Imagens de violência -o desdobramento da subjetividade em Pulp Fiction

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Hannah BLUE

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Nov 28, 2007, 12:42:12 AM11/28/07
to Midiateca da HannaH
Universidade de Brasília
Faculdade de Comunicação
Programa de Pós-Graduação
Juliana Martins Ferreira
Orientador: José Jorge Carvalho


Agradecimentos


Agradeço ao leitor desavisado, quem sabe anônimo, que venha por
curiosidade ou impulso preencher essas páginas com o seu olhar.
Agradeço a quem virá e a quem já veio, pelas longas conversas ao
telefone com André, pela delicadeza de Raymunda, pela destreza de Ana,
esses meus colegas de jornada e sobre tudo amigos. Agradeço pela
paciência e pelas traduções de Fernanda. Agradeço aos meus
orientadores José Jorge, Rita e Dácia pelo banho de erudição. Agradeço
à minha família pelo constante suporte e incentivo, principalmente a
Ana Paula pelos inestimáveis favores de irmã zelosa, a Daniela pela
tranqüilidade e a minha mãe pela compreensão e carinho. Agradeço a meu
pai pelas lembranças e aos meus sobrinhos Osmar e Fábio pelo que ainda
está por vir.



Índice






Resumo _____________________________________________ 04

1. Prólogo____________________________________________ 05

2. Vincent Vega e a esposa de Marcellus Wallace ____________ 34

3. O Relógio de Ouro ___________________________________ 62

4. Jules, Vincent, Jimmie e The Wolf/A Situação Bonnie _______ 86

5. Epílogo ____________________________________________ 102

Bibliografia ___________________________________________ 112

Resumo

A experiência do cinema desenvolve-se para o espectador como forma de
afecção com a imagem. O processo de afecção ocorre continuamente assim
como a imagem em fluxo na duração do filme. Esse fluxo promove um
desdobramento no mapa da subjetividade. Por sua vez, o desdobramento
ora é agenciado pela imagem, ora acontece como devaneio em sua carga
mais subjetiva. Pretende-se, então fazer uma aproximação entre a
subjetividade em devir e a imagem em movimento no contexto da teoria
deleuziana. O que surge na superfície da imagem como território
percorrido pelo espectador é o desdobramento da subjetividade como um
processo marcado pela violência - tanto a violência estrutural da
narrativa quanto a violência da imagem aparente no esgotamento do
discurso. Para explorar mais propriamente a questão da violência como
forma de afecção no cinema foi selecionado o filme 'Pulp Fiction' -
Tempo de Violência como base da análise na relação entre o sujeito e a
imagem cinematográfica na exploração de uma nova sensibilidade da
violência.


Abstract

An audience's cinematographic experience occurs through its
interaction with an image. Such a process flows as continuously as the
images in a motion picture, causing each individual's subjectivity to
unfold in the map of subjectivity. This unfolding is either promoted
by the image, or happens as an imaginative experience. This
dissertation aims at establishing a relationship between the
audience's growing subjectivity and the motion picture in the light of
Deleuzian theory. The result of such a relationship is the development
of the audience's subjectivity as affected by violence - whether one
considers structural violence in the narrative or the violence
resulting from the superfluity of the discourse. In order to explore
the issue of violence properly, 'Pulp Fiction' has been selected for
the analysis of the interaction between an individual and the
cinematographic narrative while examining a new sensitivity to such
violence.

1. Prólogo

Apresentação: objetivo, hipótese, questão.

O objetivo do projeto é mostrar como a imagem agencia enunciados
subjetivos, como um efeito-sujeito, por meio de experiências
compartilhadas oferecidas pelo cinema, e como a violência da imagem é
refletida neste processo. O objeto de pesquisa está circundado na
relação entre a violência como estratégia de redimensionamento, ou
reposicionamento, do sujeito dentro de uma perspectiva estética e
discursiva no cinema. E como essa violência discursiva pode integrar e
também quebrar estruturas narrativas, corrompê-las, estabelecendo
assim uma violência estrutural, uma 'crueldade necessária', como
aquilo que mobiliza e faz as ações acontecerem. A partir dessa
violência estrutural, há uma reformulação da sensação de tempo na
imagem, que avança para uma condensação de uma imagem cristal, ou
melhor, uma imagem clara e direta, a qual o discurso não alcança. Ou
em outras palavras, a imagem tem força por si só.
A imagem se consolida como uma a-presentação do ato violento, não uma
re-presentação. É ponderada, também, a imposição brutal da concretude
da imagem transcrita em imaginação como um processo de internalização
abstrata da violência. Trata-se da apresentação de uma violência
latente como lócus coletivo em que a subjetividade se desdobra por
meio de linhas narrativas múltiplas encenadas pelas imagens.
Em primeiro momento, a análise parte da formação do sujeito com base
em uma estética da violência dentro da narrativa cinematográfica. Em
um segundo momento parte da estetização ou estilização da violência
que impõe o deslocamento da subjetividade dentro de uma percepção da
imagem do cinema, como explanação de uma experiência de afecção. Como
a afirmação de Schefer: "o cinema é a única experiência em que o tempo
me é dado como percepção" - em que o encadeamento das imagens se dá
numa 'ilusão' do movimento e numa apreciação direta do tempo.
Delineia-se, então, uma análise que envolve a relação linguagem/cinema
e que define abordagens sobre as bases de pesquisa: o tratamento da
linguagem cinematográfica como uma anunciação subjetiva, a imagem de
violência como forma de expressão subversiva que atravessa a formação
da subjetividade. Sendo que o modo de tratamento da linguagem
cinematográfica interfere e está ligado diretamente na temática da
imagem violenta como deslocadora no processo de formação de
subjetividade.
O objeto de análise foi suscitado por uma inserção, cada vez maior, do
uso da violência nos filmes de maneira geral. A recorrência do uso da
violência tem uma importância teórica que redefine as propostas da
linguagem no cinema porque incita a uma revisão da relação espectador/
filme e dos cortes de montagem que irrompem em uma não linearidade
narrativa.
A proposta de análise engendra uma reavaliação do objeto filmográfico
que atravessa três fases. A primeira é a inserção da imagem como um
componente da subjetividade, como fator de percepção do mundo e de
afecção, na capacidade de articulação do indivíduo com as imagens que
penetram no imaginário.
Após essa premissa há a apresentação do objeto - no caso, a
aproximação do cinema com a formação de subjetividade, e como essa
subjetividade é cortada, moldada, descartada, apropriada como erupções
do desdobramento do desejo por violência.
A última fase revela um aprofundamento das questões que o filme
apresenta. A seleção do filme para a exploração do tema partiu de
critérios que definem um estilo de linguagem que associa o conteúdo (a
violência como tema) e a forma (entre rupturas e cortes temporais
narrativos) de se mostrar imagens de violência. As personagens do
filme estão completamente imersas neste universo, como se a violência
fosse constitutiva, e por que não, fundadora na relação do espectador
com a imagem. Foi, então, selecionado o filme: "Pulp Fiction - tempo
de violência" do diretor Quentin Tarantino como foco de análise.
A partir da relação da imagem com formação de subjetividade, a análise
do filme aborda a hipótese de como a narrativa cinematográfica pode
ser relacionada com os processos de subjetivação, ou narrativas de
subjetividade, no caso narrativas de subjetividade em ficção ou 'pulp'
ficção. Trata da relação real/imagem e da afecção de um sujeito
corrompido (no sentido de ser alterado) pela imagem de violência. A
questão do projeto está pautada nas fronteiras narrativas que promovem
a criação de uma nova sensibilidade do espectador através da imagem
violenta, opera também na fragilidade da narrativa da imagem que não a
esgota e promove um paradoxo - a imagem como um fator ao mesmo tempo
anestésico e impactante em relação com o referente real. Essas duas
possibilidades de percepção - entre o choque da imagem e a passividade
- denotam dois tipos de posicionamento do espectador: tanto o voyeur
passivo quanto a possibilidade de afeto e de afecção que a imagem
comporta.

