Educação e revolução social
parte I
Em Berlim, no começo da década de trinta, a atividade de Reich com os
grupos de orientação toma corpo, amadurece e floresce em uma
organização para a política sexual, a Sexpol, que chega a contar com
cerca de 40.000 associados (REICH, 1976, p. 152). Por um lado, Reich
procura politizar a questão da sexualidade, vinculando seu trabalho ao
Partido Comunista; por outro, tenta congregar as mais diversas
associações dirigidas à educação sexual em propostas comuns,
independentemente de suas tendências político-partidárias.
Em um primeiro momento, a capacidade de atrair jovens para o movimento
proporciona a Reich uma posição de liderança respeitada. Com o tempo,
porém, começam a surgir dificuldades. Os dirigentes comunistas passam
a acusar Reich de desviar a atenção da juventude para problemas
pessoais, pequeno-burgueses, afastando-os das questões econômicas e
políticas e, assim, do verdadeiro caminho revolucionário.
Quando Hitler sobe ao poder, em 1933, a situação de Reich já é
insustentável. Sua crítica à maneira com que os teóricos marxistas e
os dirigentes partidários tratam dos temas da educação e da
sexualidade acaba por apartá-lo de vez da doutrina por eles apregoada
e, neste mesmo ano, ele é oficialmente expulso do partido.
Neste período em que permanece ligado aos movimentos de esquerda, sob
a forte influência das idéias marxistas de luta de classes e de
implantação do comunismo, o pensamento educacional reichiano encontra-
se vinculado à noção de revolução. Para que a inovação dos costumes e
a liberação sexual ocorram, as leis, as relações de produção e a
estrutura de poder precisam ser alteradas. Essa transformação exige
que a nova sociedade abandone o padrão autoritário e permita, assim, o
desenvolvimento de um socialismo genuinamente paritário. A educação de
um novo homem se faz necessária.
Reich (1975a, p. 186-189) distancia-se das proposições freudianas
expressas no artigo O mal-estar na Civilização (1974b), de 1930, por
considerá-las cada vez mais conservadoras, um retrocesso em relação às
idéias que tanto o atraíram para a psicanálise, um projeto de
adaptação cultural baseado em argumentos que levam à resignação.
Por seu lado, Reich vislumbra a reestruturação pulsional do homem como
forma de torná-lo mais afeito à vida comunitária e aos ideais de
convivência mais igualitária e justa.
Esta nova estrutura deve dar conta da tarefa principal da economia
energética do organismo que é a de assegurar a descarga sexual,
retirando do caminho a enorme pressão do recalcamento e da sexualidade
pervertida. O homem da nova sociedade deverá funcionar com base em
suas pulsões primárias positivas sexuais e amorosas, direcionadas para
o crescimento, o conhecimento e o trabalho, e não mais a partir de
suas pulsões secundárias destrutivas e anti-sociais .
Entretanto, a mudança necessária não poderá ser feita por decreto. O
homem comum está organizado de tal forma que, se retirarmos a
repressão aos instintos abruptamente, serão as pulsões secundárias que
virão à tona primeiro. Isto representaria a desordem, a violência e o
império das perversões.
Tal qual a disciplina moralizante, a economia sexual também aspira por
uma "conduta moral". No entanto, pretende estabelecê-la de maneira
diferente, assim como é inteiramente diversa a sua compreensão do que
seja moralidade - não algo antitético à natureza, mas que lhe é
harmônico, assim como à civilização. A economia sexual opõe-se à
regulação moral compulsória, mas não à moralidade que seja afirmativa
à vida (REICH, 1986, p. 25).
A anuência à moral compulsória, anti-sexual, é inadmissível. Requer-
se, portanto, um projeto de transição entre a proibição indiscriminada
às pulsões, e uma nova postura de aceitação - ou mesmo de
favorecimento - das manifestações sexuais.
Reich afirma que, como a reestruturação do homem será um processo
demorado, a moral compulsória ainda será indispensável por um bom
tempo. No entanto, a verdadeira revolução social deve reconhecer a
diferença entre a sexualidade natural e a pervertida, apoiando a
primeira e reprimindo pela moral compulsória a última, enquanto for
necessário (REICH, 1986, p. 23).
Resumindo, podemos dizer que, durante o período de transição da
sociedade autoritária para a livre, o seguinte princípio seria válido:
disciplina moralizante para as pulsões secundárias, anti-sociais e
auto-regulação econômico-sexual para as necessidades biológicas
naturais. O objetivo do desenvolvimento social é eliminar
progressivamente as pulsões secundárias e a compulsão moral que as
acompanha, substituindo-as completamente por auto-regulação econômico-
sexual (REICH, 1986, p. 24).
A tarefa mais importante para a criação de uma nova sociedade é a de
"modificar a educação de tal maneira que o impulso para essas ações
(destrutivas, anti-sociais) não mais existam" (REICH, 1986, p. 24).
A reconstituição pulsional da massa só ocorrerá por meio da educação,
já que uma terapia coletiva não seria viável.
Do que necessitamos é:
1. o mais exato entendimento dos mecanismos pelos quais as emoções são
patologicamente controladas;
2. a aquisição da mais larga experiência possível no trabalho prático
com crianças, para descobrir qual a atitude que as próprias crianças
assumem em relação aos seus impulsos naturais dentro das condições
existentes;
3. descobrir as condições educacionais necessárias para estabelecer
uma harmonia entre a motilidade vegetativa e a sociabilidade;
4. a criação da fundação geral econômico-social para conseguirmos as
condições anteriores (REICH, 1975a, p. 298).
Os estudos do desenvolvimento da sexualidade e da estrutura pulsional
tornam-se essenciais para a formulação de uma proposta educacional, já
que as pulsões secundárias variam de acordo com a faixa etária, a fase
sexual e a identificação da criança com o adulto que a reprime.
A meta central na formação do novo homem é impedir que se torne inapto
para a fusão orgástica , assim como para a suavidade e a sensualidade
do amor genital. É fundamental que a vida sexual, desde a primeira
infância, não seja inibida, para que se mantenha a capacidade de
entrega ao movimento espontâneo do orgasmo.
Apenas as pessoas que alcançam a sexualidade genital saudável são
capazes de trabalho voluntário e auto-regulação não-autoritária. O
movimento revolucionário que menospreza a função da couraça
autoritária resulta em retrocesso, como o ocorrido no comunismo russo.
A adaptação ao socialismo através de mandamento moral é ineficaz e,
portanto, conduz ao fracasso. "Tudo o que se pode fazer é ajudar o
homem da melhor forma possível a desenvolver suas potencialidades
naturais" (REICH, 1986, p. 247).
Aqui, devemos distinguir cuidadosamente duas espécies de ideais:
aqueles que têm origem na mobilidade vegetativa natural da criança, e
os que derivam da necessidade de autodomínio e da repressão dos
instintos. Dos primeiros, depende o trabalho voluntário, livremente
produtivo; dos segundos, o trabalho como dever. Assim, na sociedade
patriarcal, a autonomia na adaptação social e o trabalho agradável são
substituídos estruturalmente pelo princípio da obediência à autoridade
e do trabalho como dever, com a conseqüente revolta (REICH, 1975c, p.
41).
Na visita que faz a União Soviética em 1929, Reich distingue as duas
atitudes educacionais típicas que estão se forjando no regime
comunista. "As minhas impressões dos jardins de infância soviéticos
foram bastante contraditórias. Os velhos modelos patriarcais conviviam
lado a lado com novas atitudes, não usuais e auspiciosas" (REICH,
1986, p. 251).
Reich (1986, p.191-199) reserva suas críticas mais contundentes à
prática educacional que se baseia em exortações morais de ideais
comunistas e na disciplina revolucionária, cuja feição autoritária vai
totalmente de encontro com os ideais de uma nova geração mais livre,
crítica, apta a trabalhar e a criar uma nova realidade social.
Assinala que seus métodos rígidos e moralistas em nada diferem dos
sistemas de ensino burgueses e, por isso, representam um recuo no
movimento transformador. Através deles, forma-se uma geração de
indivíduos submissos, cuja estrutura pulsional os impedirá de se
tornarem cidadãos atuantes na nova organização necessária para o ideal
socialista. A educação moralista reacionária, ao formar estruturas
retrógradas, levará a revolução ao descaminho.
Para Reich, esta é a tendência que, lamentavelmente, prevalece na
União Soviética.
Ainda assim, a experiência soviética permitiu o surgimento de algumas
atitudes promissoras, que evidenciam propostas pedagógicas
verdadeiramente revolucionárias. Práticas como as de autogoverno, em
que as crianças organizam suas próprias atividades; ou a da integração
das tarefas manuais e intelectuais nas escolas para o trabalho que,
segundo ele, geram mudanças não apenas superficiais, mas estruturais;
ou, ainda, a genuína camaradagem, que inclui a crítica de ambos os
lados, entre estudantes e professores de algumas escolas; são provas
de que é possível um caminho alternativo para a formação de uma nova
geração socialista.
Reich narra sua visita a um parque de Moscou, onde os adultos deixavam
seus filhos com monitores, para passar algumas horas. Ali, um grupo
infantil heterogêneo podia conviver, fomentando novas amizades,
algumas vezes duradouras. Descreve com admiração uma aula de música em
que as crianças receberam diversos instrumentos e o professor ao piano
começou a tocar ritmos variados. Em pouco tempo, sem que ninguém os
obrigasse ou exortasse a nada, os participantes formaram uma grande
orquestra executando músicas diversas e divertindo-se. Embora a
existência de oficinas culturais em parques seja comum também em
regimes capitalistas autoritários, a maneira viva de lidar com os
pequenos, o valor concedido à liberdade, o planejamento de atividades
em clima de não-organização e o respeito ao desejo de ação motora do
infante emprestavam a este trabalho um colorido especial, muito
importante.
E crianças que experimentam tal alegria em jogos desenvolvidos "de
forma não organizada" estarão estruturalmente capazes e prontas, por
si mesmas, para gerar a ideologia da democracia do trabalho, em vez de
limitar-se a papagaiá-la mecanicamente (REICH, 1986, p. 252).
Reich dedica atenção especial à escola de Vera Schmidt , para ele, a
experiência mais concreta da educação infantil centrada no respeito às
funções naturais da criança, um exemplo de formação da estrutura não-
autoritária (REICH, 1975c, p. 45).
Schmidt antecipou-se, segundo Reich, aos ensinamentos da economia
sexual. Partindo de seus conhecimentos psicanalíticos, intuiu a
carência de uma pedagogia que amparasse o desenvolvimento natural das
crianças, eliminando ao máximo a influência negativa dos adultos
encouraçados.
Entre os pontos positivos da metodologia utilizada, Reich salienta a
proibição de qualquer censura ou reprovação às manifestações sexuais
dos alunos. Assim, as crianças podiam tocar seus genitais sem que
ninguém as repreendesse nem as procurasse distrair. Não era permitido
admoestá-las se molhassem de urina, ou sujassem de fezes, suas roupas
ou camas. Não havia treinamento de uso de banheiro, nem exigência de
limpeza. Os professores eram esclarecidos sobre a importância do
desenvolvimento sexual.
Nesta sua avaliação, Reich toca em um ponto fundamental da
problemática educacional sob a ótica da transformação: a ênfase
conferida pela psicanalista-educadora ao trabalho de preparação dos
profissionais para adequá-los a sua linha pedagógica. Está claro que a
maioria dos adultos não saberá como reagir ou reagirá de maneira
inadequada diante das situações que surgirão em um ambiente afirmativo
à sexualidade e à autonomia. Pessoas que cresceram sob orientação anti-
sexual e autoritária não têm facilidade para aceitar as manifestações
instintuais infantis, tampouco sabem lidar com crianças sem causar
nelas a expectativa de aprovação. É imprescindível, portanto, a
reestruturação dos próprios professores para que estes abracem
verdadeiramente o novo sistema. Reich retoma assim o velho lema de
Marx: "o próprio educador precisa ser educado" (apud REICH, 1977, p.
32).
O educador deve agir constantemente sobre si próprio. Verificou-se no
jardim de infância que a agitação ou a desordem entre as crianças era
normalmente o resultado de atitudes neuróticas inconscientes por parte
dos professores. A educação regida pelos princípios da economia sexual
tornar-se-á possível somente quando seus agentes estiverem libertos de
motivações inconscientes, ou ao menos tenham aprendido a conhecê-las e
controlá-las (REICH, 1975c, P. 48).
No projeto de Schmidt, não era permitido emitir juízos morais a
respeito dos alunos; ninguém deveria criticar ou elogiar a criança por
suas ações ou obras, para que ela não sentisse necessidade de
aprovação, isto é, em vez de dirigir seus comentários à pessoa da
criança, o adulto podia apenas analisar os trabalhos produzidos por
seu valor intrínseco (REICH, 1975c, p. 45-52).
A escola proporcionava materiais de acordo com as necessidades das
crianças em cada fase, facilitando assim o processo de crescimento.
