Valter A. Rodrigues**
Para Marília, filha querida, por sua bela vida e seus belos sonhos
interrompidos pela alienada e enlouquecida violência de homens
tristes, em memória.
Nos debates contemporâneos sobre a comunicação social e a liberdade de
expressão, parece que todos gostariam de concordar sobre o papel
fundamental dos meios de comunicação de massa na promoção e
sustentação do espaço democrático, na medida em que suas principais
funções seriam tanto a de permitir a regulação do poder público pela
sociedade civil, informando-a sobre os atos do primeiro, como a de
constituir-se como espaço de expressão das entidades representativas
dos vários setores que compõem essa sociedade civil.
..,informando-a sobre os atos do primeiro, como a de constituir-se
como espaço de expressão das entidades representativas dos vários
setores que compõem essa sociedade civil. Superfícies privilegiadas de
visibilidade dos acontecimentos, os meios de comunicação seriam,
assim, a principal, para não dizer a única, tribuna democrática na
qual o debate público entre Estado e sociedade civil poderia se
realizar. O período eleitoral, no qual se dá a escolha do conjunto dos
representantes que ocuparão lugares no governo da polis, seria, dessa
perspectiva, o ponto de convergência privilegiado para a composição
dessa tribuna, por ser o momento em que os grupos sociais, em sua
multiplicidade, poderiam designar, cada um, aqueles que representariam
seus interesses, fazendo-os seus porta-vozes.
Sabemos que tal expectativa, entretanto, constitui-se muito mais como
uma idealidade do que uma efetividade. A totalidade dos grupos
sociais, em sua diversidade, não só não consegue se fazer representar
no campo político e nos meios de comunicação de massa, como sua voz,
quando encontra algum lugar de expressão, surge semiotizada conforme
os interesses dos grupos de poder dominantes no espaço social que,
numa variação relativamente restrita, se compõem e se articulam com os
interesses do poder público. Além disso, no caso específico das
disputas eleitorais, e conforme as regras que regem a distribuição do
tempo na televisão ou no rádio entre os partidos e os candidatos,
representantes de grupos minoritários dificilmente conseguem
visibilidade se não compuserem seus interesses com o de outros
partidos, valendo-se do dispositivo da coligação partidária. A esses
interesses se sobrepõem os do mercado, com seus sedutores mecanismos
de promoção e de agenciamento do cidadão como consumidor de produtos,
de notícias ou de idéias. Nem mesmo a cena política, com seus atores,
escapa, portanto, a essa determinação sedutora. Assim, o candidato,
qualquer que seja o grupo que ele se propõe representar, deve ocupar o
campo da visibilidade midiática como, em primeiro lugar, produto
consumível pelo eleitor-consumidor, adaptando-se às regras e
procedimentos que configuram os dispositivos comunicacionais como
extensões do mercado (isto é, do homem em sua forma-consumidor).
Principalmente quando o foco dos debates é posto sobre a mídia
televisiva e seu poder de designação, destaca-se o privilégio dado por
ela ao entretenimento e à produção de recortes bastante redutivos da
realidade conforme as representações dominantes (que coincidem com os
interesses dos grupos que encontram no espaço público as condições da
própria legitimação), com o concomitante recuo em relação aos temas
mais problemáticos que fariam dela um veículo democrático de educação
e conscientização das massas.
Em seu noticiário, cuja função, como "janela para o mundo", deveria
ser predominantemente informativa (e, como tal, promotora da formação
do cidadão e sua consciência), o recurso à espetacularização do
acontecimento de forma a torná-lo atraente ao telespectador acaba por
se sobrepor ao próprio acontecimento, reduzindo-o à forma predominante
de entretenimento que, argumenta-se, corresponde aos anseios do
público. Seja no tratamento do fato político ou dos fatos do
cotidiano, seja nos produtos voltados exclusivamente para o
entretenimento, um mesmo estilo e um mesmo formato se repetem, fazendo
da televisão uma superfície sobre a qual tudo deve ser filtrado
conforme alguns princípios que sujeitam sua linguagem a uma
equivalência generalizada. Tornar espetacular, impressionante,
arrebatador o que quer que apresente é seu imperativo; sustentar cada
telespectador em um estado de expectante excitação nervosa, na demanda
de mais e mais signos para a construção das próprias referências
identitárias, sua estratégia privilegiada de captura emocional.
Compreende-se por que: na luta concorrencial das redes, a potência de
cada canal se expressa em seu poder de manter no patamar mais alto
possível seu índice de audiência, o que, desde o advento do controle
remoto, se reduz a administrar a volubilidade do telespectador em seu
nomadismo por outros canais. À atividade do agente televisivo deve
corresponder, ponto por ponto, a reatividade do telespectador. Assim,
o agendamento da informação, a eficácia semiotizante da imagem pelo
texto, associados ao privilégio da instantaneidade sobre a duração, da
variedade sobre o aprofundamento, que fazem da mídia televisiva uma
eficiente máquina de expressão, mais que atenderem à demanda de um
sujeito suposto como seu público, o criam e recriam na figura do
telespectador. Nesse sentido, podemos compreender a comunicação
televisiva como um poderoso dispositivo de agenciamento coletivo de
enunciação1 que supera, expressivamente, a função originária de
veiculação e democratização da informação e da cultura que gostaríamos
de atribuir, genericamente, aos meios de comunicação de massa. Assim,
por exemplo, o acesso rápido e diversificado à informação propõe-se ao
telespectador como mais significativo que a própria informação,
atendendo mais à demanda narcísica de "estar informado" que a uma
suposta (e ideal) necessidade de compreensão da realidade complexa que
a informação promoveria. Daí que, na concorrência pelos índices de
audiência, a informação seja tratada como um produto efêmero que deve
se apresentar tão atraente e variado como aqueles que, no mercado,
disputam pelo desejo do consumidor. Nesse contexto de multiplicação e
espetacularização do que quer que seja, não cabe, em campanhas
político-eleitorais, a exposição minimamente compreensível de planos
e programas de governo. Prevalece, para todos os candidatos, o cuidado
com a forma de autopresentação, que é primeira em relação ao conteúdo
de suas propostas.
Esse poder limitante das possíveis aspirações democráticas da
sociedade civil exercido pelos meios de comunicação de massa, claro,
não é exclusivo da mídia televisiva (há uma também poderosa indústria
de jornais, de revistas, de livros, de CDs voltada para a produção
"daquilo que o público deseja"), embora seja para ela que se dirigem
mais insistentemente as inquietações quando a discussão sobre a
unilateralidade da liberdade de expressão e o poder de produção de
concepções hegemônicas de realidade dela tributários está em pauta.