Tempo e subjetividade - cronograma

A relação tempo e subjetividade é o que move a narrativa no cinema. A
seqüência de tempo é o que transfigura a seqüência de planos
(imanentes entre si) e que define as caracterizações do sujeito da
imagem. A violência da imagem impõe uma dramatização do tempo no filme
e, por isso, impõe planos diferenciados como uma estrutura narrativa.
A narrativa e a violência da imagem operam na sua imposição e nos
agenciamentos de enunciados. Já a imagem violenta, por si, atua na
ruptura discursiva dos planos, atua como uma forma de cortar o tempo
do filme.
Os capítulos serão formulados como um paralelo com a estrutura do
filme como ponto de partida. O primeiro é um prólogo, uma introdução
dos temas a serem desenvolvidos seguidos por uma discussão sobre a
questão da representação fazendo breves relações entre real/imagem e
linguagem/cinema, estabelecendo uma definição de narrativa para o
cinema.
O segundo capítulo trata das relações de poder na imagem,
principalmente no que compete aos desdobramentos da subjetividade. Há
uma apresentação sobre a questão do sujeito em módulos: a posição do
sujeito no pensamento contemporâneo, pertinente ao projeto e a
discussão sobre o sujeito no cinema. Isso recai na articulação da
subjetividade masoquista do espectador (por vezes também sádica) com a
violência intrusiva do filme. O espectador, por sua vez, não pode ser
mais considerado como voyeur dado que está incluído na imagem, ele faz
parte da cena no ato de assisti-la e pelo fato do filme ser feito
direcionado ao público. Por outro lado, há que se considerar o
processo de desdobramento de subjetividade dentro do filme iniciado
pela persona do diretor, ele assume o papel como de uma subjetividade
sádica cuja intenção é fazer da imagem um modo de afecção. É ele que
ordena o movimento da imagem e instaura a primeira violência da
imagem. Se o filme é um território então o diretor é o guia. O filme é
então considerado como uma referência, um platô ou um território por
onde se desdobra a subjetividade do espectador no contato de
superfícies da imagem plana.
Este capítulo trata também da condição de enunciação da imagem,
considerando que a imagem opera por um enunciado de outrem. Portanto,
a partir da idéia de que a base da imagem cinematográfica opera
através do discurso indireto livre , por meio do agenciamento de
enunciação, pode-se deflagrar desdobramentos de diferentes sujeitos. O
que permite considerar uma imagem que desloca a posição do sujeito à
condição de estrangeiro, condição de estranhamento de si.
No terceiro capítulo, a exploração dos temas da imagem e da
representação dão lugar à questão do tempo/narrativa, onde serão
abordados autores como Roland Barthes, Gilles Deleuze e sobre a
questão do tempo no cinema com a apropriação dos filmes como uso
aplicativo das discussões.
O quarto capítulo é dedicado à questão da violência realçando a
'crueldade necessária' e a demanda de violência no contexto do filme.
O quinto capítulo trata da apresentação das conclusões sobre a nova
narrativa ou a nova sensibilidade, ou os processos de agregamento de
subjetividades passivas, o que Rolnick chama de subjetividade "prêt-à-
porter" - como o espectador se espelha nas imagens adotando modelos
de subjetividade.

Cronograma de conteúdo

1. PROLOGUE/Introdução teórica e articulação com o prólogo do
filme, apresentação dos temas.

2. VINCENT VEGA & MARSELLUS WALLACE'S WIFE/ a questão do
sujeito - relação homem-mulher, relação de poder, articulação com a
subjetividade masoquista do espectador e a sádica do diretor,
estrangeirismo da imagem - espectador.