Schmidt propõe que a adaptação do infante à realidade não seja brutal
e injustificada. "É preciso que o mundo exterior não lhe pareça uma
força hostil", e que todas as limitações realmente necessárias (não-
arbitrárias) tenham um fundamento e uma apresentação inteligível para
a criança. "A adaptação à realidade acontece mais facilmente nas
crianças que têm uma forte consciência de si próprias e um sentimento
de independência" (SCHMIDT, 1975, p. 25).
As crianças do jardim não eram de qualquer forma contrariadas no seu
desejo de actividade motora: podiam correr, saltar, gritar à vontade.
Deste modo tinham não só a possibilidade de exprimir as suas
tendências naturais, como também de as pôr em prática (REICH, 1975c,
p. 49).
A partir de sua visita às escolas soviéticas, Reich começa a discutir
os elementos essenciais de uma proposta educacional não-autoritária
inserida no esforço revolucionário. Esses fundamentos não constituem,
evidentemente, uma pedagogia econômico-sexual propriamente dita .
Indicam, apenas, direções para o futuro desenvolvimento de uma teoria
pedagógica consistente, associada aos princípios nucleares da economia-
sexual.
Reich prega o desenvolvimento da sexualidade mais livre e próxima
possível do funcionamento natural. "A ação fundamental indispensável
para criar uma estrutura não-autoritária no homem é a educação
afirmativa à sexualidade das crianças" (REICH, 1986, p. 254).
As necessidades do infante ditam o planejamento das atividades,
relegando as considerações morais e filosóficas ao segundo plano.
Brinquedos e materiais são utilizados e renovados em conformidade com
as demandas da criança. Julgamentos pessoais são vedados. Nunca se
levanta a voz para a criança. As produções são avaliadas, mas não os
seus autores. Se uma criança machuca outra, mostra-se a ela a dor
causada, evitando imbuí-la do sentimento de culpa. Castigos corporais
são impensáveis, assim como excessivas demonstrações de carinho, que
servem apenas para satisfazer a carência afetiva do educador. Acima de
tudo, não se preparam alunos para a disciplina e a obediência; almeja-
se o desenvolvimento autônomo e autodisciplinado, com especial ênfase
para a liberdade de movimentos e a convivência não-hierárquica entre
educadores e educandos (REICH, 1986, p. 250-255).
O educador tem que estar atento às suas próprias motivações
educacionais, já que seus desejos inconscientes, distantes da
realidade educacional e desligados de sua relação com a criança, podem
tornar-se o motor de uma compulsão a educar que levará fatalmente a
uma atitude autoritária (REICH, 1975d, p. 53-68).
Os princípios gerais assim expostos possuem como núcleo a manutenção
da motilidade vegetativa, a atitude afirmativa em relação às pulsões
sexuais e às manifestações vitais da criança, questões herdadas da
inquietação reichiana com a profilaxia da neurose. Sua meta final, no
entanto, transcendendo o tema da saúde, é a formação de um novo homem,
autônomo, criativo, solidário, ético, responsável pelas suas próprias
ações e opções, o agente construtor da nova sociedade.
A tarefa revolucionária da educação é criar
...uma nova vida para toda a juventude trabalhadora, que surja a
partir de suas necessidades; preparar os jovens para serem
independentes, anti-autoritários, felizes em seu trabalho, capazes de
gratificação sexual, aptos a tomar decisões e a pensar criticamente
por suas próprias convicções e não por obediência (REICH, 1986, p.
226).
Dessas considerações depreende-se a educação inserida no processo
dialético social, uma proposta ao mesmo tempo crítica e instigadora,
de inspiração revolucionária, que tem como ingredientes importantes o
conhecimento científico e a reflexão ideológica, como comprovam os
diversos artigos que Reich publicou de 1929 a 1934. Entre eles: O que
é consciência de classe, Politizando o problema sexual da juventude e
Reformando o movimento trabalhador (REICH, 1972). Entretanto, a grande
contribuição do pensamento reichiano aos projetos de educação
transformadora, o que lhe empresta um caráter particular especial, é a
integração do aspecto afetivo estrutural ao intelectual. Para Reich, o
sentido conservador ou revolucionário do fenômeno educativo é definido
pela forma como a questão da estrutura pulsional é tratada. Através de
sua insistência na reestruturação psíquico-emocional do homem, Reich
contribui com o elo que falta entre as propostas inovadoras e sua
prática social.
Neste panorama de luta por mudanças sociais através da revolução
socialista em que se insere o pensamento reichiano, até meados da
década de trinta, a educação tem um lugar de destaque por sua
importância na formação das novas gerações. Entretanto, ainda não tem
o papel nuclear na transformação social, como acontecerá mais adiante,
quando Reich realiza que os regimes comunistas tendem a se tornar
fascistas, reacionários e conservadores no que tange à questão da
sexualidade.
Também a crítica à política como jogo de poder ligado à peste
emocional leva Reich a acreditar que o caminho legítimo para uma
reformulação estrutural da sociedade é a educação, que assume, então,
uma posição realmente central em suas expectativas.
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Educação e Liberdade em Wilhelm Reich
parte II
Crianças do futuro
Depois de se desligar da Associação Psicanalítica e do Partido
Comunista, emancipando-se em termos práticos e teóricos, já com seu
próprio pensamento mais amadurecido, Reich amplia ainda mais suas
concepções e propostas para a educação.
Além das já citadas mudanças em relação ao método, à cosmovisão e à
noção de homem que se deram a partir deste momento , e do nascimento
de seu terceiro filho, em 1944 , o fator mais importante para a
evolução do pensamento educacional reichiano neste novo contexto foi a
entrada em cena de Alexander S. Neill, o conhecido fundador e diretor
da escola Summerhill. Para Reich, foi muito gratificante encontrar um
educador com quem comungasse seus princípios básicos, comprovando-os
na prática.
Por sua vez, Neill chegou a Reich após ter lido seus escritos e
encontrado neles formulações, no âmbito da psicanálise, que se
afinavam com as suas próprias idéias, principalmente a forma positiva
de encarar os instintos naturais do ser humano. Nesta altura, sua
escola, alicerçada no princípio da liberdade e do autogoverno, já
funcionava há mais de uma década.
Neill primeiramente foi paciente de Reich, mas depois a sua relação
transforma-se em estreita amizade que dura, apesar da distância
geográfica , até a morte deste. As cartas escritas entre eles,
publicadas como Registro de uma amizade: a correspondência entre
Wilhelm Reich e A. S. Neill, 1936-1957 (PLACZEK, 1982), tratam de
vários assuntos, incluindo tópicos de suas vidas particulares,
comentários a respeito da situação mundial e da política e,
evidentemente, discussões sobre os temas pertinentes à educação de
crianças, que interessam a ambos.
A troca com Neill contribui com diversos elementos novos para o
pensamento reichiano. Torna-se mais palpável, e mais próximo, o tema
da educação formal. Reich, pela primeira vez, acompanha de forma
seguida uma experiência escolar concreta e debate com o amigo os
muitos aspectos da prática, os enigmas e as possíveis soluções para os
problemas da escola.
O convite feito a Neill, em 1950, para que viesse dirigir uma escola
orgonômica, em seu projeto de ampliação das atividades junto a seu
laboratório no Maine (PLACZEK, 1982, p. 270-271), demonstra o desejo
de Reich de implantar um estabelecimento dedicado à educação formal,
como pólo experimental, onde realizaria suas pesquisas concernentes ao
desenvolvimento infantil e à pedagogia. Reich confia no amigo para
compor o projeto pedagógico do funcionalismo orgonômico, ainda por
criar. Tal, entretanto, não chega a concretizar-se pela recusa de
Neill.
A práxis Summerhilliana, apesar de toda a proximidade com as idéias
reichianas, tem identidade própria. A escola de Neill não é o retrato
vivo da proposta reichiana, assim como as idéias de Reich não são o
único fundamento teórico aí utilizado. Embora sejam grandes amigos e
encontrem forte semelhança entre suas visões educacionais, ambos
mantêm sua independência.
Ainda assim, dessa extensa troca de experiências, Neill aproveita a
oportunidade de contar com uma teoria que não entra em conflito
constante com suas teses principais. A psicanálise freudiana, de que
se servira até então, pressupõe a existência de uma tendência natural
ao sadismo e às atitudes anti-sociais, que não se confirmavam na
prática de Summerhill. Neill (1980, p. 253) vinha afirmando há anos
que "as crianças jamais são cruéis, a não ser que tenham sido forçadas
a reprimir uma forte emoção. Crianças livres pouca ou nenhuma
hostilidade têm a expressar". Ele relata que quase todas as crianças
de sua escola, após um período de adaptação em que manifestavam seu
sadismo e crueldade - resultados da atitude autoritária de seus pais e
educadores antes da vinda para o ambiente de aprovação que ali
encontravam -, demonstravam uma tendência natural para a sociabilidade
e o amor. Para ele, portanto, é um alívio encontrar um teórico,
estudioso da estrutura psíquica humana, com posições tão semelhantes
às suas. Embora Neill, em seus livros, cite Reich apenas
ocasionalmente, é possível perceber o aproveitamento das idéias
reichianas em um contexto geral. Entre outros temas, Neill discute o
encouraçamento (1980, p. 193), a necessidade de vida sexual na criança
e no adolescente (1978b, p. 131), a atitude antivida dos educadores
(1980, p. 319), e até mesmo a auto-regulação na alimentação: "O
regular-se por conta própria devia ser hábito inculcado desde o
nascimento, com a primeira alimentação" (1980, p. 164).
Os discursos de Reich e de Neill, em determinados momentos, aproximam-
se de tal forma que caberia uma investigação específica para esboçar o
papel de cada um na construção de seus conceitos. O que interessa mais
diretamente aqui é a influência desta relação nas mudanças por que
passa o pensamento reichiano nos anos trinta, quarenta e cinqüenta.
Neill afirma sempre que não é um pensador, e que suas observações
foram extraídas de sua experiência como educador. Reich, por seu lado,
não possui uma prática extensa com crianças, e seu conhecimento
pedagógico foi construído no campo teórico. Assim, toda a vivência de
Neill, levada a cabo em um ambiente educacional afirmativo à vida e à
auto-regulação, permite a Reich confrontar algumas de suas hipóteses
com a realidade escolar. Durante a década de quarenta, Neill contribui
com diversos artigos para as revistas que Reich edita nos Estados
Unidos, acrescentando assim o tema da educação formal aos trabalhos
dedicados à ciência da orgonomia e à técnica terapêutica.
Reich finalmente tem como apoiar seus argumentos em uma experiência
educacional eficaz. "Alexander Neill tem, por décadas, feito um belo
trabalho ao provar na prática minha afirmação de que o desenvolvimento
natural, auto-regulado de crianças é possível" (REICH, 1973a, p. 128).
A escola de Neill serve como contrapeso às más impressões deixadas
pelas escolas socialistas onde tentou educar suas filhas. O otimismo
com que Reich vê os resultados obtidos em Summerhill, aliado às suas
vivências negativas na prática política e à rejeição dos círculos
intelectuais e científicos às suas idéias, leva-o a depositar ainda
mais na educação a esperança de transformação.
Reich julga propícia a criação de projetos educacionais de orientação
funcional orgonômica, com profissionais especialmente treinados para
isso. Espera poder contar com crianças provenientes de ambientes
familiares mais afirmativos à vida, cujos pais concordem com os seus
princípios básicos.
Em carta de 1949 a Neill, Reich demonstra interesse na formação de
educadores.
O problema de como organizar e treinar professores em nossa área faz-
se mais urgente a cada dia que passa. É de importância vital
viabilizar o ensino dos princípios educacionais de auto-regulação, de
forma que possam ser transmitidos de geração a geração (PLACZEK, 1982,
p. 245).
Em seus escritos mais recentes, Reich afasta-se definitivamente da
idéia de transformação através da política. Abandona as teses
marxistas de luta de classes e deixa de responsabilizar determinados
grupos pelo desastre social. Não mais atribui à má natureza, ao pecado
original ou à má consciência política, mas sim ao encouraçamento
biológico, a causa da ruína humana (REICH, 1973a, p. 48).
Além disso, acredita cada vez menos na possibilidade de alterar a
estrutura de poder e os costumes dentro do quadro social de seu tempo.
Sua esperança está depositada, agora, em um futuro mais distante,
quando o esforço de gerações vindouras frutificará uma nova estrutura
pulsional dos indivíduos e, com ela, uma outra sociedade. Cada geração
captará apenas a parte que lhe é mais acessível deste percurso de
mudanças. Reich afirma que a transformação não ocorrerá de uma hora
para a outra, devendo operar-se gradualmente, geração a geração, erro
a erro, acerto a acerto. "... não podemos esperar senão um avanço
constante, em que novas estruturas sadias superem e ocupem o lugar das
antigas doentes. Qualquer outra expectativa só levará à desilusão e ao
desânimo..." (REICH, 1983, p. 38-39).
Reich perde a esperança de realizar uma mudança em curto prazo, porém
não se rende ao conformismo. Reconhece que as condições práticas de
seu tempo não permitem a instauração imediata do reino do
funcionamento genital. Admite a falha de nossa civilização diante dos
terríveis acontecimentos das décadas de trinta e quarenta. Ao
aproximar-se a década de cinqüenta, o início da Guerra Fria anuncia
tempos ainda mais tenebrosos.