Nos debates sobre a democratização dos meios, principalmente até fins
da década de 802, as rádios livres, a imprensa dita "alternativa", a
produção independente de vídeo-documentários sempre foram destacados
como esforços legítimos de resistência à apropriação monopolista do
discurso social pelas grandes corporações de comunicação e pelos
grupos que elas representam no espaço público midiático. Apropriação
que, no Brasil, a televisão, de todas as mídias, foi a que melhor
conseguiu realizar, o que justifica que a consideremos, em seu atual
formato, como paradigmática de uma concepção bastante problemática,
restrita e não raro cínica de liberdade de expressão que, em nosso
modelo neoliberal - "politicamente correto" - de Estado democrático,
afigura-se, o mais das vezes, como fiel reprodutora - mais
precisamente, como duplo - da dissociação entre os projetos e
iniciativas do Estado (cujos representantes continuam, boa parte
deles, firmemente atrelados aos interesses particulares dos grupos
dominantes) e os interesses coletivos. Esses interesses raramente
encontram expressão em nossa frágil sociedade civil, que ainda mal
ensaia, neste início de novo século, a compreensão do que implica ser
um indivíduo3 em seu exercício de cidadania, com seus direitos e
deveres e, muito menos, com a força da própria voz e da própria ação.
A partir de meados da década de 90, um outro meio de circulação de
informação, a internet, não só passou a concorrer crescentemente com
as mídias tradicionais como determinou alterações na forma como estas
passaram a ser concebidas. Os esforços de maior interatividade com
seus públicos por parte dessas mídias, seguidos da disponibilização de
seus produtos nesse novo meio, expressam um dos efeitos dessa
emergência do espaço virtual da internet. Por sua vez, grupos
minoritários que dificilmente encontram espaços de visibilidade nas
mídias tradicionais constróem seus sites, embora adotando com
freqüência, o que não deixa de ser sintomático e preocupante, formatos
semelhantes aos dos espaços que lhes são, de antemão, negados (e que
eles próprios tendem a negar). Nos debates acadêmicos, assistimos
progressivamente a um recuo do interesse pelas mídias tradicionais a
favor das elucubrações sobre essas novas tecnologias, seus efeitos
sociais e seu potencial econômico e político. Inquietações não
resolvidas em relação às primeiras são agora reinvestidas sobre as
novas possibilidades comunicativas, com apocalípticos e integrados
disputando o privilégio do melhor prognóstico e da indicação de seus
melhores usos.
Numa "terceira via", o sociólogo, filósofo, historiador das ciências e
engenheiro de informática Pierre Lévy passa a destacar-se, desenhando,
a partir da cibercultura, um mundo novo no qual o conhecimento e a
informação seriam a principal riqueza, poderíamos mesmo dizer sua
"moeda corrente". Um mundo que, dispensando as mediações tradicionais
- sendo, nesse sentido, pós-mídia - e construído pela multiplicidade
de vozes que pulsam no campo social, se constituiria, na percepção de
Lévy, como um espaço público efetivamente democrático, na medida em
que, acessível a todo e qualquer um, abriria linhas de fuga ao caráter
verticalizado e hierarquizado do atual espaço público midiático4. Um
mundo que, em vez de organizar-se sob o filtro dos sistemas de
representação das democracias ocidentais, seria pura expressão da
potência humana de pensar, existir e agir, uma potência não-
representativa que se configuraria como uma inteligência coletiva, por
sua vez potencializadora das riquezas humanas de uma forma inédita em
nossa história. Um coletivo, enfim, que, em vez de estar sustentado
pela homogeneidade estatística das representações coletivas, se
constituiria, em sua heterogênese, por uma conectividade mutante,
múltipla, des-hierarquizada e transversalizada, permanentemente aberta
e produtora das próprias singularizações5. A virtualização seria,
dessa perspectiva posta por Lévy (1996), "o movimento do devir-outro
do humano".
A esse desenho de um mundo possível, contrapõe-se o atual, de luta
pelo monopólio da informação e também pelo monopólio da cibercultura
pelas grandes corporações de comunicação, uma luta na qual a
rizomática internet encontra-se sempre ameaçada de ser saturada pelos
mesmos produtos e discursos que hoje são veiculados pelas grandes
mídias tradicionais6. Uma luta que elide o reconhecimento de que a
internet, longe de ser mais uma mídia que se somaria às já existentes,
com os mesmos critérios de visibilidade e de promoção/produção
identitária7, seria delas, em sua potência de agenciamento de uma
inteligência e de um imaginário coletivo que se auto-engendrariam
continuamente, radicalmente diversa, conforme tem nos indicado Lévy.
Considerando essa perspectiva de luta pelo monopólio das redes, que é,
na realidade, a luta pela manutenção do monopólio do discurso social
conforme as representações dominantes do espaço público que configuram
o ethos contemporâneo e corresponde às lutas pelo poder no campo
político, é interessante perguntarmos pelas condições de possibilidade
de constituição de um espaço público efetivamente democrático tal como
o desenha Lévy, cujas idéias, em nosso mundo fundado nos sistemas de
representação, assemelham-se, para aqueles que o colocam sob
suspeitosa inquirição, como tão-somente mais uma ficção política
tardia entre as muitas que têm ocupado os utopistas desde o momento em
que o Estado moderno estabeleceu-se em sua busca de um tipo-ideal para
a gestão das populações.
Para reconhecermos essas condições, entretanto, é necessário que
escapemos das armadilhas do modelo democrático forjado pelo Estado
moderno, centrado na representação e na separação entre, de um lado,
os modos de constituição da forma-homem8, da sociedade e do Estado e,
de outro, a produção. Se desejamos ler as formulações de Lévy em sua
positividade de maneira minimamente compreensível é necessário, por
exemplo, que não confundamos "forças produtivas" (como potência) com
"relações de produção" (como poder), pois o que há entre elas, de há
muito, é um claro e permanente antagonismo9; ou o desmanchamento de
fronteiras como maior conectividade entre os homens com sua redução
perversa e totalitária ao princípio único, semiotizante de todo o
planeta, da globalização, tão confortável ao pensamento neoliberal. O
que Lévy nos aponta, seja com seu elogio da técnica como hominizante
(produtora da forma-homem), seja com sua positivação do livre mercado
como expressão de um coletivo (um multitudo) organizado a partir de
sua potência produtiva e não conforme as relações de produção, é, como
disse Negri a respeito de Espinosa, uma "possibilidade ideal de
revolucionamento do mundo"10. Trata-se, em Lévy, ao pensar a técnica
como hominizante, de um pensamento da imanência que se constitui como
um novo paradigma ético, estético e político, de forma que as
condições de possibilidade de constituição desse novo espaço público
devem ser buscadas, para além do campo estrito da comunicação, no
próprio campo da realidade em que se dá a existência humana em suas
dimensões éticas, estéticas e políticas, para, só depois, perguntarmos
de que maneira elas seriam componíveis (ou não) com os atuais
procedimentos comunicacionais sustentados pelos sistemas de
representação.