3. THE GOLD WATCH/considerações sobre a imagem - articulação
com a narrativa e o tempo cinematográfico.

4. JULES, VINCENT, JIMMIE & THE WOLF/tem como ponto central a
apresentação da violência - 'o homem sem cabeça', a violência da
imagem e a imagem de violência, a 'crueldade necessária' e a demanda
de violência da imagem.

5. EPILOGUE/conclusão - subjetividade narrativa, nova
narrativa, nova subjetividade, sensibilidade, afecção.


Serão abordadas as relações entre descrição do tempo na representação
e hábitos de representação do sujeito. Insere-se a questão da
violência da imagem e da imagem de violência com estudos referentes ao
filme 'Pulp Fiction'.
O filme selecionado suscita questões pela demanda e apelo da violência
e sua recorrência. É estabelecida, assim, uma relação que parte do
filme para relatar o entrecruzamento do objeto real com a imagem. Isso
envolve a relação entre linguagem e cinema (discurso e imagem) na
questão do desdobramento da subjetividade em contato direto com o
filme. Envolve também uma análise sobre a sensibilidade do espectador
e seus modos de afecção com a imagem e da inserção da violência como
deflagradora de uma renovação dessa sensibilidade para o sujeito.

Introdução

O objeto em questão corresponde à relação da imagem de violência com a
formação de subjetividade - dentro da 'situação cinema', ou melhor, no
momento da apreciação do filme, que pode ser estendido tendo a imagem
como base de afecção. Isso coloca o sujeito em devir pelo desejo de
violência e de ser bombardeado por imagens. As imagens no cinema
acompanham o sujeito em deslocamento e desenvolvem-se em linhas de
fuga afetiva e em apatia efetiva figurada pela velocidade dos planos.
Existem duas possibilidades de abordagem da violência no filme: a
discursiva e a imagética. A primeira, a violência discursiva, é
considerada como estratégia narrativa de apreensão e de choque para o
espectador. Essa primeira abordagem integra imagem e violência na
narrativa cinematográfica. A segunda aborda a violência da imagem,
onde o discurso se esgota e o que prevalece é a imagem crua, em direta
relação de afecção com o espectador. É importante ressaltar que uma
abordagem não elimina a outra, pelo contrário, as duas estão
intrinsecamente ligadas.
O filme 'Pulp Fiction' intercala blocos predominantes de narrativa e
de imagem não cronológicos. Por esse motivo, algumas imagens
extravasam a sensação do movimento e remetem o espectador a um tempo
também ficcional. Nos momentos dos cortes fica evidente a apresentação
de imagens (tempo) puras ou a experiência do tempo, sem conseqüência,
sem causa, aparentemente sem motivo e sem reflexão. Imagens que são
apenas apresentação (sem configurações simbólicas necessariamente) de
acontecimentos numa narrativa adstringente no sentido em que une os
segmentos para desarticular e reagrupar um sentido ficcional da
violência. Uma pulp violência de massa disforme, que está imiscuída à
imagem.
Entre cenas de humor negro, momentos cômicos e diálogos coloquiais,
mas vazios, (sem profundidade, espirituosos e rápidos) o filme
desenvolve sua narrativa, apresentando três histórias sobre uma
história, ("Three stories... about one story..."). Numa referência às
revistas baratas e de conteúdo violento - uma definição de pulp
fiction como gênero literário para produções de baixa qualidade - o
filme se propõe ao mesmo jogo de crônicas de conteúdo violento
misturadas entre recortes temporais em que as personagens se
entrecruzam nas histórias, estabelecendo-se, assim, uma disparidade do
tempo cronológico e a inclusão do tempo crônico .
As imagens violentas do filme podem atuar como um fator anestésico das
possibilidades de afeição que a imagem carrega. Por outro lado elas
atentam para a mobilização das relações com a imagem através da
crueldade e da ironia , alçando a uma revalorização da violência no
cinema. Sendo extremamente violento, o filme possibilita uma distorção
entre imagem e a percepção real da imagem que se sobrepõe à narrativa.
Neste caso a imagem afeta pelo choque e pelo paradoxo da 'sedução do
mal' , mas ao mesmo tempo em que a violência repele (e é repreensível
pelo aspecto moral), ela é mostrada de modo banalizado, quase
corriqueiro, com toques de humor negro, pertinentes ao encantamento da
ficção, ou melhor, da pulp ficção barata que permeiam o imaginário do
filme.
Isso apresenta o paradoxo da imagem violenta, ela é opressiva,
excessiva, bizarra e grotesca, mas por mais aviltante que seja tem uma
demanda, um desejo de violência, um desejo que deseja a sua repressão,
um desejo perverso, 'a sedução do mal', que se reflete no ato cru do
acontecimento cinematográfico, sem metáforas ou metonímias,
inominável, um desejo de não-significação - um desejo em devir.
A hipótese trata da relação indiscernível entre o real e o imaginário
que interagem de modo constitutivo na formação de subjetividade, onde
a percepção do que se vê constrói, em parte, o que se é. A seqüência
das imagens em filme traz uma seqüência como efeito sujeito em devir-
imagem, que se delineia a cada quadro, ao mesmo tempo em que se joga
para um futuro e se cristaliza passado. (...) "o passado é um antigo
presente e o futuro é um presente por vir" .
A imagem cinematográfica está no presente devir e segue em linhas
narrativas que se atualizam a cada quadro (ou linhas virtuais no seu
sentido de potência) do efeito sujeito. Nesta perspectiva, a imagem de
violência faz alusão a uma subjetividade permeada pelo desejo de
violência (ou então pela sua negação), em um processo que é
incorporado como ponto de fuga que integra uma realidade da imagem. O
ponto de fuga da imagem é o ponto de fuga ao qual o sujeito se lança,
assumindo sua própria polissemia em oposição às ações cotidianas e
opressivas. À violência física da imagem corresponde, então, o vazio
da palavra e do significado. É o tempo de afluência de imagens que
convergem em um mesmo rio de fluxo ininterrupto que percorre o filme.
A violência está no esgotamento do discurso, onde ele não alcança,
está na afecção inominável.
Essa imagem mental do tempo figurado como um rio é referência desde os
gregos antigos na parábola do tempo e do homem. Sendo o rio como um
fluxo de tempo linear e seqüencial, o sujeito está também em constante
mobilidade, mas não há a possibilidade de repetição. Neste caso, o
tempo linear remete a uma subjetividade linear, mas mesmo essas
linearidades são múltiplas, circulares e se entre-cruzam. O rio
reverte o seu fluxo na montagem do filme, assim como o personagem de
Vincent Vega (John Travolta, de 'Pulp Fiction') reaparece no filme,
mesmo depois de 'cronologicamente' morto, inserindo o descontínuo no
deslocamento temporal, o corte, a montagem.
A violência remete diretamente à degradação do sujeito, seja ela
moral, mental ou corporal. No caso do cinema, a imagem da violência
física é indiretamente aferida ao corpo, isto é, o que o sujeito tem
como matéria de sua existência. É importante ressaltar que a natureza
da imagem de violência é real, mas ela opera no suporte ficcional do
filme, por tanto não se pode oferecer o mesmo tratamento de uma
violência como fenômeno social.
Por estar inserida na estrutura do filme, o que fica em evidência é
uma configuração estética da forma como a violência é mostrada que se
sobrepõe às justificativas psicológicas e sociológicas da exploração
do tema. A intenção, também, não é fazer uma exploração psicológica
das personagens por que, por mais complexas e significativas que
sejam, não têm mais profundidade do que o que a tela lhes oferece.
Mesmo que as personagens sejam balizadas por figuras reais mostram
apenas uma face plana e superficial de um indivíduo deslocado em
várias linhas maquínicas de enunciação.
Então, não se trata de afirmar uma teoria da violência, mas de afirmar
o fato da imagem violenta ter uma penetração enorme no imaginário
proposto nos filmes, principalmente na década de noventa.
Justificativa