Não podemos, de maneira alguma, pregar a "adaptação cultural" para
nossas crianças, quando esta mesma cultura vem se desintegrando sob
nossos pés há mais de trinta e cinco anos. Nossas crianças deveriam
adaptar-se a este tempo de guerra, genocídio, tirania e deterioração
moral? (REICH, 1983, p. 06).
Reich encontra-se menos otimista, cético quanto à competência do homem
para desembaraçar-se das circunstâncias que criou para si mesmo. Mais
uma vez, em carta a Neill:
Eu compreendo suas inquietações a respeito do destino de sua escola no
futuro, mas não se preocupe; se ela não for capaz de achar um lugar no
novo mundo, então nada honesto e decente o fará (PLACZEK, 1982, p.
47).
Ao mesmo tempo, confia na força da vida, que precisa ser preservada da
influência da educação repressiva. "Só as crianças valem a pena. É
necessário recuar até ao protoplasma não afetado" (HIGGINS e RAPHAEL,
1979, p.55).
Reich dedica-se ao esforço científico com o objetivo de deixar um
legado teórico-experimental. Caberá à posteridade aproveitar estes
conhecimentos da melhor forma possível. Confia que as descobertas da
importância da função orgástica e da energia orgone, aliadas ao
esclarecimento das chagas do encouraçamento e da peste emocional, são
instrumentos essenciais e de extrema utilidade no processo de
libertação do homem, que evoluirá de forma mais lenta, mas certamente
mais consistente.
A respeito do funcionalismo orgonômico, afirma Reich:
Este método de pensar e trabalhar torna-se uma força progressiva
dinâmica no desenvolvimento social apenas por observar, criticar e
mudar a civilização mecânico-mística a partir do ponto de vista das
leis naturais da vida, e não da perspectiva estreita do Estado, da
Igreja, da economia, da cultura, etc. (REICH, 1973a, p. 11).
É sobre esta base, este método de pensamento, que se assenta a sua
proposta educacional mais radical, forjada no último período de sua
vida, mais extremada em sua crítica aos valores de uma civilização
falida e na sua recusa a apresentar modelos às novas gerações.
Há esperança, muita esperança, se apenas reunirmos a coragem e a
decência para admitir nossa falha miserável. (...) Não nos cabe ditar
às nossas crianças o tipo de mundo que devem ou vão conceber. Contudo,
podemos equipá-las com o caráter e o vigor biológico que as habilite a
tomar suas próprias decisões, encontrar seus próprios caminhos para
construir seu próprio futuro e o de seus filhos de uma maneira
racional. (REICH, 1983, p. 6-7).
A investigação do desenvolvimento natural humano é pressuposto
indispensável para a realização desta empreitada. Na apresentação que
faz ao projeto do OIRC (Centro de Pesquisas Orgonômicas da Infância),
no final da década de quarenta, Reich afirma que "o destino da raça
humana dependerá das estruturas de caráter das 'crianças do
futuro'" (1983, p. 05).
Para Reich, a maior parte dos estudos do desenvolvimento infantil
concentra-se não no funcionamento natural humano, mas na sua distorção
devida ao encouraçamento. Esses ensinamentos são importantes porque
permitem conhecer o fenômeno da couraça, fornecendo a informação
necessária para evitá-la e combatê-la. No entanto, é preciso
distinguir os processos naturais da deformação, para reconhecer a
extensão da deterioração humana. A naturalização do patológico por
parte dos estudiosos tem velado o acesso ao desenvolvimento saudável e
autônomo nas crianças .
Reich, como se depreende de suas análises críticas do surgimento da
educação autoritária, não descarta a herança histórica na conformação
do ser humano. A prática simbólica é parte das potencialidades inatas
ao homem. Mas não é viável que a civilização substitua completamente o
homem biológico, inserido na natureza e nela enraizado, regido pelos
princípios comuns aos seres vivos e pelas leis mais gerais do cosmos.
As formações culturais não podem ignorar esta condição natural; devem,
ao contrário, respeitá-la e aprender com ela.
Reich quer a superação da dualidade: o homem, ser da natureza, sujeito
apenas às leis naturais; e o homem histórico, produto de sua
experiência subjetiva e, portanto, não redutível a aspectos
biológicos. Para isso, utiliza a noção de par funcional e de princípio
funcional comum. A cultura enraíza-se no funcionamento natural; já o
encouraçamento rígido e a estrutura genital encontram-se pareados. São
duas realizações possíveis da existência humana e ambas necessitam ser
elucidadas.
É nesta ótica orgonômica que Reich propõe sua pesquisa de fundamentos
para a educação.
Do funcionamento natural humano, até então, só havia sido possível
captar alguns relances na observação de crianças com desenvolvimento
menos truncado e de indivíduos que passaram por processos terapêuticos
de soltura da rigidez caracterológica, bem como nos relatos
antropológicos de culturas mais afirmativas às funções vitais do que a
nossa.
A observação direta do desenvolvimento infantil saudável é urgente
(REICH, 1983, p. 7). Pesquisadores e educadores envolvidos nesta
investigação devem estar aptos a trabalhar dentro do marco teórico da
orgonomia; precisam de treinamento que lhes revele o funcionamento
vital como fluxo energético, fruto da relação energia e massa
orgânica, ao mesmo tempo em que desvende os mistérios do
encouraçamento. Necessitam também conhecer sua própria estrutura de
couraça, para que sejam capazes de detectar suas motivações, sua forma
pessoal de encarar as manifestações de vida na criança, seus limites e
dificuldades, prevenindo-se assim os seus possíveis ataques de peste
emocional.
A proposta de pesquisa do OIRC demonstra o aprofundamento da abordagem
reichiana do fenômeno infantil. O interesse de Reich transcende o
conhecimento gerado pelo seu estudo psicanalítico, que possuía como
limite a capacidade de simbolização, e abria-lhe acesso apenas às
lembranças verbais de seus pacientes. Reich debruça-se agora sobre as
funções vitais desde a formação do feto no útero, o parto, as
primeiras reações do bebê, os seus primeiros dias de vida, além de
examinar o desenvolvimento da criança e do adolescente de uma forma
que, além de se ocupar com as manifestações psíquicas e da
sexualidade, contempla os aspectos do funcionamento biofísico, mais
profundo e anterior à verbalização e ao pensamento (REICH, 1983, p.
22). Não se trata mais de um estudo do desenvolvimento psíquico, mas
da função vital no homem.
A reestruturação do caráter humano por uma transformação radical, sob
todos os aspectos, da nossa maneira de educar as crianças, tem a ver
com a própria Vida (REICH, 1999, p. 10).
O pensamento reichiano para a educação, que emerge então, não
constitui uma proposta pedagógica ou um sistema, um modelo
educacional. Apresenta-se como debate de princípios e fundamentos de
uma prática educacional, uma discussão consistente dos objetivos e dos
fundamentos da formação humana. Os acontecimentos atribulados da
última década de sua vida (especialmente o processo que culminou com a
sua prisão) acabaram por interromper o desenvolvimento das pesquisas e
propostas de estruturação de uma escola experimental orgonômica, de
forma que apenas as linhas mestras de suas pretensões foram traçadas.
A educação das crianças do futuro, cujo centro de referência é o
funcionamento vital infantil, tem papel fundamental na transformação
social que se almeja. Sua tarefa é desmontar gradualmente milênios de
formação humana equivocada.
Sabemos que são principalmente as influências socioeconômicas (a
estrutura familiar, as idéias tradicionais de natureza versus cultura,
as exigências da civilização, a religião mística, etc.) que reproduzem
a couraça em cada geração de recém-nascidos. Estes infantes, quando
crescidos, forçarão seus filhos ao encouraçamento, a menos que a
corrente seja quebrada em algum lugar, algum dia (REICH, 1973a, p.
288).
Nesta formulação, a reestruturação emocional do ser humano não é peça
acessória da revolução social, mas o próprio motor da transmutação
cultural que libertará o homem dos seus grilhões. Assim, o pensamento
educacional reichiano encontra-se com o tema da liberdade.
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Educação e Liberdade em Wilhelm Reich
parte III
A LIBERDADE COMO VALOR CENTRAL DA EDUCAÇÃO
A opção, por isso, teria de ser também, entre uma "educação" para a
"domesticação", para a alienação, e uma educação para a liberdade.
"Educação" para o homem-objeto ou educação para o homem-sujeito
(FREIRE, 1967, p. 36).
O homem na prisão
O exame do caminho percorrido pelas reflexões reichianas demonstrou,
até aqui, um pensamento crítico que nega o caráter natural da atual
condição humana e se direciona para proposições teóricas e práticas,
visando a superação do imobilismo social e cultural em nossa
civilização. De sua recusa ao conformismo e à adaptação cultural,
Reich orienta suas investigações para a transformação do homem e da
sociedade.
Neste trajeto, a liberdade assume cada vez maior importância. Se em
primeiro momento é apenas conseqüência implícita da saúde, a partir da
crítica à obediência cega dos homens-máquina , o seu significado para
o homem invade o território das considerações reichianas, tornando-se
um dos temas centrais de suas discussões e propostas de mudança
cultural e social, especialmente no campo da educação.
Reich inicia um de seus últimos livros, O assassinato de Cristo
(1999), publicado em 1953, retomando a indagação formulada por
Rousseau, duzentos anos antes:
O homem nasceu livre e por toda a parte ele está agrilhoado. Aquele
que se crê senhor dos outros não deixa de ser mais escravo que eles.
Como se deu essa mudança? Ignoro-o (ROUSSEAU, 1996, p. 9).
As análises deste capítulo, dedicado ao tema da liberdade e à sua
relação com a educação, partem também desta questão.
Em sua averiguação do funcionamento do homo normalis de nossa cultura,
isto é, do indivíduo encouraçado, Reich postula a perda da autonomia
como componente-chave da incapacidade do homem para mudar o rumo de
seu percurso histórico. No decurso dos últimos milênios, a humanidade
vem buscando, por meio de diversas formas de luta, confrontos e
convulsões sociais, uma maneira de desmontar a estrutura de dominação
e de construir uma sociedade mais justa, onde todos possam participar
dos benefícios da civilização, em liberdade. Porque todos esses
movimentos têm falhado? É a pergunta que Reich (1973a, p. 35) se
propõe a resolver. Na elucidação das causas desta repetição reside a
esperança de encontrar um meio de romper as cadeias deste círculo
vicioso.
Em um artigo de 1935, que integra o livro A revolução sexual (1986, p.
157-282), Reich descrevera a desastrosa atuação dos diversos
organismos da administração soviética, em seu afã de criar um novo
homem, o cidadão do socialismo, a partir de teorias marxistas que
simplesmente desconheciam o funcionamento estrutural do ser humano.
Segundo ele, a revolução russa dos primeiros anos iniciou uma avançada
reforma na legislação relativa aos costumes e à sexualidade que, com o
passar dos anos, deu lugar a uma política reacionária no que tange à
vida sexual, uma nova moral acética mais rígida ainda do que a vigente
na antiga Rússia ou mesmo nos países capitalistas.
O retrocesso do processo de abertura soviético, os indícios de caos
social e de descontrole que surgiram como conseqüência da liberação
inicial, a posterior retomada do autoritarismo e do controle moral
rígido, bem como sua contribuição para a formação do fascismo vermelho
stalinista, fizeram com que Reich compreendesse o perigo de se propor
a imediata extinção das restrições moralistas.
Anos antes, quando analisara o fascismo alemão , Reich já havia
detectado que a forte tendência social progressista responsável pelo
enorme avanço político e cultural da década de vinte resultara no
apoio popular ao regime autoritário nazista. Um retrocesso à primeira
vista surpreendente. No entanto, esse tipo de reação é comum a
praticamente todos os grandes movimentos de liberação social da
história. Há, portanto, uma força em ação neste processo de recuo que
precisa ser compreendida, se o objetivo for construir a libertação de
forma consistente.
"Temos carregado correntes em nossas pernas enquanto tentamos
desesperadamente saltar para a liberdade" (REICH, 1983, p. 05).
Reich vê a história de lutas do homem pela liberdade como uma sucessão
de equívocos. No momento em que o homem perdeu a capacidade para
encarar suas funções vitais de forma natural, tornou-se prisioneiro de
si mesmo. "Quando o homem se viu assim preso pela primeira vez, a
confusão tomou conta de seu espírito. Não compreendeu por que estava
cativo" (REICH, 1999, p. 19).
Para Reich, o homem encontra-se em uma armadilha (man in the trap),
"precisa reconhecer que está numa prisão" para poder procurar uma
saída. "A armadilha é a estrutura emocional do homem, sua estrutura de
caráter" (REICH, 1999, p. 4).
É importante, pois, desvendar o enigma da prisão humana e da
necessidade que tem o homem de permanecer encarcerado. Por que ele
combate, distorce e destrói todas as suas próprias tentativas de
libertação? Urge compreender por que todas essas experiências
falharam. Só assim será possível pensar a educação visando uma
reestruturação do homem, que, de forma segura, o leve de volta à vida
e à liberdade.