Foi trabalhando a partir desses paradigmas que, em A conexão
planetária (2001), Pierre Lévy surpreendeu seus leitores com uma
veemente defesa do livre mercado, no qual o próprio consumo seria
produtor (de realidade), chegando, em dado momento, a afirmar que não
há motivo para acreditarmos que, como atividade, a especulação
financeira seja diversa da especulação filosófica. Nesse livro Lévy
afasta-se da linguagem filosófica presente em suas outras obras,
recorrendo a expressões bastante comuns e a termos de há muito
banalizados, como amor e harmonia universal. Para os que pensam
hierárquica e piramidalmente os saberes e os poderes, ou que concebem
a tecnologia como uma substituta destrutiva do trabalho humano, a
livre atividade econômica como desagregadora da ação política, o
virtual como simulacro do real, este seu último livro soa ora como uma
provocação insuportável, ora como um descartável delírio profético-
utópico. Estaria o autor tão fascinado pelos desenhos que realizou em
seus outros livros, teria levado a tal extremo suas especulações sobre
o ciberespaço a ponto de entregar-se a exercícios triunfalistas,
positivistas e futurológicos de tom messiânico? Se seus críticos
aguardavam um bom momento para o ataque, Lévy aparentemente lhes
oferece graciosamente as armas. Entretanto, necessário frisar, só
aparentemente, como veremos na seqüência.
Poder (POTESTAS)
Nas considerações feitas até o momento sobre a mídia televisiva e as
representações políticas, poder e potência, quando surgiram, foram
trabalhados deliberadamente como indissociáveis, pois é assim que eles
são representados pelo senso comum (mas não só), justificando que se
tome como verdadeira a afirmação de que o que todos desejamos, ou
devemos desejar, é o poder, quaisquer que sejam nossas escolhas
políticas, nossa posição social ou nossas condições de existência, por
ser através dele que efetuamos nossa potência. Dos grandes - o poder
das elites, o poder do Estado, o poder da mídia, o poder(?) das massas
- aos pequenos poderes - dos pais sobre os filhos, do patrão sobre o
empregado, do professor sobre o aluno, do homem sobre a mulher e as
crianças, da "pessoa" sobre o indivíduo -, assim como o poder dizer, o
poder persuadir, o poder seduzir, o poder fazer, o poder consumir, é
sempre em torno dessas duas instâncias, poder e potência, que, segundo
essa ótica de indissociabilidade e subordinação, são travadas todas as
lutas em que nos envolvemos em nossas trajetórias de vida. Nas
disputas por cargos políticos, por exemplo, é isso que não cessa de
ser reiterado e confirmado por cada candidato em suas estratégias para
conquistar o voto do eleitor: conheceremos toda sua potência de
realização tão logo o autorizemos no lugar de poder que ele reivindica
ocupar. Uma potência, importante frisar, que é afirmada como sendo
dele enquanto personagem, mas não, salvo raramente, do coletivo que
faria dele o legítimo representante de suas aspirações e interesses,
autorizando-o, pelo voto, a agir em seu nome11.
Nas considerações feitas até o momento sobre a mídia televisiva e as
representações políticas, poder e potência, quando surgiram, foram
trabalhados deliberadamente como indissociáveis, pois é assim que eles
são representados pelo senso comum (mas não só), justificando que se
tome como verdadeira a afirmação de que o que todos desejamos, ou
devemos desejar, é o poder, quaisquer que sejam nossas escolhas
políticas, nossa posição social ou nossas condições de existência, por
ser através dele que efetuamos nossa potência. Dos grandes - o poder
das elites, o poder do Estado, o poder da mídia, o poder(?) das massas
- aos pequenos poderes - dos pais sobre os filhos, do patrão sobre o
empregado, do professor sobre o aluno, do homem sobre a mulher e as
crianças, da "pessoa" sobre o indivíduo -, assim como o poder dizer, o
poder persuadir, o poder seduzir, o poder fazer, o poder consumir, é
sempre em torno dessas duas instâncias, poder e potência, que, segundo
essa ótica de indissociabilidade e subordinação, são travadas todas as
lutas em que nos envolvemos em nossas trajetórias de vida. Nas
disputas por cargos políticos, por exemplo, é isso que não cessa de
ser reiterado e confirmado por cada candidato em suas estratégias para
conquistar o voto do eleitor: conheceremos toda sua potência de
realização tão logo o autorizemos no lugar de poder que ele reivindica
ocupar. Uma potência, importante frisar, que é afirmada como sendo
dele enquanto personagem, mas não, salvo raramente, do coletivo que
faria dele o legítimo representante de suas aspirações e interesses,
autorizando-o, pelo voto, a agir em seu nome11.
Ainda sob tal concepção, é mais livre aquele que detém algum poder do
que aquele que não tem poder nenhum. Não queremos ser governados, mas
sim governar, já nos indicava Espinosa, e se nos sujeitamos a
determinadas ordens, o fazemos sob o efeito de múltiplos dispositivos
institucionais, políticos e jurídicos que, mais fortes do que nós, nos
inscrevem sob as leis de um país, de uma instituição, de uma
organização, de uma religião, as quais somos incitados a aceitar para
que possamos garantir algumas prerrogativas que nos permitam exercer,
ainda que relativamente, nossa liberdade e nossa potência. Sendo essa
uma decisão racional, é mais livre aquele que faz racionalmente e pela
própria vontade suas escolhas do que um outro que as faz
emocionalmente. Tal é a idéia do livre-arbítrio: dados determinados
caminhos, somos livres para escolher, pela via raciocinante, aquele
que nos é mais conveniente, isto é, aquele que produzirá nosso Bem.
A obediência àquilo que nos vem do exterior, entretanto, é menos uma
escolha que se faz livremente, e mais uma determinação à qual estamos
obrigados a ceder, por serem as forças externas mais fortes que nós,
de forma que possamos ter os meios para perseverar na existência, isto
é, exercer nossa potência de agir e de pensar. Por estarmos obrigados
a ela, com ou sem nosso consentimento, sempre que possível, procuramos
escapar aos seus limites. Transgredir uma lei ou uma ordem é uma
forma, mesmo que muitas vezes canhestra ou deletéria, de exercitar a
liberdade; afinal, não há lei que não contenha em si a possibilidade
de sua transgressão. Por essa razão, uma das tarefas dos dispositivos
de poder é tanto assegurar a obediência como criar algumas linhas de
fuga a suas forças. Sob determinados filtros que permitam a
sustentação de seu controle, oferecem-se algumas liberdades de forma a
evitar a violência da transgressão disruptiva - que desestabilizaria
as relações de força que sustentam o poder -, liberdades essas que
tornam não só a obediência suportável como nos levam a desejar o poder
que nos sujeita.