A justificativa teórica de estabelecer paralelos entre a teoria do
cinema e o pensamento de Deleuze é aproximar concepções diferentes
sobre os mesmos assuntos e arrolar algumas semelhanças. A definição de
filme, por exemplo, para Merleau-Ponty é de que "o filme não é uma
soma de imagens, porém uma forma temporal" Já Deleuze afirma que no
cinema "o tempo sai dos eixos, e se apresenta em estado puro." A
definição de cinema como 'forma temporal em estado puro' desencadeia
séries de aproximações e repulsões entre os autores que apresentam
outras questões pertinentes como a relação real/imagem.
Para Deleuze, o cinema permite a experiência direta do tempo, um tempo
condensado que permite delinear narrativas de subjetividades fixadas
que podem ser livremente apropriadas pelo espectador. Torna-se cada
vez mais aparente a necessidade de relacionar uma cartografia sobre o
mapa das diversas subjetividades que podem ser tratadas como
territórios aos quais o espectador diletante percorre ao assistir um
filme. O filme oferece potências de subjetivação e rearticula a
subjetividade não somente pela percepção, mas, também pela sensação.
No caso de 'Pulp Fiction', o espetáculo da violência sugere a presença
de uma 'crueldade necessária' que está inerente à estrutura do filme e
é o que mobiliza as ações, é o que remete ao acontecimento. A
crueldade é um modo de presença, um modo subversivo que remete o
sujeito a um outro território. É o que permite a ruptura do discurso
para a violência, que em um dado sentido é onde o discurso está
esgotado. Sendo assim, a violência que antes se percebia no lapso do
discurso se entranha na estrutura discursiva que conduz a narrativa.
Há então, a afirmação de uma violência discursiva dentro da estética
da narrativa. O filme, enquanto base da análise, aborda a violência
inserida no contexto da pós-modernidade, com a não linearidade da
narrativa e com a multiplicidade de referências à cultura popular
americana. Além disso, sendo paródia da cultura americana, oferece uma
narrativa sem conteúdo moral encaixando-se na ótica pós-moderna o que
justifica a relação com autores e críticos da mesma ordem.
A violência é a experiência de crueldade projetada no outro. É nesse
sentido que se pretende analisar a questão das imagens violentas, não
como algo que deve ser peremptoriamente negado e rechaçado, mas como
uma imagem que está presente em diversos momentos da vida cotidiana e
que permite e mobiliza a afecção com outros modos de subjetivação.
A violência impõe um movimento, e é nessa crueldade que promove uma
ruptura com a fixidez do sujeito e o impele a quebrar o estatuto da
lógica da identidade rumo às 'identificações múltiplas'. "A metáfora
do nomadismo pode nos incitar a uma visão mais realista das coisas:
pensá-las em sua ambivalência estrutural. Assim, para as pessoas, o
fato de que ela não se resume a uma simples identidade, mas que
desempenha papéis diversos através de identificações múltiplas. Da
mesma forma, no que concerne à vida social, o vaivém constante que
existe entre os mecanismos de atração e de repulsa."
Esse nomadismo identitário, por sua vez, remete a associação entre
subjetividade e territorialidade. É deslocando-se entre diferentes
territórios que o sujeito desenvolve sua 'geografia pessoal' . É na
possibilidade do devir, de atingir outros territórios enquanto pontos
fixos que a subjetividade se desdobra. E cada personagem no filme
oferece um território a ser percorrido e uma linha narrativa de onde
emergem múltiplas subjetividades. Essas linhas e territórios afirmam a
necessidade de um mapeamento das linhas de subjetividade, tendo em
vista a cartografia como método de abordagem e de desenvolvimento.
Esse mapeamento não é a simples categorização desses tipos subjetivos,
mas é a incursão e um arrolamento destes tipos.
Para tal, Guatarri dispõe a definição de subjetividade apropriadamente
como: "o conjunto das condições que tornam possível que instâncias
individuais e/ou coletivas estejam em posição de emergir como
território existencial auto-referencial, em adjacência ou relação de
delimitação com a alteridade ela mesma subjetiva".
Deleuze e Guatarri desenvolveram em conjunto uma 'teoria da
subjetividade', por assim dizer, que é articulada em linhas como
principais componentes heterogêneos. Tais linhas serão analisadas a
posteriori, mas basta afirmar que existe um elemento configurado pela
mídia além de componentes semiológicos significantes e a-
significantes.