Toda a esperança de acabar com a decadência da educação atual estaria
perdida para sempre, irremediavelmente, se esta nova e promissora
tentativa de chegar a um novo tipo de educação de crianças malograsse
e se transformasse no seu oposto, como sempre foi o caso de todas as
iniciativas tomadas pela alma humana (REICH, 1999, p. 10).
Reich utiliza a história de Cristo como exemplo típico de como toda
busca humana de reconquistar o contato franco com suas funções vitais,
entre elas a própria liberdade, acaba resultando em nova versão da
opressão e da filosofia antivida.
A função que está por trás da recusa em sair da prisão "é a PESTE
EMOCIONAL DO HOMEM " (REICH, 1999, p. 2), que destrói, com seu ódio ao
vivo, toda a esperança surgida a cada novo movimento pela liberdade.
O verdadeiro problema do homem é A EVASÃO BÁSICA DO ESSENCIAL. Essa
evasão e fuga fazem parte da estrutura profunda do homem. Fugir à
saída da prisão é resultado dessa estrutura do homem. O homem teme e
detesta a saída da prisão (REICH, 1999, p. 6).
Da mesma forma que o indivíduo de nossa sociedade, hoje, levanta muros
e grades para proteger sua família e seu lar, tornando-se ele mesmo um
prisioneiro em sua casa, o homem encouraçado erige sólidas barreiras
de proteção contra a angústia causada pela formação antivida, que o
impedem de se conectar com seus sentimentos mais íntimos, com suas
funções naturais, assim como com o mundo à sua volta. Torna-se cativo
de sua própria couraça, preso a uma série de atitudes, idéias e formas
de sentir pré-estruturadas, repetições aprendidas através de uma
educação cuja função é domesticar. "Para se adaptar à vida na prisão,
a Vida foi obrigada a desenvolver novas formas e novos meios de
existência" (REICH, 1999, p. 20).
Reich indaga-se sobre a inevitabilidade deste encarceramento. Ou seja,
se o homem poderia ter se desenvolvido sem a couraça do autoritarismo.
Para Reich, o encouraçamento é uma função biológica presente, como
alternativa, em todos os seres vivos. Em seus experimentos com
amebas , observou-as enrijecendo-se em sua periferia diante de
estímulos agressivos, e voltando a flexibilizar-se assim que estes
cessavam. Mantidas durante muito tempo nesse estado crônico,
enquistavam-se e morriam.
Porém, a couraça rígida, patológica, que é transmitida de geração a
geração, é exclusiva do homem (e de alguns animais por ele
domesticados), pois apenas espécies complexamente organizadas podem
sobreviver com parte de seu funcionamento comprometida pelo
encouraçamento.
As enormes diferenças no tipo de estrutura apresentada pelos diversos
povos estudados pela antropologia provam que a repressão do sistema
patriarcal é histórica, não tem fundamentação biológica necessária.
Portanto, embora seja o caminho trilhado até agora por esta
civilização, pode e deve ser abandonado em prol de um melhor
desenvolvimento cultural. Cabe ao homem, a partir do momento em que
compreendeu esses fatos, escolher o rumo que irá tomar. A humanidade,
no entanto, está apenas engatinhando, começando a lidar com a sua
recentíssima (em termos de evolução biológica) capacidade de
autopercepção e consciência; se aprender a utilizar estas habilidades
em consonância com suas funções naturais, então, e só então, a
contradição entre o animal humano e a sociedade poderá se desfazer
(REICH, 1973a, p. 290-298).
Até que isso ocorra, o homem permanecerá cegamente em sua prisão,
recusando-se escapar, temendo desesperadamente que se aponte uma
saída. Enquanto espera por sua salvação, continuará submisso. Aqui e
ali surgirão, como têm surgido, alguns homens capazes de vislumbrar
além da armadilha. O mundo da arte está cheio de exemplos dessas
visões de liberdade. Outros proporão formas de romper os grilhões,
mas, como Cristo, serão perseguidos pela peste emocional. Alguns,
então, criarão propostas de "liberdade na prisão" (REICH, 1999, p.
20). Evitando tratar do essencial (a prisão estrutural emocional do
homem), agitarão suas bandeiras e prometerão a "LIBERDADE DO POVO NA
PRISÃO". Com o tempo, serão tomados pela embriaguez do poder e
esquecer-se-ão do povo, interessando-se apenas por suas guerras e por
combater seus inimigos reais ou inventados (REICH, 1999, p. 21).
"Quando a alma e o corpo se tornam rígidos, todo movimento é
penoso" (REICH, 1999, p. 80). O homem encouraçado tem como
característica básica o imobilismo que impede a verdadeira
transformação, um anseio pela inércia, pois mudança, para ele,
significa angústia (REICH, 1999, p. 112); necessita desesperadamente
de estabilidade, ordem e segurança. Contudo, a estabilidade, ordem e
segurança resultam em estagnação, rigidez nas relações sociais e
autoritarismo.
Uma de suas do homem comum características mais essenciais veio a ser
essa de sentir-se felicíssimo em atirar a sua responsabilidade - de si
mesmo para cima de algum führer ou político -, pois não se compreende
mais e, na verdade, teme a si mesmo e às suas instituições. Está
desamparado, é incapaz para a liberdade e suspira pela autoridade
porque não pode reagir espontaneamente; está encouraçado e quer que se
lhe diga o que deve fazer, pois é cheio de contradições e não pode
confiar em si mesmo (REICH, 1975a, p. 201).
A tendência de todos os grandes movimentos que buscam libertação ou
mudança é de procurar um inimigo a quem culpar pelos males da
humanidade, seja os capitalistas, os comunistas, os judeus, os
fundamentalistas árabes, os negros, os traficantes, os pecadores, seja
um conselho secreto que ditaria os caminhos da exploração e do inferno
humano. Ao refletir sobre a prisão do homem, Reich evita atribuir os
males da humanidade a um só grupo (REICH, 1973a, p. 127). O
funcionamento desta prisão é comum a todos os homens. "O inimigo está
em toda a parte" (REICH, 1999, p. 259). A peste emocional e o
funcionamento encouraçado não devem ser imputados aos outros, mas
desvendados em nós mesmos. Só assim se tornará possível compreender o
imobilismo e a incapacidade para a liberdade e para a vida.
Neste processo de descoberta do próprio funcionamento dentro da prisão
reside a esperança de mudança, ainda que tardia. Para se pensar em uma
nova atitude diante do processo vital nas crianças, é necessário
descobrir o temor à vida em nós mesmos.
O perigo está no imenso hiato entre a esperança e a capacidade de
agir. "Existe, no passado como no presente, um ABISMO intransponível
entre o sonho da Vida e a capacidade do homem de viver a VIDA" (REICH,
1999, p. 78). Essa grande distância causa frustração e peste. Se nos
ativermos apenas à nossa aspiração por mudanças e pelo funcionamento
mais vivo e não atentarmos para os limites de nosso encouraçamento, o
resultado será desastroso. A reação pestilenta ocorre exatamente
quando o impulso em direção à vida se torna mais forte e mais amplo do
que as estruturas podem suportar.
Reich prevê que, se um grande movimento pela liberação sexual e social
sobrevier a partir de suas idéias, não vingará, e ainda provocará uma
onda de insegurança que acabará por gerar o clima propício para uma
nova era de autoritarismo.
Se hoje, ou amanhã, o estado autoritário fosse abolido de uma hora
para outra, de forma que as pessoas pudessem fazer o que quisessem,
caos, em vez de liberdade, seria o resultado. Anos de desorientação
passar-se-iam antes que a raça humana aprendesse a viver de acordo com
os princípios da auto-regulação natural (Reich, 1973a, p. 135).
Qualquer proposta de libertação, tanto no campo político-social quanto
no da educação, tem que enfrentar o dilema do homem na prisão, do
homem não-livre. É necessário reconhecer as motivações racionais do
comportamento irracional para poder desmontá-lo (REICH, 1999, p.
247-252). A condenação pura e simples do autoritarismo leva a um beco
sem saída.
"Não se pode impor liberdade ao sistema bioenergético destruído da
criança" (REICH, 1977b, p. 43). É preciso admitir o comprometimento
desta estrutura e respeitar seus limites no que concerne às suas
funções vitais e à autonomia.
Reich, evidentemente, não defende a educação e a ação política
autoritárias. "Dou ênfase a estes fatos não porque sou contra a
liberdade, mas por ser absolutamente a seu favor" (REICH, 1973a, p.
135). Não adianta querer construir uma utopia liberalizante em solo
impróprio. Para que a sociedade conquiste a liberdade, em primeiro
lugar é preciso encarar o reino do diabo, o território das pulsões
secundárias perversas e anti-sociais.
A estrada do homem para a verdadeira liberdade passa inexoravelmente
pela compreensão e enfrentamento dos males decorrentes de seu
encouraçamento patológico, sua prisão.
O bloqueio ao contato natural com o self e com o mundo ao redor
diminuirá, lentamente, talvez por muitos séculos, e, finalmente,
quando a prevenção ao encouraçamento das novas gerações for bem
sucedida, sumirá completamente da superfície da terra (REICH, 1973a,
p. 298).
Antes de tudo, Reich propõe aceitar que nas condições atuais não se
pode falar em um homem efetivamente livre, descobrir por que isso
ocorre, e centrar esforços em uma formação que trate do problema
gradual, cuidadosa e seguramente. Isso tudo, sem perder de vista que o
ser humano é potencialmente livre em sua função básica de auto-
regulação e indeterminação, que é capaz de agir com autonomia e com
responsabilidade, e de criar uma civilização em harmonia com as leis
da vida. Esta outra vertente também precisa ser perscrutada como
fundamento da educação para a liberdade.
Auto-regulação e liberdade
Ao narrar alguns dos fatos políticos ocorridos na Áustria, no final
dos anos vinte, que levaram à adesão do povo austríaco ao nazismo na
década seguinte, Reich afirma que "desde então, a compreensão desta
insanidade referindo-se à atitude dos políticos permaneceu sendo um
dos fatores substanciais em minha busca pelo significado da
'liberdade'" (REICH, 1976, p. 87).
A incoerência nas atitudes tomadas pelos partidos de esquerda revelava
a sua irracionalidade. Reich afasta-se então das discussões políticas,
em que "o medo da liberdade e o medo da responsabilidade (angústia de
prazer) se misturam com as idéias de paz e liberdade, e esses
objetivos são, por isso, discutidos de uma maneira mais formal do que
prática" (REICH, 1990a, p. 511).
Em vista das muitas teorias e racionalizações desenvolvidas com o
sentido de evasão ao essencial, Reich procura uma alternativa para a
averiguação da validade de suas assertivas. Mais uma vez, apóia-se no
parâmetro da saúde e do funcionamento natural, como referencial isento
da repressão e da peste emocional.
Para Reich, as habilidades tipicamente humanas não surgem do nada como
uma dádiva divina, mas são especializações de funções naturais mais
primitivas, seus princípios funcionais . O desenvolvimento natural é,
portanto, guia seguro para o esclarecimento da realidade humana, que
permite evitar o emaranhado das elucubrações teóricas evasivas.
A capacidade intencional de escolha e de ação é característica
essencial e exclusivamente humana e, não obstante, está enraizada nas
funções biológicas naturais. A liberdade, na ótica reichiana, é o
resultado evolutivo da auto-regulação, função que está presente em
todas as formas de vida, fundamental ao processo do organismo vivo e
que o distingue dos sistemas não-vivos. É a aptidão que o ser vivo
possui para administrar suas necessidades sem interferência externa,
um princípio básico da própria existência da vida (REICH, 1979, p.
175). Não se pode pensar, portanto, em vida sem auto-regulação. A sua
falta é o primeiro passo para a doença e a decomposição.
O termo auto-regulação, hoje, está bastante presente nos estudos de
educação, devido à difusão da teoria de Piaget que o emprega,
juntamente com o conceito de equilibração, para explicar o
desenvolvimento cognitivo. Sua utilização, no entanto, está vinculada
à idéia de um organismo que se inclina a voltar ao estado de repouso .
Trata-se de noção tributária da visão mecanicista da física, segundo a
qual o universo caminha para a entropia, isto é, as diferenças de
potencial diminuem sempre, tendendo à zero, como reza a segunda lei da
termodinâmica. Essa mesma propensão é então creditada aos seres vivos.
Entretanto, auto-regulação significa homeostase, que é a capacidade de
voltar ao equilíbrio conservando a forma original, mas também
Homeorese - em grego, preservação de um fluxo -, com o sentido de um
organismo em desenvolvimento, em modificação auto-determinada
(BELLINI, 1993, p. 31).
O conceito de auto-regulação, no pensamento reichiano, possui este
sentido mais completo. A vida, para Reich, caminha em direção ao
crescimento e ao novo. Assim, a auto-regulação não implica apenas a
volta ao estado de equilíbrio, mas a possibilidade de um impulso para
a mudança. "A diferença entre a vida orgânica e a mola inanimada
mecanicamente retesada é que o ser vivo pode gerar nova tensão por si
mesmo" (REICH, 1979, p.159).