Para o trabalhador, por exemplo, submetido à rotina cotidiana das
mesmas e repetitivas atividades, recebendo por elas quase sempre
baixos salários, são oferecidos prêmios ou promoções pelo bom
desempenho, além de períodos de descanso, lazer e entretenimento que
se intercalam com o tempo dedicado ao trabalho. Que esses períodos de
repouso sejam um momento de descompromisso, que sejam ocupados de
forma prazerosa, que sirvam para a renovação das forças que serão
reinvestidas, ao retornar, na lide do trabalho, essas são a
expectativa e a recomendação sobre o bom uso do tempo livre. É para
esse "bom uso" que uma poderosa indústria de entretenimento e lazer é
colocada à sua disposição.
Além disso, se somos levados à obediência em relação às nossas
atividades produtivas ou às regras da comunidade à qual pertencemos,
sempre nos resta, dependendo de quanto ganhamos com essas nossas
atividades, a liberdade de dispormos de parte desse ganho no consumo
de bens, objetos e serviços. Se há, em nossa sociedade, uma liberdade
comum a todos, cuja única restrição está na quantidade de moeda que
cada um dispõe para gastar, é a do consumo12. Inevitavelmente, em um
mundo subsumido como mercado, é no consumo que encontramos, todos, uma
das ocasiões privilegiadas de expressarmos nossa potência, por ser o
poder de compra que nos coloca, em progressão ascendente, na via da
realização das felicidades que nos são ofertadas para a expressão de
nossa potência e liberdade de agir e existir enquanto fruidores
daquilo que o mundo-mercado nos oferece. No lugar das necessidades, os
desejos, esse é o irresistível artifício que nos captura e ao qual
aderimos sem resistência.
Existem, paralelas à do consumo, sem deixar de estar a ele ligadas,
outras felicidades e liberdades que podemos realizar. Na vida privada,
temos, a princípio, a liberdade de amar e escolher livremente nossos
parceiros amorosos e sexuais. Podemos mesmo dizer que, de todas as
potências humanas, poucas são mais valorizadas do que a sexual. Não à
toa, é para as inquietações sobre a potência e o bom desempenho sexual
que, de acordo com os discursos correntes, confluem todas as demais,
mesmo quando falamos do poder político, do poder econômico, do poder
de domínio, do poder de produzir ou de consumir. Se nada é mais triste
para um homem de poder que se descobrir impotente, por ser aí que ele
encontra, do poder, sua vacuidade, aquele que não detém nenhum poder
busca realizar sua potência quase toda nas alegrias de sua vida
sexual. Se ele a tem minada ou restringida, sua infelicidade torna-se
insuportável, sua auto-estima se anula e amargura sua vida a ponto de
marcá-lo como indelevelmente fracassado. Para atendê-lo, uma também
poderosa indústria voltada para as alegrias e prazeres do sexo, que se
alternam com as representações da potência indissociada e subordinada
ao poder, é posta à disposição de seu imaginário, permitindo-lhe
realizar, ainda que vicariamente, o que fica subtraído à experiência
vivida. Em suas imagens, reafirma-se que é do prestígio que temos como
seres de poder que emana nossa atratividade e nossa potência,
assegurando a cada um a certeza de si necessária para propor-se (ou
impor-se) aos demais como objeto de amor e de admiração. Na moderna
sociedade midiática, centrada na visibilização das figuras de
prestígio (que freqüentemente centram sua realização no sexual), é
isso que não cessa de ser reiterado cotidianamente. A disputa pela
presença na mídia, em particular a televisiva, que é estimulada pelos
programas populares de auditório e pelos reality shows, nos indica o
quanto celebridades e anônimos os mais diversos procuram "contaminar-
se" do poder da mídia como estratégia de auto-potencialização e
realização. Não à toa, também nossos políticos disputam espaço nesses
programas (como na festejada e profusamente divulgada participação de
alguns reelegíveis no Show do Milhão de Sílvio Santos, no final de
2001, que resultou num verdadeiro ensaio de prévia eleitoral).
Tais são as liberdades e matérias de expressão com que contamos para
nos situarmos enquanto participantes do espaço público midiático,
sendo com elas que se produzem os ideais de bem-estar que condicionam
nossa existência. Se estar presente na mídia corresponde ainda ao
anseio de fazer-se ouvir, de dar materialidade à própria voz,
rapidamente se apreende que a própria voz dificilmente encontrará
espaço no conjunto das outras vozes se não se ocupar minimamente esse
lugar de prestígio como pessoa que é, a cada um, antecipado. O que
temos aqui reafirmada é ainda e novamente a indissociabilidade e
subordinação poder-potência, construtora de uma liberdade que se
mostra, a um olhar mais acurado, bastante restrita. Provavelmente por
essa razão, as lutas das minorias pela expressão e legitimação de suas
vozes, que até os anos 80 mostravam-se politicamente intensas,
recuaram expressivamente a partir dos anos 90, momento em que, aos
discursos sobre a democrática convivência da multiplicidade de vozes
no mundo sem fronteiras da globalização, sobrepôs-se a uniformidade
politicamente correta dos discursos das belas almas sobre a aceitação
das diferenças por redução ao idêntico. Poderíamos pensar que parte
das forças investidas nas lutas pela expressão política e cultural, ao
serem desintensificadas e descodificadas13 por esses discursos, tenham
revertido para a mais imediata, destrutiva e crescente violência que
se presentifica atualmente no espaço urbano. Para alimentá-las, não
faltam "pegadinhas", "videocacetadas" e inúteis competições promovidas
pelos reality shows televisivos. Além, claro, das imagens de
corrupção, quase sempre impune, que aprendemos a reconhecer associadas
à classe política e a alguns representantes das elites econômicas.
Como podemos ver, o poder é, assim, em todos os sentidos, parte de um
mundo representativo, sendo sua espetacularização a forma privilegiada
de reconhecimento da potência em sua exterioridade. Uma
espetacularização que faz dele uma alegria e um prazer, por menor que
seja o poder de que um personagem qualquer esteja investido14.
Potência (POTENTIA)
Foram destacadas, até o momento, as alegrias disponíveis àqueles que
são, de uma maneira ou outra, governados, alegrias essas bastante
privilegiadas pela mídia televisiva. A elas somam-se e se sobrepõem as
alegrias das celebridades-pessoas e seu poder, seja ele político,
econômico, artístico... Entretanto, em seu Tratado teológico-político,
indica-nos Deleuze (www.webdeleuze.com15), Espinosa coloca-nos um
problema ético e político fundamental: por que razão aquele que tem o
poder, em qualquer domínio, tem, ao mesmo tempo, a necessidade de
afetar de tristeza aqueles que mantém sob suas ordens? Para o
exercício do poder, nos diz Espinosa, a tristeza é necessária, pois
para governar, para sujeitar aquele que se deseja ter sob domínio, é
necessário inspirar nele paixões tristes.