Método Cartográfico

"Indivíduos ou grupos, somos atravessados por linhas, meridianos,
geodésicas, trópicos, fusos, que não seguem o mesmo ritmo e não têm a
mesma natureza (...) E constantemente as linhas se cruzam, se
superpõem a uma linha costumeira, se seguem por um certo tempo (...) É
uma questão de cartografia. Elas nos compõem assim como compõem nosso
mapa. Elas se transformam e podem penetrar uma na outra. Rizoma."
"Paisagens psicossociais também são cartografáveis. A cartografia,
nesse caso, acompanha e se faz ao mesmo tempo que o desmanchamento de
certos mundos - sua perda de sentido - e a formação de outros: mundos
que se criam para expressar afetos contemporâneos, em relação aos
quais os universos vigentes tornam-se obsoletos".
Em uma superfície plana do território as linhas ou dobras operam como
regiões entre fronteiras com o de "dentro" e o de "fora", ou seja,
entre o sujeito e aquilo que o cerca. "O que importa, sempre, é
dobrar, desdobrar, redobrar". A dobra é o lado de 'dentro', o
subjetivo, e remete a uma estabilização, uma apreensão temporária de
sentidos. Mas como supõe um movimento não estagnado, a dobra é
transitória. Desse modo, as dobraduras são séries de momentos obtidas
a partir do instante em que funcionam como efeitos de subjetivação.
São séries que, por estarem sempre em movimento, garantem a
multiplicidade das linhas das conexões entre as superfícies. O filme é
então um território plano por onde a subjetividade se desdobra
estabelecendo pontos de referência afetiva.
O método cartográfico ou rizomático (no sentido que tem várias raízes
como referência que articulam a subjetividade) permite o cruzamento
entre a subjetividade personificada pelas personagens - tomada como
discurso indireto livre - com a subjetividade do espectador, onde o
cinema torna-se uma medida ou uma apreciação do tempo.
'Pulp Fiction' tem uma narrativa específica sobre eventos violentos e
bizarros que ocorrem no mundo marginal de Los Angeles, mas não trata
apenas disso. O filme adota uma multiplicação das personagens e de
linhas de agenciamento de discurso. As personagens são violência na
medida em que rearticulam com uma ilusão de subjetividade. "O cinema
deixa de ser narrativo" quando assume uma potência entre o discurso e
a imagem, uma potência de afecção para o espectador.