Auto-regulação, portanto, significa simultaneamente manutenção e
criação.
Reich começa utilizar este conceito no período em que está envolvido
com experimentos de laboratório, onde procura investigar as funções
vitais em organismos simples, talvez influenciado pelo fato de que, na
década de trinta, a auto-regulação torna-se uma constante nas
discussões de um grupo de cientistas que discordam da orientação
mecanicista e analítica que vinha sendo adotada pela biologia no
começo do século XX (BELLINI, 1993, p. 23-27).
Em busca de confirmação para sua hipótese de que a função do orgasmo
era fundamental para a compreensão da vida , Reich depara-se com a
questão da diferença entre o vivo e o não-vivo, e da biogênese. "Não
há dúvida de que a vida se distingue do não-vivo, pela origem interna
dos impulsos motores" (REICH, 1973b, p. 29). A auto-regulação aparece,
juntamente com o crescimento, a alimentação e a reprodução, entre as
características típicas sempre presentes nos processos vivos, regidas
pela função orgástica. Reich está justamente em busca das funções que
são comuns a todos os seres vivos, da ameba ao homem (REICH, 1979,
139).
Todo ser vivo é capaz de decisão, em algum nível. Qualquer animal,
diante de uma presa que está próxima a um grande perigo, necessita
escolher. Avança e recua diversas vezes, atraído pelo alimento e, ao
mesmo tempo, temeroso de ser apanhado. Ao cabo de algum tempo, ou se
atira à caça arriscando ser pego, ou então desiste e vai buscar comida
em outra parte. Embora, em geral, os animais estejam fadados a seguir
as ordens imperiosas de seu instinto, reagindo sempre de uma maneira
mais ou menos previsível, ainda assim possuem uma margem de opções.
Do ponto de vista reichiano, a liberdade é uma evolução coerente dessa
função comum a todos os seres vivos. O homem, no entanto, possui, além
da intencionalidade de suas decisões, um grau muito maior de
independência em relação aos mandamentos biológicos. Querendo, nega
seus instintos e opta por condutas nem sempre motivadas pela
satisfação imediata de suas necessidades; diante dos estímulos da
natureza (interna ou externa), escolhe livremente, dentro de certos
limites, as ações que sirvam a seus interesses e desejos. A liberdade
está, portanto, na base da própria formação da cultura. O homem pode
criar algo ainda não presente em seu funcionamento natural, justamente
porque não é prisioneiro de seus instintos.
No entanto, como vimos, a essa idéia opõe-se a de incompatibilidade
entre instinto e cultura . Neste entendimento, o homem só é capaz de
viver em sociedade e até mesmo de exercer sua faculdade de eleição se,
através da educação e da disciplina, deixar de ser escravo de seus
instintos.
Este paradigma, segundo Reich, assenta-se na estrutura do homem
encouraçado, que perdeu o contato com suas funções vitais básicas e
não compreende o funcionamento natural nas crianças. Não há oposição
entre liberdade e natureza desde que o indivíduo esteja funcionando em
uma economia energética satisfatória. "Definir liberdade é definir
saúde sexual" (REICH, 1988, p. 325).
"A vida, e com ela o impulso em direção ao prazer, não se desenrola em
um ambiente vazio, incondicional, porém sob determinantes naturais e
sociais" (REICH, 1975a, p. 191). A existência humana situa-se em um
processo dialético entre o que é dado e o que é criado. O homem não
está isento de limites para suas decisões, nem é absolutamente
condicionado pelo meio; é livre, não porque não seja submetido a
coações, mas justamente porque pode decidir diante dessas restrições.
A ausência de determinantes não significaria liberdade, mas sim
comportamento aleatório. Para que haja escolha é necessário que haja
opções.
Nos textos de Freud, Totem e Tabu (s/d) e O mal-estar na civilização
(1974b), a regulação moral emerge como indispensável. A renúncia
precisa ser imposta ao homem porque seus desejos não possuem qualquer
tipo de ordenação moral ou ética. Reich concorda que toda vida social
exige algum tipo de abstinência pulsional. Não seria possível o
convívio se cada um precisasse satisfazer todos os seus desejos assim
que surgissem. No entanto, há uma grande diferença entre a renúncia
que se exige de um indivíduo encouraçado, que por sua estrutura rígida
possui baixo grau de descarga e pouca satisfação pulsional, e a
abstinência auto-imposta por alguém com a economia sexual adequada,
sem alto nível de insatisfação, nem grande quantidade de energia por
descarregar.
Para Reich, o primeiro vive a privação como um sofrimento extremo, uma
frustração insuportável, cujo custo ele nem sempre está disposto a
pagar. Muitas vezes, apenas a grave ameaça de punição impede-o de
cometer atos que ele mesmo condenaria.
Já o segundo pode perfeitamente abdicar a um prazer momentâneo se
julgá-lo inadequado em um determinado contexto e tempo. Ora, este
indivíduo não funciona como uma bomba-relógio ambulante que necessita
de algum tipo de descarga a todo o instante. Pode postergar sua
satisfação, por estar ciente de que é capaz de saciar seus desejos
quando isso for mais conveniente (REICH, 1975a, p. 159).
Assim, há dois tipos de 'moralidade', mas apenas um tipo de auto-
regulação moral. Aquela 'moralidade' que todos afirmam ser auto-
evidente (não violentar, não matar, etc.) pode ser estabelecida apenas
se as necessidades naturais forem totalmente gratificadas. Mas a outra
'moralidade' que nós rejeitamos (abstinência para crianças e
adolescentes, absoluta e eterna fidelidade marital, casamento
compulsório, etc.) é em si mesma patológica e causa o próprio caos que
se sente requisitada a controlar. É essa moralidade a que nós nos
opomos inexoravelmente (REICH, 1986, p. 28).
O homem encouraçado precisa da pena de morte como ameaça (e satisfação
pulsional indireta) para que ele mesmo evite matar. Carece de um
código moral que o impeça de roubar, enganar, trair, trapacear ou
cobiçar a mulher do próximo, pois a renúncia a esses desejos
resultantes da perversão de suas funções vitais mais profundas lhe é
custosa. Já o indivíduo auto-regulado não possui uma pressão interna
por prazer irrefreável e pode, por isso, conter-se à espera de
momentos e modos mais adequados de satisfação.
Expresso de uma maneira mais simples, o que isto tudo quer dizer é que
o homem cujas necessidades sexuais, assim como biológicas e culturais
primitivas, estão satisfeitas não precisa de nenhuma moralidade para
manter o autocontrole (REICH, 1990a, p. 185).
A pessoa insatisfeita não vislumbra uma vida em sociedade que se
assente na auto-regulação e na abstinência auto-imposta, "não pode
imaginar uma vida ordeira sem leis compulsórias rígidas contra o
estupro e o assassinato sexual" (REICH, 1973a, p. 73). Não aceita a
crença na propensão do ser humano para a vida em sociedade por mais
que se diga que o homem é um ser social por natureza.
Reich não encara esta contradição como mera incoerência, mas procura
os fundamentos racionais que estão por trás dela. Sob o seu ponto de
vista, o portador do encouraçamento está coberto de razão. Apenas em
um novo paradigma, situado em uma nova realidade estrutural do
indivíduo, é possível pensar o autogoverno e a liberdade como
princípios norteadores do viver social humano.
Quanto à necessidade ou não de disciplinar a criança, o que se
questiona é se a natureza humana é boa ou má.
Reich procura enfocar o problema sob outro ponto de vista.
Todas as discussões sobre a questão de saber se o homem é bom ou mau,
se é um ser social ou anti-social, são passatempos filosóficos. Se o
homem é um ser anti-social ou uma massa de protoplasma reagindo de um
modo peculiar e irracional depende de que as suas necessidades
biológicas básicas estejam em harmonia ou desacordo com as
instituições que ele criou para si (REICH, 1975a, p. 201).
O homem de hoje, inserido neste contexto cultural específico, educado
em ambiente autoritário, com sua estrutura rígida e limitada, não está
em condições de decidir realmente o que é bom ou mau. Assim, apóia
suas convicções em uma instância superior que lhe dita o padrão moral,
deixando, desta maneira, o âmbito da razão e ingressando no território
do misticismo.
Para Reich, o universo é harmônico em todos os níveis. Por que seria o
homem uma aberração? O mais razoável é que participe de forma
integrada na natureza (REICH, 1973a, p. 286). O funcionamento natural,
portanto, é o melhor guia para as escolhas de seu modo de vida. Quanto
mais próximo estiver de suas funções inatas, mais capacidade terá de
valorar cada situação e de atuar livremente.
Entretanto, a afirmação de Reich de que a autonomia e a verdadeira
liberdade não devem ser construídas sobre o alicerce da adaptação
cultural, mas sobre as funções naturais do homem, não deve ser
interpretada como uma adesão a um conceito individualista de
liberdade.
Reich acredita que o homem é naturalmente um ser gregário. "Faz parte
das atitudes naturais o ser espontaneamente social" (REICH, 1975a, p.
162). Portanto, suas escolhas e opções necessariamente envolvem sua
convivência com o outro.
A liberdade, em Reich, é uma noção carregada de responsabilidade
social e do sentido de solidariedade, cujo cerne é o sentimento de
amor genuíno, possível apenas no indivíduo saudável, auto-regulado.
A Vida não gosta de caminhar sozinha (...) o que não lhe pode faltar é
o companheirismo, a camaradagem, a amizade, a familiaridade, a
intimidade, o encorajamento de uma alma compreensiva, a possibilidade
de se comunicar com alguém e de abrir o coração (REICH, 1999, p. 84).
É preciso lembrar o papel de destaque que tem o amor na teoria
reichiana. Desde os primórdios de seu trabalho, quando inicia a
discussão da potência orgástica e da saúde genital como parâmetros do
bom funcionamento humano, o amor aparece como ingrediente essencial de
uma vida mais plena e justa.
O amor abrange toda espécie de amor: amor de seus pais, o amor entre
um homem e uma mulher, o amor de seu vizinho e de seu inimigo, da
criança e dos cervos, o amor de Deus e o amor do mundo inteiro (REICH,
1999, p. 129).
Quando se examina o relacionamento social como um jogo de poder no
campo da política, infere-se que a convivência entre homens só pode
ser baseada na organização controladora que impeça cada indivíduo de
abusar do direito do outro. Mas, para Reich, pessoas em contato com
suas funções naturais são afeitas à troca e às privações baseadas no
amor e não em leis externas compulsórias.
Embora em seus últimos anos de vida, Reich se afaste de toda
participação política, sua atuação mantém um sentido de intervenção na
comunidade humana. Não vê sentido no indivíduo solitário, fechado em
seus domínios, aproveitando sua independência. A humanidade deve
emancipar-se como um todo, ou jamais irá alcançar a liberdade.
Sua proposta de democracia do trabalho sustenta-se no convívio
alicerçado no interesse do bem comum, que só será viável se a educação
tiver o sentido de preservar a capacidade de amar no educando. Baseia-
se nas interações humanas mediadas pelas "funções naturais do processo
de trabalho" que "são inteiramente independentes de qualquer tipo de
arbitrariedade autoritária e mecanicista. Funcionam livremente e são
livres no sentido mais rigoroso da palavra" (REICH, 1988, p. 331).
O intercâmbio social não pode ser fundamentado na liberdade que
termina onde começa a do outro. A noção de espaços estanques,
separados e respeitados reciprocamente é típica da estrutura da
couraça rígida, que percebe a si mesma e ao mundo divididos em partes,
e impede qualquer contato mais direto entre os indivíduos (REICH,
1973a, p. 116-119).
Ora, para Reich o homem é um animal social, que necessita do outro
para se completar e para se satisfazer. Não existe descarga orgástica
plena na solidão. Portanto, a liberdade só se realiza na inter-
relação, alimentada pelo impulso amoroso.
Isto não quer dizer obviamente que não haverá conflitos. Estes fazem
parte da convivência. Em Reich, liberdade é interação, que permite e
exige que cada um invada o espaço do outro, na construção de um espaço
comum. É o resultado da troca entre seres vivos, em relação dialética
de diferenças e pontos em comum, e do compromisso com a comunidade. "O
sentimento de responsabilidade em cada cidadão do mundo por tudo o que
está acontecendo, mesmo em cantos longínquos do globo" (REICH, 1999,
p. 296).
Esta interação pressupõe escolhas individuais e coletivas. A
verdadeira liberdade do homem desencouraçado dá margem ao surgimento
da ética, enquanto valoração e eleição de um bem comum.
No mundo do homem encouraçado não existem opções. As preferências já
estão estabelecidas de antemão pela própria couraça. "O ego do caráter
neurótico está completamente à mercê de seus mecanismos inconscientes
recalcados. Ele não pode agir de forma diferente mesmo se o
quiser" (REICH, 1990a, p. 183).