Para compreendermos a radicalidade dessa afirmação do filósofo, é
necessário que tomemos tristeza não em seu sentido vago, mas com o
rigor que ele confere a esse afeto. Para Espinosa, a tristeza é o
afeto que envolve a diminuição da potência de atuar e da força de
existir de um corpo, e a alegria o que envolve seu aumento. Ora, a
essência do homem é sua potência de agir, pensar e existir em ato,
pois é assim que ele persevera em sua existência. Uma essência que não
remete ao que se é, mas ao que se pode. Assim, contrariamente ao que
foi dito até o momento, a efetuação de sua potência é tudo o que pode
um corpo, sendo o afeto, em sua variação contínua, essa efetuação,
tristeza quando a potência é diminuída, alegria quando é aumentada.
Espinosa desfaz, com isso, o argumento de que é o poder o que todos
queremos ou devemos querer, por ser através dele que efetuaríamos
nossa potência, pois, contrariamente, o poder é sempre de efetuação da
potência, não sua condição. Assim, afirmar que o poder é condição da
potência, de sua perspectiva, seria uma grande bobagem, o que não
impede que os homens se engalfinhem em uma luta incessante e feroz
pelo poder, a um ponto tal que não saberiam existir se não tivessem a
quem ou a que comandar e fazer obedecer. É nesse sentido que o poder
faz parte de um mundo representativo, ao qual pertence também o mundo
dos signos e da linguagem, com sua força imperativa de ordem, de
mandato, de agenciamento do fazer-fazer. A potência, ao contrário, não
é representativa, não é vontade de algo, é tão somente o que pode um
corpo, pertencendo assim às relações, e se expressa, diminuída ou
aumentada, nos afetos que a efetuam no encontro de corpos (humanos e
não-humanos, já que todas as coisas que existem são corpos, cada uma
com sua própria potência). Assim, quando Espinosa fala de potência e
de afetos, isto é, de aumento ou diminuição de potência, ou quando
Nietzsche fala de vontade de potência, o que ambos têm em mente não
diz respeito à conquista de um poder qualquer. Eles diriam que o único
poder é, afinal, a potência. Diz Deleuze: "A saber: aumentar sua
potência é precisamente compor relações tais que a coisa e eu, que
compomos relações, só somos duas sub-individualidades de um novo
indivíduo formidável"16. Dessa forma, quando dois corpos se compõem em
suas relações um com o outro, há aumento de potência de ambos, quando
um corpo descompõe o outro em suas relações, há diminuição de potência
deste último. Compreende-se, assim, porque aquele que detém o poder
precisa da tristeza do outro, isto é, da diminuição de sua potência,
para compor suas próprias relações.
Se compreendermos isso, compreenderemos também a razão da
transformação da vida e dos acontecimentos do mundo em espetáculo
investida pela mídia televisiva, principal acesso às riquezas e
acontecimentos do mundo de boa parte da população: perante homens
tristes, que têm suas relações descompostas no jogo de forças, todos
os esforços para arrebatá-los de sua tristeza, de emocioná-los
propondo a eles alegrias substitutivas, essas alegrias do outro que se
empenham em animá-lo, jamais serão vãos.
Mais uma observação, antes de caminharmos para uma finalização
provisória deste texto. Espinosa chama de amor17 a alegria das
relações que se compõem, e de ódio a tristeza das relações que não se
compõem. O ódio é a alegria do homem triste, uma alegria indireta,
substitutiva, que se alegra da descomposição das relações de todo e
qualquer outro corpo que diminua, ou possa vir a diminuir, real ou
imaginariamente, sua potência18.
A alegria substitutiva extraída da tristeza é sempre ressentida, não
sendo capaz de sincera admiração pelas realizações de um outro e,
muito menos, de solidariedade. Esse é o afeto de toda situação de
dominação, de toda concorrência desmedida, sendo seu principal vetor a
violência de uns contra os outros. Daí a conclusão de Espinosa de que
devemos temer os homens tristes, pois são muito perigosos. São eles
que, impotentes, precisam dos poderes e de sua hierarquia para efetuar
sua potência. Para essa efetuação, todos os meios lhes são válidos.
Para não concluir
Nosso mundo associa ter informação, deter conhecimento, com poder. No
meio comunicacional, principalmente, poder de fogo da mídia é o poder
de conseguir e dar a informação em primeiro lugar, da forma mais
mobilizadora e contundente possível. Nos embates políticos, a
"verdade" a ser dita por uns é sempre a temível ameaça destrutiva de
exposição do "segredo" de outros. Nas organizações, é construído todo
um sistema de segurança e de vigilância em torno do saber e da
informação, garantia sempre preservada de toda aspiração monopolista.
Na academia, o saber muitas vezes torna-se propriedade de alguns,
porque ele hierarquiza e dá legitimidade àquele que acumula títulos,
autorizando-o até mesmo a desqualificar o que não porta título algum,
mesmo quando o conhecimento que este expõe autorize seu
reconhecimento. Raros são os que, à revelia dos lugares ocupados,
compartilham seu conhecimento, que compõem com o outro suas relações.
Com isso, o mais das vezes, a identidade poder e saber acaba por
conferir ao conhecimento a mesma forma estéril do orgulho narcísico
daquele que o detém.
Entretanto, o conhecimento, o verdadeiro conhecimento, insiste
Espinosa, faz parte das relações, pertence ao mundo afetivo dos
encontros de corpos (humanos e não-humanos), e não a esse mundo das
representações que, ainda que lhe seja necessário, não constitui sua
condição19. Por essa razão, se pudéssemos conhecer livremente em
nossos encontros, diz Deleuze, não precisaríamos dos signos ou da
transcendência da idéia sobre o corpo e suas afetações e, muito menos,
da hierarquia das representações.
Compreende-se, portanto, o "risco" de uma inteligência coletiva, de
uma multitudo organizada a partir de sua potência produtiva, em um
amoroso compartilhamento do que cada um sabe e pode ensinar e aprender
com o outro, como sonha Lévy com o ciberespaço e como pensou Espinosa
com sua filosofia da liberdade na efervescente e selvagem Holanda do
século XVII. Num mundo como esse, des-hierarquizado e virtualizado
pela técnica - no qual o desejo não seria uma falta a realizar, mas
pura força de produção de real social (cf. Rolnik, 1989); o
acontecimento, não um espetáculo a noticiar, mas a experiência de um
mundo vivível; a ação política, não o exercício de alguns, mas sim
forma privilegiada de participação de todos na vida da cidade -, o
poder e suas lutas não passariam de um falso problema, um problema que
ocuparia somente os homens tristes.