Narrativa

A análise cinematográfica tem uma tradição lingüística que estrutura
o filme através de leituras da narrativa. Para Metz, principal
expoente dessa tradição, a simples passagem de uma imagem a outra já
configura uma característica da linguagem. Ele se baseia na concepção
de uma teoria narrativa que reduz o objeto da imagem a seqüências de
enunciação - tomadas na dialética de significado/significante, - sendo
que a linguagem cinematográfica se identifica com os diversos tipos de
agenciamentos sintagmáticos que condicionam as seqüências narrantes de
enunciados atualizados. Nesse caso, a narrativa cinematográfica é
redutora e baseada em teorias estruturalistas que definem o cinema
como um objeto lingüístico sem considerar processos narrativos não-
lingüísticos, que são próprios da imagem.
A base teórica de Christian Metz se fundamenta em três espécies de
abordagem: a lingüística, a psicanalítica e a social e econômica.
Para Christian Metz o espectador é um voyeur autômato: "Espectadores-
peixes, que absorvem tudo pelos olhos, nada pelo corpo: a instituição
do cinema prescreve um espectador imóvel e silencioso, um espectador
alheado, em constante estado de submotricidade e superpercepção, um
espectador alienado e feliz, acrobaticamente pendurado a si mesmo pelo
fio invisível da visão, um espectador que não se recobra do sujeito
senão por derradeiro instante, através de uma identificação paradoxal
com a sua própria pessoa, extenuada no puro olhar." O espectador,
nesse caso, é um sujeito da linguagem do cinema.
"O cinema é linguagem por que suas imagens são enunciados icônicos
submetidos às regras lingüísticas" - regras que promovem
agenciamentos sintagmáticos que condicionam uma narrativa.
Lembrando que a linguagem opera em dois eixos: o paradigmático - que é
a estrutura, o modelo de articulação da linguagem. O sintagmático -
que é uma unidade a qual se formula um sentido ou significado e
pressupõe um corte vertical em função do paradigma.
Nesta perspectiva a narrativa cinematográfica perde a dimensão da
imagem em sua configuração da forma e do estilo e, além disso, dá uma
possibilidade limitada de tempo. Esse tipo de narrativa imprime um
sujeito discursivo (definido pela linguagem). A violência é tratada
apenas como uma estratégia para se contar uma história. O tempo é
linear obedecendo à narrativa. Há um sujeito transcendental a ser
descoberto através de análises de profundidade - que não remete à
formação de subjetividade, em devir, mas que fixa um sentido que está
sempre perdido (como uma proposição da psicanálise e da
hermenêutica).
O espectador, neste caso, é passivo, sem contestação, sem demanda de
interesse, sem a possibilidade de filtro ou de cruzamento das linhas
dos planos de cinema com os planos das linhas de subjetividade, (sem
curto-circuito e sem associações) - ele é um autômato. Sem
identificação, atração ou repulsão. Apenas está submisso ao discurso
imagético ou à indústria do cinema - que Metz define não só como
mercado cinematográfico, mas também como o aparato técnico que o
espectador possui para poder compreender os códigos do cinema como
linguagem. (A violência é tratada como recurso discursivo e não em sua
característica estética e estilística de contar a história é
destituída de forma para compor um quadro de significados onde o
significante não tem valor e a imagem sofre uma mediação do discurso.)
Estas são formulações ou concepções que são contestáveis. O que trás a
questão da narrativa não é a sua negação em função do privilégio da
imagem, dado que o filme é imagem e é linguagem, mas sim uma
reformulação do conceito de narrativa, como pode ser demonstrado em
Blanchot:
"A narrativa não é o relato do acontecimento, mas o próprio
acontecimento, a aproximação desse acontecimento, o lugar onde este é
chamado a produzir-se, acontecimento ainda por vir e por cujo poder de
atração a narrativa pode esperar, também ela, realizar-se.
A narrativa é um movimento para um ponto, não apenas desconhecido,
ignorado, estranho, mas tal que parece não ter, antecipadamente e fora
desse movimento, qualquer espécie de realidade, e tão imperioso, no
entanto, que é somente dele que a narrativa tira o seu encanto, de tal
modo que ela não pode sequer 'começar' antes de o ter atingido, e, no
entanto, apenas a narrativa e o movimento imprevisível da narrativa
lhe fornecem o espaço onde o ponto se torna nela, poderoso e atraente.
Ela não 'relata' senão a si própria, e esse relato, ao mesmo tempo em
que se efetua, produz o que conta, só é possível como relato se
realizar o que se passa nesse relato, pois detém então o ponto ou o
plano em que a realidade que a narrativa 'descreve' pode
incessantemente unir-se à realidade como narrativa (...). Por isso não
há narrativa, por isso não deixa de haver." (Blanchot, Le livre à
venir)
Este tipo de narrativa traz à experiência do cinema com o que Deleuze
chama de hecceidade ou acontecimento, que define em todos os graus as
linhas de subjetividade e as linhas dos planos de montagem
cinematográfica. A Narrativa não é o enunciado - que representa um
estado de coisas, o que caracteriza uma crise de representatividade -
mas é um enunciável. É um movimento de pensamento, ou melhor, uma
imagem-pensamento que precede o enunciado.
Por outro lado, a imagem é um tipo de pensamento irredutível ao
enunciado, pois estabelece uma relação imediata no sentido de não ter
mediação entre o filme e o espectador. Uma imagem de filme não conta
sobre personagens ou fatos, ela é o próprio acontecimento, é a
personagem e é o fato. É a possibilidade do enunciável que expressa a
narrativa e que expressa uma possibilidade de realidade. O tempo do
filme atravessa a narrativa e imprime uma qualidade diferente de
discurso, ligada diretamente à imagem.
No filme, há um corte da narrativa tradicional, um corte na
linearidade da história narrada. As personagens são movidas em
segmentos de ações numa profusão de informações visuais que remodelam
o tempo. As personagens passam por um processo de cristalização do
tempo, pela condensação ou cristalização de passado que é
contemporâneo ao presente (tornando um contingente do outro)
demonstrado em seqüência de acontecimentos, pela montagem e duração
dos planos e episódios. O cinema é uma experiência em si e trata da
"construção de um estado gasoso da percepção, definido pelo livre
percurso das imagens." (Deleuze) . Existe uma ruptura do esquema
sensório-motor, que resulta em situações em que a imagem se manifesta
diretamente como tempo havendo uma ligação direta com o pensamento,
não havendo possibilidade de reação.
Mas há o intercalamento entre narração e imagem-tempo em que elas se
bifurcam e se rompem indefinidamente.
O espectador, em primeiro momento, não é mais um autômato, mas ele
está à deriva, seguindo uma linha de fuga entre o virtual e o real das
imagens do filme - se deslocando em territórios de códigos,
convenções, linguagens e sons sobrepostos em montagens subordinadas a
uma temporalidade - criando possibilidades de percepção diferenciadas,
seguindo as linhas múltiplas de subjetividade.
Numa perspectiva mais radical em relação à linguagem, dentro da
noção de imagem-tempo, a palavra torna-se um acessório da imagem. O
tempo e a montagem deslocam as noções para uma percepção imediata. O
espaço nasce do tempo. O sonoro vai conquistando uma autonomia que
cada vez mais lhe dá um estatuto de imagem. O cérebro tem uma
experiência direta do tempo. O espectador está em linha de fuga, em
perambulações e devires numa relação direta com o tempo.
Nessa idéia de imagem-tempo a definição de Cinema é diferenciada,
consiste em movimentos e processos de pensamento (imagens pré-
linguísticas), e em pontos de vista tomados sobre esses movimentos e
processos (signos pré-significantes). Para Deleuze, o enunciável
adicionado as suas imagens e signos são de outra natureza, não
lingüística.
"O cinema não é apenas imagens, ele as cerca com um mundo" , ou
melhor, "Quando percebo, não imagino o mundo: ele se organiza diante
de mim." . Um mundo virtual que opera com o seu duplo real, no
sentido de indicar um curto-circuito que flexibilize uma fronteira
interior a todos os outros. Há a contração da imagem ao seu duplo
imediato: o real e o virtual como dois espelhos um na frente do outro.
O real e o especular se confundem, mas também conservam suas
especificidades. "A imagem-cristal, ou descrição cristalina, tem mesmo
duas faces que não se confundem. É que a confusão entre real e
imaginário é um simples erro de fato, que não afeta a discernibilidade
deles: a confusão só se faz 'na cabeça' de alguém. (...) A
indiscernibilidade do real e do imaginário, ou do presente e do
passado, do atual e do virtual, não se produz portanto, de modo algum,
na cabeça ou no espírito, mas é o caráter objetivo de certas imagens
existentes, duplas por natureza".
A conclusão a que se chega é que as propostas teóricas sobre a imagem
ainda não oferecem elementos suficientes para se fazer uma análise da
imagem-tempo sem fazer referências à narrativa cinematográfica. Por
outro lado, a análise da narrativa não é suficiente para desenvolver
vários aspectos que independem diretamente da orientação lingüística.
Em todo o caso, o cinema é uma modalidade de expressão que se articula
entre linguagens diferenciadas atravessadas por uma noção de duração,
uma temporalidade. Os cortes de duração, as montagens, os ciclos de
repetição, os graus de intensidade que desconstróem um tempo narrativo
e dão visibilidade ao enunciável restituem o que antes estava
inominável. A violência é um dos termos do inominável, ela remete
necessariamente a uma imagem ou ao medo do inimaginável. A violência,
de modo geral, tem sua própria dinâmica de ruptura e distorção do
tempo na aceleração e brutalidade dos cortes dos planos.
A imagem da violência desencadeia uma possibilidade de linha de fuga,
tanto na linha de subjetividade quanto na estrutura linear do tempo e
da história do filme e na narrativa. O cinema é direto quando o código
e a narrativa são contestados dentro do próprio filme. Nesse caso, a
linha de fuga é uma não-narração implícita (o filme não conta nada)
que oferece uma ruptura estrutural do discurso fílmico, ao mesmo tempo
em que interage com ele, lança o sujeito em devir - em fluxos de
subjetividade - ao qual o lance inicial foi mobilizado por um corte e
velocidade violentos. No cinema a violência é tempo. Um tempo
atravessado, cortado, irracional, que dispensa a fala, o discurso.
Pensar o tempo de violência é pensar uma ficção do tempo, uma 'pop
ficção' cinematográfica que mistura formas de expressão de imagens.
'Pulp Fiction', tempo de violência, assinala o agenciamento
(maquínico) de subjetividades e de subjetividades em linha de fuga.