O sentimento ético surge exatamente do contato do homem com suas
funções naturais. Reich encontrou esta noção íntima em todos os seus
pacientes que retomaram seu funcionamento saudável. Essas pessoas, ao
contrário do que se poderia supor, não se tornavam escravas de pulsões
incabíveis em uma vida social. Embora cada uma recuperasse sua própria
individualidade, desejos, gostos e opiniões bastante diversas,
demonstravam também algumas direções comuns em seu comportamento. O
sentimento moral, que surge aliado ao contato profundo com as funções
vitais, manifesta uma ética da vida, da sociabilidade, do amor, da
curiosidade e do trabalho (REICH, 1975a, p. 157).
O sentimento ético natural não resulta em uma moral comum e
obrigatória a todos. Cada ser humano como indivíduo tem uma visão
própria do mundo e, portanto, uma ética pessoal. Tem também a
liberdade de agir de acordo com seu arbítrio, desde que tenha contato
genuíno com seus sentimentos.
Há somente uma regra comum válida para encontrar a verdade específica
válida para ti. Qual seja: aprender a ouvir pacientemente em ti mesmo,
dar a ti mesmo uma chance de encontrar teu próprio caminho, que é teu
e de ninguém mais. Isto não leva ao caos e ao anarquismo selvagem mas,
em última instância, ao reino onde a verdade comum a todos está
enraizada. Os caminhos de acesso à verdade são múltiplos e nenhum é
igual ao outro. A fonte de onde a seiva da verdade está fluindo é
comum a todos os seres vivos, muito além do animal homem. Isto tem que
ser assim, porque toda verdade é uma função da Vida viva, e a Vida
viva é basicamente a mesma em tudo que se move por meio da pulsação
(REICH, 1999, p. 245).
Neste quadro, a ética humana baseia-se no reconhecimento mútuo, tanto
naquilo que temos em comum, como na diversidade. Emerge do próprio
intercâmbio social, a partir de pulsões naturais que levam a esta
convivência.
A liberdade pressupõe ainda, na visão reichiana, a habilidade de
perceber e compreender cada situação, além de prever resultados para
as várias opções de ação. Isto é, em seu desenvolvimento desde a auto-
regulação simples do protoplasma, esta função especializa-se e destaca-
se no homem ao juntar-se à autopercepção e à consciência. A escolha
humana leva em consideração a representação simbólica das
conseqüências de cada ato, portanto está imbuída de intencionalidade.
Também neste ponto, é evidente o pareamento da liberdade com a função
vital saudável. "A pessoa encouraçada percebe a si mesma e ao mundo
como fenômenos complexos porque não tem contato imediato, nenhuma
relação direta com o mundo à sua volta" (REICH, 1973a, p. 72). Ao
mesmo tempo em que tem suas ações e pensamentos tolhidos pela rigidez,
sofre uma diminuição na capacidade de perceber a realidade, já que a
couraça funciona como um filtro. Nestas condições, suas escolhas são
feitas no escuro, sente-se insegura e reclama orientação externa.
Por seu lado, o homem cujo funcionamento vital foi preservado conhece
seus sentimentos e vê o mundo de maneira direta. É, portanto, presa
mais difícil para a manipulação ideológica.
Uma criança, cuja motilidade é livre e desembaraçada, raramente, ou
nunca, é suscetível à doutrinação e ao estilo de vida reacionário.
Enquanto a tímida, inibida em sua atividade motora, está sujeita a
toda degeneração ideológica (REICH, 1986, p. 252).
Essas considerações demonstram a forte conexão que se forma no
pensamento reichiano entre o tema da liberdade e o da educação, de
maneira que uma e outra se tornam praticamente indissociáveis no
projeto de mudança social e cultural para o futuro.
<><><>
Educação e Liberdade em Wilhelm Reich
parte III
Educação e liberdade
No pensamento reichiano, a liberdade torna-se valor central da
educação tanto em seus objetivos como em seus métodos.
Primordialmente, a educação deve ser para a liberdade como forma de
garantir a mudança que se faz urgente em nossa sociedade. Isso
significa que o homem necessita abandonar o sistema patriarcal
repressor que vem adotando há milhares de anos e buscar um modelo mais
compatível com as suas funções vitais.
É essencial que se tenha clareza das dificuldades presentes na
passagem do autoritarismo para a autonomia, assim como do papel dos
educadores nessa transição. Torna-se indispensável conhecer os
processos que geram o clamor por autoridade, em nossa cultura.
A função de auto-regulação não é mais o dilema. O maior problema agora
é - e continuará sendo por um longo período - como salvaguardar o
crescimento natural de crianças, como protegê-lo contra um tipo de
opinião pública que brota do animal encouraçado, rígido, sem vida,
amedrontado, sem esperança, o Homo normalis (REICH, 1973a, p. 128).
O fato de o homem encouraçado ser incapaz de vislumbrar o
funcionamento auto-regulado como fundamento para a vida social e para
a cultura assoma como enorme barreira à mudança.
Reich revela a contradição no projeto educacional moderno que advoga a
domesticação do animal existente na criança para a formação do homem
livre, cidadão autônomo. Critica a educação que visa uma segunda
natureza, eliminando o que é inato, e cujo objetivo é adaptar o homem
à sociedade através do controle disciplinar do corpo, meio utilizado
pela civilização do encouraçamento para obter a docilidade e a
subserviência. Esta pseudoliberdade baseada na coerção é que impede a
humanidade de recuperar a verdadeira independência. A repetição da
estrutura encouraçada de geração a geração, produzida pela educação
autoritária, é o principal empecilho à saída do homem de sua prisão.
O encouraçamento patológico e a peste emocional, que remontam ao
surgimento da sociedade patriarcal, são as funções que bloqueiam o
contato e o acesso do ser humano à sua natureza positiva. O pouco
contato que lhe é possível para além da superfície do encouraçamento
se estabelece com a camada secundária do sadismo e das pulsões anti-
sociais. Diante disso, não se pode abrir mão da moralidade rígida, sob
pena de se instaurar o caos. Constrói-se uma visão pessimista de
homem, uma concepção que se perde nos tempos e que chega aos dias de
hoje através da tradição judaico-cristã, e dos ideais de disciplina e
ordem como metas educacionais desenvolvidas pela filosofia na
modernidade. No século XX, a psicanálise, com suas hipóteses da pulsão
de morte e do conflito inevitável, surge como representante científica
deste paradigma, segundo o qual a natureza humana é má e precisa ser
educada - leia-se, domesticada - para que possa viver em sociedade.
Por outro lado, do ponto de vista rousseauniano, o homem é
essencialmente bom; a sociedade é que o corrompe. Embora mais próxima
da leitura reichiana do funcionamento do homem, esta corrente também
pressupõe uma oposição básica entre o funcionamento social e o
natural. Em Reich, o conflito existe apenas nesta civilização, tal
como ela é. Em outra realidade cultural, natureza e sociedade poderiam
se harmonizar.
Reich avizinha-se também das idéias de Rousseau na admiração que
demonstra pelo funcionamento saudável dos selvagens, especialmente
aqueles que se encontram sob o regime matriarcal, como os
Trobriandeses descritos por Malinowski. Porém, não se pode acusar o
pensamento reichiano de saudosista ou primitivista.
Não há espaço aqui para romantismo barato. Ele precisa ser substituído
pela luta em favor de uma organização humana dentro de um padrão
tecnológico mais alto, e de uma estrutura que nunca se permita
esquecer o processo de humanização. Esta nova ordem corrigirá o
desenvolvimento errôneo de muitos milhares de anos e permitir-nos-á
observar o quadro de um colonizador luxurioso, obeso e brutal, ele
mesmo uma vítima de nossa cultura vergonhosa, que é um verdadeiro
pesadelo (REICH, 1976, p. 130).
A proposta reichiana de educação para a liberdade não tem o sentido de
volta ao paraíso perdido ou de retorno ao primitivismo. Ao contrário,
demonstra clareza crítica em relação a todas as teses simplificadoras
do tema da repressão em nossa sociedade e da pureza do homem selvagem.
Reich preocupa-se com a ponte entre a humanidade que vive aprisionada
e as crianças do futuro. Esta transição tem por objetivo final uma
sociedade mais livre e justa, sem esquecer que, neste momento, a
retirada total das forças de contenção levaria ao caos. Deve
fundamentar-se, portanto, na distinção entre pulsões primárias (para a
vida) e secundárias (anti-sociais), com o sentido de favorecer as
primeiras e limitar as últimas. A mudança precisa ocorrer de forma
gradual e cuidadosa para que as forças da peste emocional não destruam
os esforços emancipadores e, numa onda de reação, deflagrem um quadro
mais negro ainda do que o atual. A educação é o palco em que esta
passagem pode acontecer.
Toda a esperança de uma libertação do homem através da educação reside
no fato de que as funções vitais básicas do homem dirigem-se para o
amor, a socialização, o crescimento, a criação e o conhecimento.
Portanto, o movimento civilizador não é alimentado pela sublimação das
pulsões sexuais; ocorre exatamente o oposto. Para Reich, todas as
grandes conquistas do homem aconteceram porque a força da vida tem o
condão de escapar à disciplina rígida e se manifestar nos mais
diversos campos da existência social, especialmente através dos gênios
que, na história, conseguiram manter o contato profundo com suas
funções vitais (REICH, 1973a, p. 294-295).
A educação coercitiva torna-se obstáculo, e não fundamento, para a
civilização.
A crítica reichiana à civilização da couraça desenvolve-se em momento
histórico significativo, durante o surgimento do nazismo, o
crescimento da ditadura stalinista, o desenrolar da Segunda Grande
Guerra, e nos anos do pós-guerra, com o advento da Guerra Fria, sob o
clima de tensão provocado pela corrida atômica. Neste contexto, Reich
julga propício acusar a incompetência do homem encouraçado para criar
um mundo melhor para as crianças do futuro.
A educação para a liberdade, portanto, justifica-se também pelo
direito das novas gerações de escolher seu próprio destino.
Reich ressalta as limitações, como educador, do homem atual, a quem
falta lucidez para decidir em nome de seus educandos sobre aquilo que
aprenderão com ele.
Não devemos ser os arquitetos deste futuro; não temos o direito de
dizer às nossas crianças como construir o seu futuro, já que nos
mostramos incapazes de construir o nosso próprio presente (REICH,
1983, p. 06).
É direito das gerações futuras escolher o que aproveitarão ou não da
experiência desta civilização e desenvolver uma relação própria com a
herança cultural, não mais como receptores passivos, mas como sujeitos
ativos.
A proposição educacional que prega a autonomia não pode pretender
ditar o futuro de seus pupilos. Trata-se de um exercício de humildade
dos educadores, que devem não só reconhecer suas dificuldades, como
aprender alguma coisa pela observação do funcionamento vivo nas
crianças; uma dose de autocrítica, que lhes permita ao menos duvidar
da validade universal de seus padrões. É preciso que tenham em mente
que muitos de seus valores lhes foram incutidos de forma arraigada por
sua própria educação, sob condições não favoráveis à manutenção das
funções vitais.
A exigência de prioridades e de conhecimentos básicos a todos não
encontra nenhum fundamento. Todo ser humano está apto a decidir e a
buscar o que lhe é importante e satisfatório. O educando, portanto,
escolherá por si mesmo o que irá aprender, obviamente influenciado
pelo meio em que interage.
O educador deve despir-se de pretensões a juiz do conhecimento. O que
hoje é considerado saber imprescindível, amanhã poderá ser desprezado,
e conteúdos atualmente desdenhados podem tornar-se importantes no
futuro. Isto é conseqüência do desenvolvimento humano,
independentemente do esforço de alguns grupos de impor suas idéias. A
história é o fluxo da vida, o que implica mudança. A concepção de um
progresso constante em que a informação apenas se soma e se
especializa, não se sustenta, porquanto a cada época uma nova visão de
mundo é concebida.
A autonomia do educando só é viável dentro de uma proposta mais ampla
de educação pela auto-regulação que preserve nas novas gerações não só
a sua capacidade de escolha, mas também a sua curiosidade natural. Uma
vez destruída esta função, qualquer tentativa de não-diretividade
resultará em inércia, rebeldia e vandalismo, favorecendo à educação
autoritária argumentos fundados na situação que ela mesma gerou.
Não se defende, contudo, que os educadores abdiquem de suas
responsabilidades, nem de suas opiniões pessoais. A crítica de Reich à
civilização mecânico-mística não o leva à atitude niilista, nem ao
desprezo do saber acumulado. Tal postura não teria sentido no homem
que dedicou seus esforços à ciência. A história de luta por suas
idéias demonstra seu comprometimento com o futuro assentado sobre o
trabalho e o conhecimento. Também a sua atuação - seja como formador
de profissionais da saúde no âmbito da psicanálise e na orgonomia,
seja como coordenador de grupos de orientação sexual e de educação -
não deixa dúvidas quanto ao papel ativo que reserva ao educador.
Entretanto, o professor não tem uma ascendência natural sobre o aluno.
A única autoridade reconhecida por Reich é a do trabalho produtivo e
do conhecimento efetivo. O ensino deve ocorrer em bases igualitárias,
de forma que o aprendiz não sinta a atividade docente como imposição,
mas como cooperação. Isto só é possível, claro, fora dos parâmetros do
autoritarismo.