Ao pensarmos sobre mídia e política hoje, o primeiro impasse que se
apresenta é, portanto, o do próprio sistema de representação e suas
formas de legitimação do poder.
Referências Bibliográficas
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capturado em 05.01.2002.
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consciência. São Paulo, Editora 34, 2001.
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Prof. José G. Veiga, FCSCL, 2001 (Dissertação de Mestrado).
ROLNIK, Suely. Toxicômanos da identidade: subjetividade em tempo de
globalização. In LINS, Daniel (org.) Cultura e subjetividade; saberes
nômades. Campinas, Papirus, 1997. p. 19-24.
________. Cartografia sentimental; transformações contemporâneas do
desejo. São Paulo, Estação Liberdade, 1989.
www.ddic.com.br, criado em 1997; captura mais recente em 05.01.2002.
Notas
*Texto originalmente publicado em Comunicação na pólis: ensaios sobre
mídia e política, coletânea organizada por Clóvis de Barros Filho
(Petrópolis, Vozes, 2002, 364 p.). p. 209-226.
** Psicanalista e analista institucional; professor de Psicologia e
pesquisador do Centro Interdisciplinar de Pesquisa da Faculdade Cásper
Líbero; editor da revista Líbero, do Programa de Pós-Graduação da FCL;
tem vários ensaios publicados em revistas acadêmicas e de divulgação,
entre eles: Sade e a Revolução (Gaia, São Paulo, set./dez. 1989, Ano
I, no. 2, São Paulo, USP/Brasiliense, p. 85-94); O toque da mídia:
subjetividade no espaço público mediático (comunicação&política, Ano
XIII, no. 22/25, Cbela, 1993, p. 47-56); América: no man's land, no
land's man: composição em 15 movimentos e 1 ethos (Cadernos de Pós-
Graduação, Instituto de Artes da Unicamp, ano 4, v. 4, no. 2, 2000, p.
73-82).
1 O conceito de "agenciamento coletivo de enunciação" foi proposto por
Félix Guattari e é amplamente discutido em Micropolítica; cartografias
do desejo (Guattari & Rolnik, 1986). Resumidamente, podemos dizer que
a subjetividade, longe de ser uma instância psíquica relativamente
estável, embora susceptível a mudanças no contato com o meio, é
essencialmente produzida e modelada por agenciamentos de enunciação
que implicam o funcionamento de máquinas de expressão o mais diversas
(extrapessoais, como os sistemas tecnológicos, econômicos, icônicos,
de mídia....; infrapessoais, como os sistemas de percepção, de
sensibilidade, de afeto, de desejo, de representação, de
imagens...)
2 O seminário Rede imagínária; televisão e democracia, realizado pela
Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo e publicado em 1991 pela
Companhia das Letras (organização de Adauto Novaes), apresenta, em
seus 29 textos, um amplo painel desses debates. Ver, especificamente,
para o enfoque aqui proposto, o texto de Fábio Konder Comparato, É
possível democratizar a televisão?, p. 300-308.
3 A noção de indivíduo nasce com a de cidadão, sendo, assim, um
conceito político, antes que psicológico. Por essa razão, como
observou Laymert Garcia dos Santos (Guattari & Rolnik, 1986: 57-60), é
difícil pensarmos os meios de comunicação no Brasil com as mesmas
categorias utilizadas nos países europeus ou nos EUA. "Nos Estados
Unidos ou na Europa, o ponto de partida é uma pergunta dupla: por um
lado, o que os meios produzem para a massa de indivíduos
despersonalizados, anônimos, intercambiáveis, descodificados, essa
categoria denominada 'trabalhador livre'; por outro lado, o que o
trabalhador livre produz a partir dessa produção, ou seja, o que
fabrica com os enunciados e as imagens que o bombardeiam o tempo todo.
O terreno em que a reflexão se move sempre coloca como requisito
básico o trabalhador livre, que se constitui num dos dois elementos
fundamentais do capitalismo - o outro sendo, evidentemente, o
capital." Ora, continua Laymert, "para que os meios possam atuar, é
necessário que exista o trabalhador livre, esse indivíduo
despersonalizado, esse indivíduo que, do ponto de vista do sistema
capitalista, só conta como força de trabalho, embora diga o tempo
todo: 'eu, eu, eu'. (...) Os meios constituem uma espécie de muro de
linguagem que propõe ininterruptamente modelos de imagens nas quais o
receptor possa se conformar - imagens de unidade, imagens de
racionalidade, imagens de legitimidade, imagens de justiça, imagens de
beleza, imagens de cientificidade. Os meios de comunicação falam pelos
e para os indivíduos." No Brasil, a situação é outra, pois, aqui, ser
indivíduo não significa ter os mesmos direitos e deveres que os
demais, mas sim ser um zé ninguém. Aqui, os meios, principalmente a
televisão, falam do mundo das pessoas, das superpessoas, funcionando
conforme o sistema hierárquico e autoritário das relações pessoais
(prestígio, respeito, favor, apadrinhamento...) e marcando a
superioridade da pessoa como uma qualidade dos que, em última
instância, poderiam até mesmo se colocar acima da lei (como na
conhecida frase destacada pelo antropólogo Roberto Da Matta como
caracteristicamente brasileira: "Você sabe com quem está falando?").
Daí que, o indivíduo, quando aparece na mídia, o faça comumente
através do registro policial, momento em que se personaliza pela
violência (seja como agressor ou vítima), ou como figura de prestígio
no carnaval, no futebol, na indústria de entretenimento... O que o
telespectador mais busca, nesse contexto, é a estratégia adequada,
ainda que só realizável imaginariamente, para tornar-se também pessoa
à maneira dos que assim se fazem reconhecer, sendo dessa disposição
que deriva parte da potência modelizadora da televisão brasileira,
assim como sua acintosa espetacularização das desigualdades sociais
como escândalo indesejável reiterado como sem solução. Quando se
discute a relação entre televisão e violência no Brasil, essa redução
incondicional de todo o imaginário social à figura da pessoa e suas
estratégias de sucesso deve ser levada em conta na compreensão do
muitas vezes espúrio e anti-social papel da televisão na sustentação e
incitação do atual quadro social ultraviolento. O respeito aos
direitos e limites do outro definitivamente não faz parte de seu
espetáculo.
