Borgianas

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Bruno Cobbi

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Mar 13, 2009, 12:49:31 AM3/13/09
to Ler, Pensar, Escrever
Muito provavelmente vcs já conheçam este: um conto do Luis Fernando
Veríssimo, dividido em partes. O "clima" é dado pelo convidado
especial do conto, o ilustríssimo argentino Jorge Luís Borges, criador
do Aleph, do Zahir, da História Universal da Infâmia. A melhor
seqüência é a última (que, a meu ver, realmente pareceria algo feito
por Borges) e só não mando ela apenas em respeito ao autor, que é um
cara bem bacana.

Um abraço.

***********************

Borgianas

Eu estava jogando xadrez com o Jorge Luis Borges, no escuro, para não
lhe dar nenhuma vantagem, quando ouvimos um tropel vindo da rua.

— Escuta — disse Borges. — Zebras!

— Por que zebras? — perguntei. — Devem ser cavalos.

Ele suspirou, como quem desiste. Em seguida me contou que há muitos
anos pensava em escrever uma história assim:

— De repente, na Europa, começam a desaparecer pessoas. Pessoas
humildes, gente do campo, soldados rasos. E desaparecem depois de
acidentes estranhos. São atropeladas por cavalos, ou por bispos, ou
por outras pessoas humildes, ou o mais estranho de tudo, por torres.
Estão caminhando na rua, trabalhando, nas suas casas, e de repente vem
um cavalo e as atropela, ou vem um bispo e as derruba, ou vem uma
torre, não se sabe de onde, e as soterra. E as pessoas desaparecem do
mundo.

Neste instante ouvimos o estouro de um motor vindo da rua.

— Escuta — disse eu, tentando me recuperar. — O Hispano Suiza de uma
diva estrábica!

— Deve ser uma Kombi — disse Borges. E continuou. — Outras coisas
estranhas acontecem. Uma torre do castelo real da Holanda desloca-se
loucamente pelo mapa e choca-se contra uma parede do castelo do rei
Juan Carlos, da Espanha. E os bispos! Causa grande comoção o
comportamento de alguns bispos europeus, que passam a só andar em
diagonal, ameaçadoramente. Ninguém consegue explicar por quê. Nem eles
mesmos.

— Cavalos, bispos em diagonal, torres, reis... — disse eu. — Isso está
me lembrando alguma coisa.

— Exatamente — disse Borges. — Um jogo de xadrez. Um imenso jogo de
xadrez. O tabuleiro é um continente. As peças, vivas, são manipuladas
por forças desconhecidas. Quem está jogando? O Bem contra o Mal?
Cientistas loucos, senhores de forças irresistíveis que alteram a
matéria e o comportamento humano de acordo com a sua loucura? A
megalomania natural de todo jogador de xadrez elevada a uma dimensão
inimaginável? No fim tudo termina com um grande escândalo.

— Como? — perguntei, descobrindo, pelo tato, que Borges liquidara
todos os meus peões.

— Descobrem um bispo na casa da rainha. A Elizabeth da Inglaterra. Um
bispo anglicano, mas mesmo assim... Os tablóides fazem um carnaval. Há
brigas no Parlamento. O grande jogo de xadrez termina, tão
misteriosamente quanto começou. O apocalipse é derrotado pelo senso de
propriedade inglês. Sua vez.

* * *

Mais tarde Jorge Luis Borges me contou que no Antigo Egito já se
falava num Antigo Egito. Por baixo das areias do Antigo Egito existia
outro Egito, e mais outro, no qual se falava em mais três. Mas no
nosso Antigo Egito, no Antigo Egito mais recente, disse Borges,
acreditava-se numa vida depois desta e Borges indicou o tabuleiro com
as duas mãos. Acreditava-se em ainda outro Egito acima do Antigo
Egito. Um Futuro Egito. Para onde iam os mortos, de navio. Os egípcios
acreditavam também que, quando o nome ou a imagem de um morto eram
apagados na Terra, o espírito do morto se apagava no Além. Os
profanadores e os iconoclastas tinham a oportunidade de matar o morto
pela segunda vez. O rei Akhnaton, por exemplo, apagara todas as
referências a seu pai, o rei Amenhotep, das paredes e dos escritos do
reino, apagando-o na Eternidade. Perguntei então a Borges o que
pensava da teoria segundo a qual Akhnaton, o da Tebas das Mil Portas,
no Egito, fora o modelo histórico de Édipo, o da Tebas das Sete Portas
da Grécia, que Freud... Mas Borges ergueu as mãos e me pediu para não
introduzir Freud, o dos 500 alçapões, nesta história, que já se
complicava demais. E disse que só contava a história para mostrar o
poder dos escritores sobre a posteridade e como até os mortos estavam
à mercê dos revisores.