A meta mais importante na proposta reichiana é a preservação da
autonomia do educando, isto é, da confiança em suas próprias
percepções e interpretações. Nessas condições, as convicções do adulto
não mais se apresentarão para o infante como versão oficial, ou
verdades inquestionáveis, mas sim, como aquilo que de fato são: pontos
de vista a serem considerados. Será possível, então, estabelecer um
diálogo verdadeiro de valores e idéias entre educador e educando, sem
que isto lhe cerceie a capacidade de escolha.
Já a criança treinada para adaptar-se à nossa cultura desenvolve
bloqueios, perde contato com suas funções vitais básicas e torna-se um
indivíduo carente da aprovação externa para seus atos e opiniões.
Então, já não se pode mais falar nem em autonomia, nem em
independência de idéias, muito menos em troca paritária entre adultos
e jovens.
O ideal da educação para a liberdade só evolui em uma relação de
confiança, na certeza de que o sujeito verdadeiramente livre e
autônomo escolherá melhor. A liberdade não pode ser limitada por
receios de que o homem se mostrará incapaz para a vida. "Nós devemos
confiar nas raízes naturais de nossos bebês e assentarmos sobre elas o
futuro da cultura e da civilização" (REICH, 1983, p. 67).
Uma vez constatada a necessidade de uma educação para a liberdade,
resta saber como este objetivo maior será alcançado. Esta questão, no
entanto, precisa deixar a esfera do debate metafísico e aproximar-se
dos problemas do dia-a-dia de pais e educadores. A discussão puramente
intelectual da auto-regulação na criança pode tornar-se mais uma forma
de evasão.
Reich não sugere um modelo fixo de pedagogia da liberdade. Toda
sistematização deste tipo tende à imobilidade e, portanto, desfavorece
o fluxo da vida. Reich não quer que seu pensamento seja aprisionado
pelas forças da inércia, do estático e do absoluto (REICH, 1973a, p.
43-44). Prefere estabelecer alguns princípios básicos a serem
preservados nas propostas de educação que visem a liberdade.
O educador do futuro fará sistematicamente (e não mecanicamente) o que
todo educador bom e autêntico já faz hoje: sentirá as qualidades da
Vida viva em cada criança, reconhecerá suas qualidades específicas e
fará tudo para que elas possam desenvolver-se plenamente (REICH, 1999,
p. 11).
Entre esses princípios figura o de não restringir a motilidade
vegetativa da criança, segundo o qual todos os procedimentos que a
impedem de se mover interna e externamente são evitados. Em seu lugar,
procuram-se soluções que propiciem um desenvolvimento vivo, calcado no
próprio ritmo da criança. "A vivacidade do recém-nascido necessita
vivacidade no seu ambiente" (REICH, 1983, p. 123). Deve-se favorecer à
criança um ambiente alegre e variado, em que possa se relacionar com
olhos vivos. Suas manifestações emocionais precisam ser aceitas. Tudo
isso requer a capacidade do educador para suportar as manifestações de
vida do educando; caso contrário, os mecanismos da peste emocional
interferirão em sua atitude.
A motilidade vegetativa expressa-se especialmente nas emoções e na
habilidade de perceber as próprias sensações e afetos. Em seus
Experimentos bioelétricos sobre a sexualidade e a angústia (1982),
Reich comprova que indivíduos com maior flexibilidade emocional
conseguem prever, através de suas sensações internas, as intensas
alterações eletromagnéticas detectadas em sua pele, enquanto os
rígidos apresentam baixa reação e são incapazes de descrevê-la (REICH,
1975a, p. 308). Reich demonstra também a relação direta entre o
encouraçamento, com a respectiva perda da motilidade vegetativa, e a
diminuição da capacidade de contato consigo mesmo.
Para que o educando mantenha a autopercepção acurada, não deve ser
tolhido em sua expressão emocional de forma desnecessária. É certo que
crianças assim criadas não serão ordeiras, calmas e silenciosas, como
gostariam muitos adultos. São por natureza ruidosas, vivas, agitadas.
"Barulho é um fenômeno natural à infância, e a escola de carteiras,
suprimindo-o, está trabalhando diretamente contra a natureza da
criança" (NEILL,1978b, p. 171). Escolas que desenvolvem um trabalho
dirigido para a liberdade do educando são coerentemente barulhentas.
Quem não quer estar próximo da agitação provocada pela vida, não
deveria se envolver com a educação.
Qualquer educação em prol da autonomia deve também favorecer a
atividade motora, de forma que a criança desenvolva, na prática, suas
experiências.
A questão do manejo da atividade motora da criança leva-nos ao foco
dos problemas pedagógicos. De um modo geral, é tarefa do movimento
revolucionário liberar as pulsões biológicas do homem, recalcadas e
aprisionadas, satisfazendo-as (REICH, 1986, p. 252).
Deve-se permitir à criança o exercício da atividade física de uma
forma não dirigida, nem organizada externamente. Costumes como enrolar
bebês com panos de maneira a impedir sua mobilidade, prender suas mãos
para que não toquem os genitais, e quaisquer procedimentos que
diminuam sua possibilidade de mover-se são desaprovados (REICH, 1983,
p. 136). Também é indesejável a educação dos bons costumes, que exige
que a criança permaneça quieta em posições rígidas à mesa, não faça
bagunça ou barulho, domine seu corpo, e sempre se dirija ao adulto com
atitude submissa, negando-lhe assim a satisfação de seus impulsos
naturais (REICH, 1975a, p. 297).
Nas escolas tradicionais, os estudantes permanecem às vezes por horas
sentados em carteiras, sem possibilidade de se levantar e atender a
seu ímpeto para o movimento. Nos momentos reservados à prática física,
são recrutados para exercícios mecânicos ou jogos organizados. O
desenvolvimento para a liberdade pressupõe amplo espaço para o brincar
e para a atividade não organizada. As crianças deveriam poder correr à
vontade, subir em árvores, inventar suas próprias brincadeiras, da
forma mais independente possível, sem monitoramento ou interferência
de adultos.
A educação deve, antes de tudo, visar o prazer. Ao planejar e ao
avaliar as condutas e procedimentos adotados, a presença da satisfação
será o guia para assegurar a permanência do funcionamento vital no
educando (e, também, no educador). Isto não significa, é claro, que
não haverá desprazer. O contentamento também pode ser alcançado
através de atividades que geram angústia antes de sua resolução.
É verdade que situações desagradáveis são inevitáveis, porém a
atividade baseada no dever moral, na compulsão, na obrigação e na
falta de interesse genuíno é caminho certo para a construção do
encouraçamento, já que este é constituído na defesa ao desprazer e à
angústia (REICH, 1975a, p. 159). O envolvimento prazeroso por parte do
educador e do educando é a medida mais eficaz para que se assegure o
acerto da proposta de formação que vise à manutenção da flexibilidade.
É preciso diferenciar, no entanto, a utilização do prazer como
referencial pedagógico da busca de deleite puro e simples, como um fim
em si mesmo. O que se procura não é o gozo momentâneo, mas a
satisfação duradoura presente na atividade engajada que segue o ritmo
das necessidades naturais, em um ambiente favorável à vida. A volúpia
consumista e a licenciosidade, proporcionadas por pais que tentam
contrabalançar o sentimento de culpa por não dar a devida atenção a
seus filhos, não se encaixam nesta definição, pois sua característica
principal é a insatisfação. Essas crianças, apesar dos incessantes
agrados, nunca se contentam, já que essas compensações não lhes
restituem o bom funcionamento da economia energética.
Todo projeto educacional deve, por tudo isso, adaptar-se às
necessidades da criança e não a princípios filosóficos, ou morais de
qualquer tipo.
A apregoada civilidade futura não justifica a disciplina enfadonha nem
o sacrifício da criança. A auto-regulação das funções vitais, dos
desejos e das carências, em todos os momentos da vida humana, são as
garantias de crescimento afirmativo à vida.
O reconhecimento do infante como ser vivo, em vez de futuro cidadão,
eliminaria todas as complicações de um só golpe, uma vez que as
instituições estariam preocupadas com as necessidades vitais da
criança (REICH, 1973a, p. 57).
A felicidade da criança no presente é o que mais importa e os
educadores dever-lhe-iam dispensar maior atenção do que aos objetivos
educacionais direcionados para o porvir. A satisfação e o bem-estar de
hoje são indicadores mais seguros de um futuro promissor do que
qualquer fantasia especulativa, que muitas vezes reflete apenas os
desejos inconscientes dos adultos.
Reich, após examinar a tendência de diversas comunidades religiosas e
políticas de tentar adaptar os infantes aos princípios morais e
filosóficos de seu grupo, afirma: "Nós queremos que eles sejam eles
mesmos" (REICH, 1983, p. 14).
Nossa tarefa é proteger esse processo contra a peste maligna,
salvaguardar seu crescimento, aprender a tempo o que distingue uma
criança que cresceu como a Vida prescrevia, de uma criança que cresceu
como prescrevia o interesse desta ou daquela Cultura ou Estado ou
Religião ou Costume ou idéia estrábica da Vida (REICH, 1999, p.
307-308).
Este princípio foi expresso em algumas recomendações simples e
aparentemente óbvias que, no entanto, não são práticas habituais no
cotidiano. Reich sugere que o bebê, após o nascimento, seja mantido
junto à mãe para que possa contar com seu calor e carinho, além de ser
amamentado. Propõe também que o ambiente em que a criança cresce,
assim como sua rotina, leve em conta seu ímpeto à ação e à liberdade.
O enfeite de cristal no centro da sala é caminho certo para que seja
preciso controlá-la. A presença de muitos objetos perigosos ou
quebráveis sempre dificultará a tarefa da educação mais livre. No
geral, nenhuma atividade deve ser exigida a não ser que exerça um
papel realmente importante no desenvolvimento das funções vitais da
criança.
No âmbito escolar, toda a estrutura precisa se acomodar às
necessidades do aluno, e não àquelas da instituição e dos educadores.
A escola deve ser um espaço da vida, e para a vida, um local onde o
educando possa dar vazão a seus impulsos. O ambiente deve favorecer a
atividade motora, a flexibilidade e a criação e, ao mesmo tempo,
permitir ao educando expandir sua curiosidade e sua atividade
produtora. Toda a rotina deve ser planejada de forma a atender às
solicitações básicas do desenvolvimento infantil. Não é a criança que
se adapta à escola, mas esta que deve se lhe adequar.
Finalmente, o princípio fundamental da proposta reichiana de educação
é o da preservação da auto-regulação biológica no bebê, na criança e
no adolescente, como garantia da manutenção das condições essenciais
para o desenvolvimento da liberdade no homem.
A educação para a liberdade precisa também ser uma educação pela
liberdade. Esta, como uma expressão da auto-regulação biológica e da
função criativa da vida, é imprescindível para o funcionamento
saudável.
Considerando que a auto-regulação é inerente à estrutura natural do
recém-nascido, Reich ressalta que enquanto as crianças deveriam ter um
desenvolvimento natural, nós deveríamos deixá-las viver conforme a sua
natureza, se preciso, mudando as instituições que impossibilitam o
acesso à sua "moralidade natural" e provocam encouraçamentos que
comprometem a sua auto-regulação (MATTHIESEN, 2001, p. 163).
O primeiro a utilizar o termo auto-regulação no contexto da educação e
da economia sexual foi um colaborador de Reich, Tage Philipson, que
discute o tema no artigo intitulado Educação econômico-sexual (1942),
publicado no final dos anos trinta na Europa, e traduzido para o
inglês no começo da outra década para a revista de Reich nos Estados
Unidos. Philipson preconiza que o bebê e a criança regulem tanto
quanto possível suas atividades comuns do dia-a-dia, desde a
alimentação até as brincadeiras. Para ele, é importante que satisfaçam
ao máximo suas carências instintivas primárias para evitar que
desenvolvam pulsões secundárias. A função principal da educação seria,
portanto, preservar-lhes a autodeterminação que está presente desde
seu nascimento, tornando a tarefa de adaptação à realidade o menos
desagradável possível. O prazer de movimentar-se, conhecer o mundo e
relacionar-se afetivamente deve ser protegido, para que não se
transforme em frustração e angústia.
Reich e seus discípulos orientam mulheres grávidas a manter elas
próprias uma boa economia sexual, de forma a proporcionar a seus
filhos um ambiente (o útero) vivo e pulsante, uma vez que o feto
desenvolvido em útero frio e espasmódico já trará consigo prejuízos em
sua motilidade reguladora. Discutem também os procedimentos de parto,
e de trato com o educando desde os primeiros dias, preocupando-se com
todas as atitudes que podem ou não favorecer a manutenção da auto-
regulação: liberdade para que o bebê estabeleça o horário, a
freqüência e a quantidade de suas mamadas, que as crianças determinem
quando e o que farão e que descubram seus interesses; treinamento de
banheiro; definição das horas de sono; e estabelecimento de condições
para que os jovens possam ter uma vida sexual adequada (REICH, 1983,
p. 10-12).