4 Quando discutimos o espaço público, o fazemos, da ágora grega à
sociedade burguesa, referindo-nos aos setores mais diferenciados e
emergentes da sociedade, àqueles, enfim, que têm voz e podem se
entregar ao debate racional dos problemas que se apresentam no viver
social (cf. Habermas, 1984). Se da ágora grega estavam excluídos as
mulheres e os escravos, do espaço público burguês estiveram excluídos,
desde sua constituição, os grupos minoritários. O espaço público
midiático, do qual as grandes corporações de comunicação detém o
monopólio, mantém essa coincidência na seletividade dos que têm
direito de expressão e sustenta suas exclusões, mesmo quando aparenta
operar inclusões, ao incorporar as heterogêneses que estavam
anteriormente excluídas da parte homogênea do social, posto que as
subsume conforme as semiotizações dominantes. Diferentemente, o
ciberespaço é segmentário, se distribui rizomaticamente, proliferando
pela conectividade das linhas que o atravessam, o que torna impossível
a organização de um ponto central de articulação e permite em sua rede
a presença múltipla, não-exclusiva, não-hierárquica e não-regulável da
diversidade dos grupos que compõem o campo social. Ao se constituir
como espaço flexível de experimentação de formas heterogêneas de
expressão, a internet seria hoje o locus privilegiado para o convívio
das diferenças e suas mútuas afetações e, em decorrência, para a
experiência da alteridade e da afirmação de uma diferença não
redutível ao idêntico.
5 Tal é a perspectiva proposta pelo software GingoÓ (Árvores de
ConhecimentosÓ), desenvolvido por ele em cooperação com o matemático
Michel Authier, em 1992. Valendo-se de cálculos algoritmicos, o
software permite resolver o paradoxo proposto por Condorcet, no século
XVIII, que, questionando a efetividade da democracia representativa
articulada pelo exercício do voto, demonstrara que a escolha
majoritária e intransitiva de um candidato estava longe de resultar
das escolhas transitivas entre vários candidatos feitas pelos
indivíduos que compõem o coletivo. Ao contrário, dizia Condorcet, a
eleição de um dos candidatos A, B e C pela simples somatória de votos
podia resultar na escolha de A, embora, analisando-se as preferências
dos eleitores, em suas escolhas transitivas, o preferido fosse C. O
que Condorcet questiona com esse paradoxo é a possibilidade de cada
indivíduo poder se fazer representar no coletivo sem que sua
singularidade desapareça. O software Gingo permite cartografar uma
coletividade (uma comunidade, uma organização, uma instituição...) e,
ao mesmo tempo, identificar a posição e participação de cada indivíduo
na construção dessa coletividade (maiores informações sobre o software
e seus usos podem ser encontradas no site
www.ddic.com.br).
6 Como confirma a proliferação de sites que visam intensificar a
visibilidade de personalidades midiáticas, de programas televisivos,
de seções de jornais.
Essa promoção/produção identitária é sucintamente discutida por Rolnik
em Toxicômanos da identidade (in Lins, 1997: 19-24). Nesse
interessante texto, a autora mostra a similaridade entre a aderência
identitária aos produtos oferecidos pela mídia (aos quais chama de
"identidades prêt-a-porter") - aderência que ela traduz como formas de
proteção e resistência, pelos sujeitos, em relação à aceleração das
transformações sociais, culturais e de trabalho - e o consumo das
inúmeras drogas hoje disponíveis no mercado, das farmacêuticas e do
narcotráfico aos manuais de auto-ajuda. Tanto a aderência identitária
como o consumo de drogas (às quais a autora agrega as dietas, as
práticas de body building e as múltiplas expressões religiosas hoje em
voga) funcionariam como desintensificantes das forças
desestabilizadoras e mobilizadoras do fora, não suportadas pelos
sujeitos em seus esforços para manter de forma relativamente estável
seus próprios territórios existenciais. Essa perspectiva foi por nós
retomada e desenvolvida como um importante componente, entre outros
utilizados para a formação de um corpo conceitual, na leitura das
afetações corpo-técnica-mídia em Corpo, técnica e mídia: simulações de
potência (2001).
8 Isto é, tanto a forma do homem - que compreende suas categorizações
como um "animal racional", portador de uma interioridade, de
linguagem, personalidade etc. - como o homem como forma - suas
pertinências, seus padrões de reconhecimento em tais e tais categorias
sociais, econômicas, étnicas, estéticas etc.
9 Essa relação e seus antagonismos é conhecida: as forças produtivas
estão inscritas nas relações de produção de uma forma tal que as
primeiras são reguladas e submetidas, conforme as relações de
produção, ao poder daqueles que detém a propriedade material dos meios
de produção. Nesse quadro, o que cada um pode produzir está
estritamente determinado pela posição que ocupa nessas relações de
produção.
10 Assim se refere Negri (1993: 23) à anomalia espinosana na Holanda
do séc. XVII, momento identificado por ele como de um emergente e
experimental capitalismo selvagem buscando compor-se em contrafluxo
aos poderes monárquicos dos países seus vizinhos. Valer-me dessas
mesmas referências em relação a Lévy não é fortuito. Lévy inscreve-se
no mesmo movimento de produção de pensamento de Negri, Deleuze,
Guattari, que, entre outros, são fecundos leitores de Espinosa. Como
Espinosa, Lévy também parece recusar a forma mistificada de democracia
representativa, fundamentada em uma concepção jurídica de Estado, a
favor de um livre e auto-regulável fluxo produtivo no social.
11 Um exemplo já clássico no Brasil é o de Fernando Collor e sua
campanha, em 1989, que acabou por colocá-lo na presidência do país.
Foi nesse período que o marketing político configurou-se como
estratégia eleitoral prínceps, marcando os rumos de todas as campanhas
eleitorais brasileiras desde então. Collor é, exemplarmente, um
personagem inventado pela mídia a partir de atributos pessoais - como
força, juventude, determinação, agressividade - que, por si,
legitimariam sua competência política como estadista. Após sua
eleição, nas imagens dos primeiros 100 dias de seu governo - cujas
medidas autoritárias e intempestivas atordoaram o país - sua
assessoria de imprensa continuou investindo no personagem midiático
construído durante a campanha, multiplicando as encenações
legitimadoras de uma suposta competência que o apresentavam sempre
disposto, quer descendo a rampa do Planalto, quer pilotando jet ski,
dirigindo Scanias ou fazendo cooper pelas trilhas brasilienses;
encenações que o figuravam como personagem ativo pleno da potência que
o poder lhe conferia. Deu no desastre que todos já conhecemos.
12 Em Vida - o filme, o crítico da cultura Neal Gabler (1999) faz uma
minuciosa análise da cultura de entretenimento cultivada nos EUA,
demonstrando que o próprio consumo transformou-se em uma forma de
entretenimento, o qual, por sua vez, expressa a concepção de liberdade
e de democracia gestada nesse país e expandida para o resto do planeta
após a II Guerra Mundial.