* * *

Outra vez eu estava jogando xadrez com Jorge Luis Borges numa sala de
espelhos, com peças invisíveis num tabuleiro imaginário, quando um
corvo entrou pela janela, pousou numa estante e disse:

— Nunca mais.

— Por favor, chega de citações literárias — disse Borges,
interrompendo sua concentração.

Tínhamos eliminado tudo do xadrez, menos a concentração. Protestei que
não estava fazendo citações literárias.

— Há horas que estou em silêncio.

— Citando entrelinhas — acusou Borges.

— E mesmo — insisti —, não fui eu que falei. Foi um corvo.

— Um corvo? — disse Borges, empinando a cabeça.

— O corvo de Poe.

— Obviamente, não — disse Borges. — Ele falou em português. É o corvo
do tradutor.

Imediatamente Borges começou a contar que traduzira para o espanhol a
poesia de Robal de Almendres, o poeta anão da Catalunha. Robal
escrevia na areia com uma vara e seus seguidores literários
literalmente o seguiam, ao mesmo tempo copiando e apagando os seus
versos do chão com os pés. Desta maneira, Robal jamais revisava os
seus poemas, pois não podia voltar atrás para ver o que tinha escrito.

— Por que não lia o que seus seguidores tinham copiado?

— Porque não confiava neles. Se houvesse um entre eles com pretensão à
originalidade, fatalmente teria alterado a poesia do mestre e não
mereceria confiança. Os outros eram meros copiadores, e quem pode
confiar em copiadores? Assim Robal se considerava o poeta mais inédito
do mundo. Todas as edições das suas obras eram desautorizadas por ele.
Quanto mais o editavam, mais inédito ele ficava. Robal quase ganhou um
Prêmio Nobel, mas desestimulou a academia em Estocolmo com a ameaça de
ir receber o prêmio em Nairóbi. E eu traduzi a sua obra.

— Como você se manteve fiel ao espírito de Robal de Almendres, na
tradução?

— Mudando tudo. Fazendo prosa em vez de poesia. Não traduzindo
fielmente nem uma palavra.

— E onde está essa obra?

— E toda a minha obra — confidenciou Borges. O corvo voou.

* * *

Mais tarde, chegamos à questão da importância da experiência para o
escritor. Eu sustentava que a experiência é importante para um
escritor. Borges mantinha que a experiência só atrapalhava.

— Toda a experiência de vida de que eu necessito está nesta biblioteca
— disse Borges, indicando a sala de espelhos com as mãos.

— Mas nós não estamos numa biblioteca, mestre — observei.

— Eu estou sempre numa biblioteca — disse Borges. Continuou: — E,
mesmo assim, sei como é enfrentar um tigre.

— Mas você alguma vez enfrentou um tigre?

— Nunca. Nunca sequer vi um tigre na minha vida. Mas sei como os seus
olhos faíscam. Sei como é o seu cheiro, e o silêncio macio dos seus
pés no chão do jângal. Tenho 117 maneiras de descrever o seu pêlo e
posso comparar seu focinho com outras 117 coisas, desde a frente de um
Packard até um dos disfarces do Diabo. Sei como é o seu bafo, quente
como o de uma fornalha, no meu rosto, quando ele procura minha jugular
com os dentes.

— Você se baseia no relato de alguém que enfrentou um tigre e escreveu
a respeito?

— Não. Ninguém que enfrentou um tigre jamais deu um bom escritor.

— E o contrário? Um escritor que tenha enfrentado um tigre?

— Houve um — contou Borges. — Aliás, um bom escritor. Um dia ele foi
atacado por um tigre dentro da sua biblioteca, que ficava no centro de
Amsterdã. Nunca foi possível descobrir como o tigre chegou lá.

— O tigre o matou?

— Não. Ele está vivo até hoje.

— Mas então ele, melhor que ninguém, pode descrever o que é enfrentar
um tigre. Porque tem a experiência.

— Não. Você não vê? Para escrever de maneira convincente sobre o tigre
ele teria que voltar à sua biblioteca.
Consultar os seus volumes. Os zoólogos e os caçadores. Os simbolistas.
As enciclopédias. Tudo que já foi escrito sobre o tigre. As
comparações do seu focinho com a frente de um Packard ou com um dos
disfarces do Diabo. E isso ele não pode fazer.

— Por que não?

— Porque tem um tigre na sua biblioteca!
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