As indicações gerais ou particulares discutidas por Reich e seus
seguidores reforçam a noção de que a liberdade precisa ser vivenciada
na própria educação, para que se desenvolva da simples auto-regulação
do recém-nascido à capacidade de escolha madura e independente no
ambiente das relações sociais. O princípio básico é que a criança
regule suas funções vitais da forma mais autônoma possível.
Ao contrário do que poderia supor um crítico superficial - e muitos
fizeram esta ressalva às propostas reichianas -, não se está sugerindo
que os educandos façam o que quiserem, sem limites, nem
responsabilidades. A liberdade, como já se disse , é uma função que
pressupõe a interação social e o compromisso. Longe de negar a
possibilidade de qualquer coação à criança, Reich propõe que, com suas
funções vitais básicas razoavelmente satisfeitas, esta é capaz de
adotar regras básicas de convivência, decididas em comum com as
pessoas de sua comunidade. Assim, liberdade nunca é confundida com
licenciosidade. Reich, no entanto, deixa claro que esta diferenciação
não pode ficar a cargo do homem encouraçado, que interpreta qualquer
satisfação pulsional como transgressão às leis morais que sustentam a
civilização. Esta distinção só pode ser feita por pessoas que possuam
um funcionamento vital adequado. "A auto-regulação na educação de
crianças recém-nascidas não funcionará em mãos que não souberem o que
é uma decisão ou ação espontânea" (REICH, 1999, p. 263). Ao educador
cabe examinar os limites de seu próprio encouraçamento, ao mesmo tempo
em que deve assimilar os princípios básicos do funcionamento auto-
regulado, apreendendo-os tanto de forma teórica como pessoalmente.
A auto-regulação manifesta-se - e deve ser preservada - especialmente
nas atividades que se relacionam diretamente com a economia energética
do organismo. É evidente que nem sempre as condições concretas
permitirão a autodeterminação por parte da criança. O ambiente não
estará sempre totalmente adaptado ao seu ritmo. O importante é que as
privações não a obriguem ao encouraçamento. Se a economia energética
for mantida em regulação satisfatória, as eventuais frustrações farão
parte de seu aprendizado e amadurecimento. Saber o que é inevitável
impor ao infante é tarefas das mais complicadas, que exige do educador
uma boa dose de contato consigo mesmo e com a realidade.
Por exemplo, todo ser vivo é capaz de regular a própria alimentação,
mas o homem interfere no comportamento de seus bebês, impondo-lhes
horário, quantidade e qualidade, o que termina por destruir seu
contato interno. Mais tarde, esses indivíduos precisarão de orientação
externa, que lhes indique o que devem ou não comer. Enquanto crescem
os problemas com o péssimo padrão de nutrição, a obesidade e a
anorexia, os adultos continuam a julgar-se credenciados a determinar
como a criança deve se alimentar.
A função-chave para a manutenção do funcionamento vital é a orgástica,
que deve estar presente em todo o processo de formação humana. Ao
educando é preciso dar condições de exercer sua sexualidade da forma
mais livre possível, desde a primeira infância. A masturbação infantil
e os jogos sexuais entre crianças precisam ser vistos não mais como
mácula ou contaminação, mas como parte indispensável do crescimento
saudável, aprendizado e vivência essenciais ao bom desenvolvimento da
sexualidade adulta.
A presença da função orgástica também precisa ser observada em todas
as áreas, mesmo que não relacionadas diretamente com a sexualidade. A
característica da vida é funcionar no ritmo de quatro tempos definido
pela fórmula do orgasmo . Esta seqüência inicia-se com a tensão
mecânica seguida pela carga energética e completa-se com a descarga
energética seguida pelo relaxamento mecânico. Todas as atividades
humanas, portanto também aquelas presentes na educação, devem ser
regidas por esta seqüência de eventos (ALBERTINI, 1994, p. 88).
A constante falta de descarga orgástica adequada resultará na perda da
auto-regulação e no encouraçamento. Assim, a ausência de satisfação e
relaxamento, ao final das atividades infantis, é um sinalizador de que
algo não vai bem na prática educacional. A característica básica de
toda ação engajada, no sentido vital, é de iniciar num crescendo de
tensão e carga energética e terminar em uma descarga e relaxamento,
com o prazer que lhe corresponde. O educador deve conferir se essas
fases estão se sucedendo, se quiser avaliar o funcionamento vital do
educando. O funcionamento orgástico não é suscetível de ser produzido,
nem induzido, uma vez que tem por essência a espontaneidade, mas sua
escassez é detectável, assim como as causas de seu bloqueio ou
perturbação, sendo possível assim eliminá-las.
Em vista da situação encontrada hoje na cultura, não basta à educação
para a liberdade dar condições ao educando de desenvolver-se de acordo
com suas funções vitais. Aqui e ali, ele fatalmente encontrará
dificuldades incontornáveis, e a couraça poderá instalar-se. Reich
propõe então que os educadores em geral, sejam eles pais, pediatras ou
professores, devem adquirir conhecimento sobre o encouraçamento, de
forma a atuar nestas situações, impedindo que este processo se
solidifique e cause o enrijecimento patológico da personalidade. Os
educadores devem preparar-se, portanto, para prestar uma espécie de
primeiros socorros contra o encouraçamento (REICH, 1983, p. 45).
O tema da auto-regulação atinge diretamente a instituição escolar em
dois de seus aspectos fundamentais: a estrutura de funcionamento com
suas relações de poder e a organização dos conteúdos.
A experiência de Neill (1945b, p. 115-120) com o autogoverno praticado
pelos alunos juntamente com os professores, através de assembléias
semanais competentes para criar leis e aplicar punições, evidencia uma
nova visão na organização dos poderes na escola, que se torna um
grande aprendizado de liberdade com responsabilidade, apenas possível
no paradigma da auto-regulação.
Experiências educacionais baseadas no autogoverno têm demonstrado que
o educando que cresce em ambiente verdadeiramente democrático - em que
todos, inclusive crianças desde os cinco anos, têm direito a voto com
o mesmo peso, e participam das decisões que definirão o cotidiano do
grupo - desenvolve uma autonomia e uma responsabilidade social
impensáveis na realidade educacional autoritária, em que as resoluções
são sempre ditadas de cima para baixo. O autogoverno na escola é o
caminho mais propício para o aprendizado de convívio social.
A prática cotidiana de uma proposta democrática obriga a desenvolver
mecanismos para superar esses conflitos, sem recorrer a uma autoridade
moralizadora, e é nesse processo que as crianças se tornam mais
tolerantes e responsáveis por seus atos (SINGER, 1997, p. 165).
Com relação à escolha dos conteúdos escolares, já apontei acima a
necessidade de se legar às novas gerações o direito de dirigir o seu
próprio processo de aquisição de saber . A grande dificuldade em
aceitar este princípio está na noção bastante inculcada em nosso
pensamento ideológico educacional de que a criança precisa ser
obrigada a aprender, senão se restringirá às brincadeiras e não
procurará adquirir novos conhecimentos.
Ora, a prática simbólica é essencialmente humana. O homem busca o
conhecimento, não porque é disciplinado para isto, nem porque
substitui o seu interesse sexual por outros culturalmente superiores -
como sugere a psicanálise -, mas, segundo Reich, porque a curiosidade
e a busca de saber são funções básicas da vida humana, expressões da
autopercepção e da consciência. "Crianças saudáveis, em quem a vida
funciona livremente, descobrem e utilizam o processo da vida como se
fosse um jogo (...) são os maiores cientistas naturais" (REICH, 1976,
p. 258).
Toda ação disciplinadora ou repressora da curiosidade infantil impede
o desenvolvimento da função básica de aprendizado. A criança, cujas
preocupações com a sexualidade não são esclarecidas, ocupará grande
parte de seu tempo com elas e não terá disponibilidade para informar-
se de mais nada. O aluno levado a estudar compulsoriamente o que não
lhe atrai, perde o contato com sua curiosidade natural e com seus
verdadeiros interesses. Além disso, aprender passará a ser uma
obrigação e não mais um prazer.
As pesquisas orgonômicas demonstraram que hoje ninguém sabe como um
ser humano se desenvolveria se não encontrasse obstáculos em seu livre
desenvolvimento. Mas demonstraram também que quanto mais livremente
vive um ser humano, tanto maior é a sua capacidade de aprender a
realidade e de utilizá-la de maneira eficaz... (RAKNES, 1988, p. 104).
A liberdade para aprender é, portanto, um direito do educando, mas
também uma necessidade prática. É importante a preservação da função
vital básica de aprendizado prazeroso, um dos principais motores do
sentimento de realização para o ser humano, tanto nos primeiros anos,
sob a influência das instituições educativas, como durante sua vida
como adulto. O embotamento desta capacidade causa o sentimento de
vazio, pela falta de interesse e, especialmente, pela supressão da
satisfação no trabalho.
Na abordagem reichiana, o trabalho não tem como finalidade apenas
criar os bens necessários para a sobrevivência, mas o próprio empenho
produtivo é motivo de realização e satisfação.
Para Reich, o ser humano em seu funcionamento mais saudável e natural
tem interesse ativo no desenvolvimento do trabalho, permitindo que
siga seu próprio curso. Seu interesse está focado fundamentalmente no
próprio processo. O resultado é alcançado sem esforço especial, pois
resulta espontaneamente do envolvimento. A configuração final do
produto através do percurso do processo produtivo é uma característica
essencial do prazer biológico do trabalho. É um alerta para uma
rigorosa condenação de todos os métodos de educar por meio de
brinquedos que dirijam a atividade da criança. (...) Uma criança que
junta uma casa pré-planejada com blocos pré-programados de uma forma
pré-estabelecida não aplica sua imaginação nem desenvolve nenhum
entusiasmo. Compreende-se facilmente que esta característica básica da
educação autoritária constitui parte da angústia de prazer nos
adultos. Ela tem um efeito bloqueador sobre o prazer no trabalho da
criança (REICH, 1990a, p. 517).
A educação enquanto mediadora da prática produtiva deve considerar o
trabalho sob o ponto de vista da satisfação e de sua função formadora
da vida humana.
Educadores e educandos devem envolver-se com suas atividades de forma
a manter o interesse e o prazer. O trabalho criativo é o contrário do
trabalho mecânico-compulsivo. Este pode aliviar a angústia, mas não
traz descarga e contentamento. O trabalho e o aprendizado prazerosos
são funções básicas na economia energética do homem e, portanto, um
desafio ao educador.
As qualidades essenciais para um trabalho satisfatório e vivo só serão
alcançadas em um ambiente que privilegie a auto-regulação e a
liberdade. Muitos se perguntam se a educação que não ensina a
disciplina para o trabalho compulsivo prepararia adequadamente os
aprendizes a viver em nosso mundo. Esta é, sem dúvida nenhuma, uma
visão bastante limitada de adaptação cultural. A proposta reichiana
para a educação pressupõe a transformação deste mundo. E, mesmo neste
quadro atual, o trabalhador restrito a executar funções mecânicas que
lhe são designadas autoritariamente tornar-se-á inexoravelmente um
integrante das classes exploradas, com mínima chance de escolha. Já
aquele que possui autonomia e criatividade coloca-se de maneira mais
interessante no mercado de trabalho, nas condições presentes hoje.
A argumentação em favor do treinamento ao trabalho compulsivo é
resultado da racionalização urdida pelo indivíduo encouraçado para
encobrir o medo da liberdade. O que assusta não é o perigo de que a
criança criada livremente se torne desajustada, mas a rica variedade
de opções disponíveis para seu crescimento.
Essas observações sobre a importância do trabalho criativo na educação
encerram este meu exame das propostas reichianas. A auto-regulação e a
liberdade apresentam-se como centros de irradiação dos quais surge
esta abordagem ampla e original aos objetivos educacionais e à sua
prática.
A reflexão reichiana sobre a educação deposita suas esperanças na
preservação das funções básicas da vida - amor, trabalho e
conhecimento -, propondo como meta suprema a preservação e a
recuperação da auto-regulação, e o florescimento da liberdade.
A liberdade não tem que ser conquistada, dado que existe
espontaneamente em todas as funções da vida. O que é preciso
conquistar é a eliminação de todos os obstáculos à liberdade (REICH,
1988, p. 333).
Apenas a educação calcada nesses princípios preservará a autonomia e a
vitalidade nas novas gerações, que, assim, se tornarão capazes de dar
novos passos em direção ao convívio social mais justo, fundamentado na
cultura afirmativa da vida, passos estes inimagináveis para a
estrutura emocional do homem em nossa cultura atual.
São colocações que, por mais que soem utópicas, merecem consideração.
Qualquer proposta que as ignore naufragará em meio ao jogo de poder
político e à peste emocional.
Reich nunca chegou a reunir todas essas discussões em uma única obra ,
provavelmente em razão de sua prisão e conseqüente morte prematura.
Este meu trabalho, tendo sido fundamentado na pesquisa dos muitos
comentários esparsos sobre o tema encontrados nos escritos de Reich,
pretende demonstrar, ainda que preliminarmente, a sua inegável
contribuição para a educação e a liberdade.