Articulação

O ponto de articulação dessa dissertação parte da interseção entre
conceitos clássicos da teoria do cinema para uma reavaliação no âmbito
de uma ótica de discussão com enfoque deleuziano, numa perspectiva
atualizante da relação entre o espectador e o filme. O conceito de
sujeito (ou do efeito sujeito que emerge também como conceito) passa
por uma interface da imagem de violência como um ponto em que se
origina uma reflexão sobre o lapso da linguagem cinematográfica e se
encontra numa fronteira entre a narrativa e a imagem-tempo.
A posição subjetiva passa a ser multiplicada, também atuando em
fronteiras, entrelaçando-se ENTRE diversas posturas de narrativa em
uma mesma fala desde o roteirista que a redigiu (que configurou o
perfil das personagens), do cineasta que a dirigiu, do ator que a
incorporou e do espectador que a vislumbrou. Esta fronteira está entre
a imagem literal que pode ser lida como um cinema do corpo. Relaciona
um limite físico da imagem em paralelo com um limite do corpo, mas
está também entre a narrativa, a história a ser contada. Estabelece-se
um confronto entre a semiologia de inspiração lingüística e a imagem
como descrição, como apresentação mais que representação que é, ao
mesmo tempo, real e imaginária.
"As imagens mais objetivas não se compõem sem se tornarem mentais, sem
entrar numa estranha subjetividade invisível". A violência
desencadeia situações limites que são mobilizadoras das ações e
reações na narrativa, dentro de uma estética específica e estratégia
de choque. Mas, por outro lado, descrevem situações que desarticulam o
esquema sensório-motor e lançam a imagem para um "de fora", para uma
esfera da percepção direta, sem metáforas, sem metonímias, imediata,
clara e óbvia. As imagens são subjetivadas. O filme sugerido 'Pulp
Fiction', surge como ficção do tempo. Este filme encontra uma
fronteira entre a imagem direta e o discurso indireto livre. Em cada
segmento do filme, exibe-se uma serialidade de acontecimentos que
culminam no exagero, no excesso da imagem violenta, como uma
explanação de um tempo crônico e não cronológico para uma crônica do
tempo, tempo de violência.

