstrações, aprecio bastante, em particular, as escolhas feitas
pelo pessoal da "inferência profunda", que deixam claro por exemplo a
diferença entre _metodologias_, _formalismos_, _sistemas dedutivos_ e
_lógicas_ (
http://alessio.guglielmi.name/res/cos/index.html) É mesmo
uma pena que na realidade que temos hoje ^percamos na tradução^ boa
parte desta sofisticação conceitual, por mera falta de cuidado ou
preguiça mental...
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No começo do século XX, muitos textos chamavam "logística" o que nós
hoje não hesitamos em chamar "lógica". Leiam Couturat, leiam
Poincaré... Quem ainda usaria tal terminologia, hoje em dia?
Não faz muito tempo, na nossa área, as pessoas se digladiaram para
decidir como ficaria o nome em inglês do objeto de estudo da
revolucionária *Mengenlehre*. De Cantor a Von Neumann, a literatura
da época se escrevia majoritariamente em Bom Alemão. Em inglês a
palavra "collection" parecia demasiado geral para traduzir Menge, a
palavra "multiplicidade" parecia inadequada, as palavras "kind" e
"sort" pareciam contaminadas de significado filosófico indesejável, a
história do termo "class" foi bastante complexa e seu uso moderno
parecia não estar muito de acordo com o uso consagrado que a palavra
recebia na literatura escolástica latina, e por algum tempo a palavra
"aggregate" esteve ganhando por uma cabeça de vantagem. É ela que
aparece, por exemplo, na tradução que Jourdain publicou do texto de
Cantor em 1915. Sabemos hoje que "set" foi a terminologia vitoriosa,
por algum motivo ou por outro. Mas aparentemente não se encontram
"sets" no Principia Mathematica de Russell & Whitehead, ou mesmo nos
escritos lógico-históricos de Prior, de 1949, ou no Methods of Logic
de Quine, de 1950 (
http://www.logicmuseum.com/cantor/Classes.htm).
Com a massa crítica relativamente recente de literatura anglófona
sobre o assunto, contudo, a terminologia finalmente foi clarificada e
fixada. (Curiosamente, a palavra "set" parece ter sido originalmente
importada para o inglês a partir de uma palavra francesa/franca
antiga, "sette" --- ou pelo menos li isso em um texto do Roger Jones.)
A nossa massa crítica em português é infelizmente reduzida, e
aparentemente composta de pesquisadores que antes preferem decretar a
"morte" da discussão do que levar seriamente em consideração a opinião
de seu oponente. E certamente há pouca concordância (e por que
deveria haver concordância universal sobre o que quer que seja?). Por
exemplo, o mesmo termo "truth-functional" que alguns chamam
"verofuncional" outros chamam "funcional-veritativo", o mesmo
"soundness" que aparece como "correção" outras vezes aparece como
"corretude", und so weiter. Haverá escolhas melhores do que outras,
nestes casos? Parece que um dia perguntaram ao Gödel, quando ele
tinha acabado de se mudar para os EUA, como ele traduziria o resultado
do seu "Unvollständigkeitssatz", e ele sugeriu "incompleteness". A
força da autoridade somada à força do hábito fez seu estrago, e até
hoje tratamos por "teoremas de incompletude" aqueles teoremas que
demonstram na verdade uma coisa muito mais geral, a saber a
*incompletabilidade* de teorias aritméticas!
É notável como muitas vezes aquilo que se traveste como uma questão de
mera _estipulação_ na verdade esconde antes de mais nada um trabalho
de ^esclarecimento conceitual^ --- e que por isso mesmo já me
pareceria importante. Talvez ainda permaneçamos alguns séculos
discutindo como traduzir _bem_ "Sinn" e "Bedeutung", ou "proof",
talvez por um bom motivo, talvez por pura teimosia. Talvez a
discussão sobre o assunto que levantei aqui morra aqui mesmo. Na
presente troca de mensagens, por exemplo, os especialistas que se
manifestaram em geral se mostraram reticentes ou extremamente
conservadores, e poucos outros participantes da lista de fato se deram
ao trabalho de opinar. Poucos _argumentos_ mais decisivos parecem ter
sido apresentados, ao final, até onde pude perceber.
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O tema geral aqui é o estabelecimento de uma terminologia decente
("decente" em um sentido técnico bastante preciso) *em português*