13 Do francês décodés, derivado de décodification, termo utilizado por
Deleuze & Guattari para indicar "código - de sistema semiótico, de
fluxo social ou material - desmanchado", diverso de "decodificado",
que indica "código analisado, apreendido, traduzido em outro
código" (cf. Guattari & Rolnik, 1986: 57, nota 7).
13 Do francês décodés, derivado de décodification, termo utilizado por
Deleuze & Guattari para indicar "código - de sistema semiótico, de
fluxo social ou material - desmanchado", diverso de "decodificado",
que indica "código analisado, apreendido, traduzido em outro
código" (cf. Guattari & Rolnik, 1986: 57, nota 7).
14 Algo que o mote da revista República (D'Ávila Comunicações Ltda.),
lançada em novembro de 1996, em plena euforia neoliberal, explicitava
bem: "O prazer da política e as políticas do prazer". Um mote que
buscava se realizar em seus textos, no formato que lhe deu origem, que
celebravam as personalidades de destaque na política e na sociedade
brasileira de uma maneira charmosa e consonante com a autopercepção de
seus atores.
15 Não cabe, aqui, uma apresentação do pensamento de Espinosa, somente
alguns muito breves recortes. No site indicado podem ser encontradas
as transcrições, em espanhol, de um curso sobre o filósofo ministrado
por Deleuze, no início dos anos 80, em Vincennes. Para uma breve
introdução ao seu pensamento, há, disponível em português, a obra de
Marilena Chaui, Espinosa, uma filosofia da liberdade (São Paulo,
Editora Moderna, Col. Logos, 1995). Para estudos mais aprofundados,
ver A nervura do real, de Marilena Chaui (São Paulo, Companhia das
Letras, 1999), Spinoza y el problema de la expresión, de Gilles
Deleuze (Barcelona, Muchnik Ed., 1975) e A anomalia selvagem: poder e
potência em Spinoza, de Antonio Negri (1993).
16 O que Deleuze nos indica com esta afirmação é que, mais que uma
soma de duas individualidades, num encontro de corpos (seja esse um
encontro amoroso, de negócios, de parceria na produção de conhecimento
ou de uma composição corpo-objeto técnico, no qual se supõe que o
objeto somente amplificaria a força do corpo, como no clássico exemplo
da alavanca), o que se produz é um terceiro corpo, com seus próprios
componentes, suas próprias especificidades e sua própria potência.
Esse terceiro corpo, embora se compondo com os componentes de um e
outro, é, enquanto outro corpo, diverso de um e outro, quando
compreendidos separadamente. Por exemplo, a parceria Deleuze &
Guattari, que se realiza com a obra O Anti-Édipo; capitalismo e
esquizofrenia, de 1972, permitiu a produção de um pensamento que,
embora se compondo das trajetórias de um e outro, é único e diverso de
seus trabalhos individuais. Após essa obra, nos anos subseqüentes,
podemos dizer que há uma obra de Gilles Deleuze, outra de Félix
Guattari e uma terceira, de Deleuze & Guattari (ver, a respeito, o
texto Rizoma, em Mil mesetas; capitalismo y esquizofrenia, 1988: 9-32;
há edição brasileira, lançada em 5 vol.: Mil Platôs; capitalismo e
esquizofrenia, São Paulo, Editora 34, 1995, v. 1). A concepção que faz
Espinosa da multitudo deve ser compreendida dessa maneira, e não como
simples reunião de muitas individualidades. A multitudo é, ela
própria, uma individualidade, com sua própria potência, maior e
diversa que a potência de cada corpo que entra em sua composição, daí
podermos entendê-la, com Lévy, como uma inteligência coletiva.
17 Espinosa escreveu numa época em que esta palavra não estava ainda
banalizada. O mesmo não ocorre com Lévy no momento atual, quando falar
de um Amor Universal soa, para ouvidos irritados, no mínimo piegas.
18 O que, em última instância, pode ser qualquer um e outro corpo. Não
inocentemente, o que mais se propõe hoje ao telespectador para o
entretenimento midiático são as "pegadinhas" e as "videocacetadas" dos
programas televisivos dominicais. Rir das confusões e das
descomposições do corpo do outro que elas promovem, eis uma clara
expressão de uma alegria derivada de uma tristeza ressentida. O nada
que se é conforma-se ao nada a que o outro é reduzido. Daí à violência
contra o outro, o passe é direto e coletivamente consentido, já que
tornada banal. Similarmente, a desqualificação do outro como
estratégia para a afirmação de si mesmo, que prevalece sobre a
exposição das próprias qualidades, configuradora de boa parte dos
discursos eleitoreiros e tônica dominante nos debates televisivos
entre candidatos, não é diversa desses entretenimentos dominicais.
"Que o mais hábil triunfe", por mais funesto seja o destino dos que o
escolhem.
19 Podemos compreender melhor isso a partir da dinâmica de nossa atual
cultura, que reduz todas as atividades à homogeneidade dos critérios
de operacionalidade do mercado, que na mídia se traduz na visibilidade
e desempenho dos personagens que ela privilegia como "celebridades".
Assim como estar na mídia é condição para o sucesso, algo crucial, por
exemplo, para os candidatos políticos nos períodos eleitorais, que
disputam segundos de presença nos horários gratuitos - mesmo que
tenham de compor, para isso, coligações partidárias das mais espúrias
-, na atual universidade operacional (ou de serviços), portar um
título acadêmico qualquer ou publicar alguma coisa em algum lugar
supera em valor a competência do portador do título ou a qualidade do
conhecimento transmitido por sua produção. Essa condição de
sobrevivência tanto no mercado político como educacional provoca uma
corrida generalizada aos cursos disponíveis em busca de treinamento e/
ou titulação, e posteriormente, de busca de veículos para a
divulgação de si mesmo ou para a publicação de papers. Como o valor
maior está na competência para fazer um bom marketing pessoal e na
disponibilização de títulos e de quantidade de produção anual, todos
os que aí se engajam acabam sendo, a princípio, avaliados segundo os
mesmos critérios de equivalência, sejam aqueles cujo valor resulta de
um efetivo percurso pelo conhecimento e da qualidade de sua produção,
sejam aqueles cujo maior valor está na visibilidade do título que
portam ou na quantidade do que produzem, qualquer que seja sua
qualidade ou contribuição efetiva para a construção social e o
conhecimento. Desnecessário apontar o caráter perverso que acabam
assumindo esses campos concorrenciais, no qual produtores consistentes
têm de conviver - quando não são ameaçados de serem substituídos por -
com outros que, avidamente, chegam a agir como banais e risíveis
femeeiros em sua busca de auto-legitimação.
http://www.oestrangeiro.net/index.php?option=com_content&task=view&id=53&Itemid=51