Filme

De acordo com as reflexões deleuzianas sobre cinema existem dois
momentos no desenvolvimento do processo filmográfico. Em um primeiro
momento, há a afirmação do cinema como imagem-movimento. Deleuze
afirma que a imagem em movimento opera através de uma média entre
quadros ou fotogramas, "o movimento pertence à imagem-média enquanto
dado imediato" . O autor define o cinema como "um sistema que reproduz
o movimento em função do instante qualquer, isto é, em função de
momentos eqüidistantes, escolhidos de modo a dar a impressão de
continuidade".
Em um segundo momento, Deleuze afirma a crise da imagem-ação em função
de uma nova imagem, uma imagem mental que remete também a figuras de
pensamento: "(...) a 'nouvelle vague' descobria uma exigência
suficiente para romper todo o sistema, para cortar a percepção de seu
prolongamento motor, para cortar a ação do fio que a unia a uma
situação, para cortar a afecção da aderência ou da pertinência a
personagens." A esse surgimento da 'nova imagem pensante', mesmo
coberta de clichês como ressalta o próprio autor, há uma configuração
para além do movimento que é dada como a imagem-tempo - o cinema como
uma percepção do tempo.
Nesse segundo momento no contexto da imagem-tempo, iniciada
principalmente com a 'nouvelle vague' (e também com o neo-realismo
italiano), encontram-se também os filmes do final do século XX.
Os anos 90 foram, notadamente, marcados pelas discussões sobre a pós-
modernidade e sobre a globalização. Como o filme é um produto cultural
de seu tempo ele expressa marcas do pós-moderno como a não linearidade
da narrativa (já explorada pela 'nouvelle vague' francesa nos anos 60)
e a multiplicação de protagonistas (as personagens se revezam nos
blocos narrativos, no início a história está centrada na dupla Vincent
e Jules, depois em Vincent e Mia, passa para Butch e Marcellus, para
retornar no final para Vincent e Jules, sendo que o prólogo é
centrado no casal Honey Bunny e Pumpkin). Além dessas características,
há a inserção de motivos e caracteres da cultura pop americana como os
ícones dos anos 50 e 60: Elvis Presley e Marilin Monroe. O filme
apresenta duas inspirações marcantes: nos filmes noir, do gênero
gangster movie e nas revistas de pulp fiction, policiais da cultura
trash muito populares nos anos 40 e 50. A trilha sonora, por sua vez,
foi resgatada dos anos 70 em sua maioria e complementa um ambiente de
integração e convivência entre décadas de cultura pop. Entre outros,
são mencionados também programas de televisão como o seriado 'Kung
Fu' (com David Carradine no papel de Caine que, em pleno faroeste
americano, luta artes marciais em suas aventuras) e o desenho animado
'Speed Racer'.
Em sua construção heterogênea, o filme poderia abordar uma des-
contextualização, mas ocorre o inverso. Em sua afluência de
referencialidades 'Pulp Fiction' faz um passeio no imaginário norte-
americano, próprio de sua época e próprio do contexto pós-moderno,
como menciona Fantini: "O cinema, pensado como resultado das idéias e
das condições sociais econômicas e culturais que estimulam e delimitam
a sua produção, nos parece um dos produtos privilegiados na reflexão
sobre os traços deixados pelas relações entre a estética e o social
neste fim de século. Desta perspectiva, é possível que os anos 90
sejam lembrados pelas marcas deixadas nos produtos culturais da pós-
modernidade e da globalização (...)".
Mesmo o diretor torna-se uma figura emblemática, sua formação e sua
referência imagética vêm do fato de ter trabalhado em uma vídeo
locadora estabelecendo uma ligação direta com a cultura pop, como
afirma Nazareno:
"Festejado com o 'Poeta da Hemoglobina', Quentin Tarantino diferencia-
se de outros cineastas de sua geração por fazer de seus filmes uma
'colagem' de referências e lugares-comuns presentes em outras
produções cinematográficas sem que, para isso, tenha que abrir mão da
sutileza quando o assunto é a representação da violência no cinema
contemporâneo." Essa sutileza a que o autor se refere é que a
violência no filme está, em parte, em extra-campo - não se vê a cabeça
despedaçada de Marvin ou os efeitos dos tiros em Brett, mas existem
exceções como a cena do estupro de Marcellus Wallace.
A repercussão de 'Pulp Fiction' pode ser relevada pelo seu
reconhecimento no meio cinematográfico. O filme recebeu prêmios de
melhor roteiro e melhor ator (John Travolta) no festival de Estocolmo.
Ganhou o Globo de Ouro de melhor roteiro, além de ser indicado em mais
cinco categorias: melhor filme em drama, melhor diretor, melhor ator
em drama, ator coadjuvante e atriz coadjuvante. Ganhou o Oscar de
melhor roteiro original e foi indicado em seis categorias: melhor
filme, melhor diretor, ator (John Travolta), melhor ator coadjuvante
(Samuel L. Jackson), melhor atriz coadjuvante (Uma Thurman) e melhor
montagem. E, por fim, recebeu a Palma de Ouro em Cannes.
O filme tornou-se um clássico contemporâneo, é pautado como um filme
cult. Além de fazer referência a outras obras, conserva um estilo que
recicla a cultura pop em uma evocação dos filmes noir. Existem várias
paródias ou citações em filmes diversos. A simples menção dos
primeiros acordes da música introdutória da 'beach music' Misirlou (na
versão de Dick Dale & His Del-Tones) remete diretamente a 'Pulp
Fiction'.
A crítica americana situou o filme em uma linha chamada New
Brutalism , ou ainda referiu o diretor à 'geração Sundance', como
"America's Nouvelle Vague", e de fato recebeu críticas bem
contundentes como:

"No sé si Tarantino es un psicópata, desde luego su personaje lo es...
para dementes que se regodean en el sadismo... un país como Estados
Unidos, con un índice de delincuencia exagerado, sólo le faltaba lo
que ahora tiene que mostrar Tarantino . . . una forma repulsiva de ver
la violencia: domesticándo-la . . . un falsario . . . el ejemplo
supremo, máximo, de la más absoluta falta de comunicación. Pulp
Fiction no cuenta nada, no dice nada, no habla de nada, no expresa
nada."(Delgado 1995: 94-102)

Esse tipo de crítica levanta o aspecto ético da imagem que é
extremamente relevante na questão da espetacularização da estética da
violência. Mas por outro lado imputa um discurso repressor e
obliterante, que esconde e camufla a natureza violenta da imagem e
cega a permissividade da crueldade, negando-a. Não se pode mais
relegar a imagem violenta e seu conteúdo ao recôndito da psique
humana. A violência surge como questão, surge como pauta, surge na
estrutura do discurso e surge como imagem. E essa imagem é veiculada,
apropriada ou não mas, em todo o caso, ela é celebrada, na mídia, de
modo geral, e mais propriamente no filme. A hipocrisia deste tipo de
discurso se revela em seu próprio formato agressivo. É essa crueldade
velada que tem que ser encarada, e por que não, mapeada nas linhas de
subjetividade.
A experiência do cinema pode revelar essa relação entre imagem e
violência a partir do próprio aparato visual:
Um lugar comum, a luz surge por trás e reflete na superfície da parede
que se desdobra em janela para o olhar de uma imagem estampada em tela
plana, uma expectativa que surge no escuro. A perspectiva ótica se
delineia em forma de luz, que por sua vez toma a forma de uma
realidade intangível. A luz abre um campo de possibilidades para a
visão instantânea que se descorre à frente. Essa imagem sintética,
(tanto no sentido de ser artificial quanto de síntese), é montada
quadro a quadro, plano a plano em seqüências que revelam o movimento.
Cada sujeito-espectador é convidado a seguir esse movimento na
dinâmica pictórica do tempo. Cada um reflete esse objeto e é refletido
por ele em plena virtualidade na sua evocação de potência. Cada um
segue uma linha, uma narração des-contínua de tempo, uma temporalidade
comprimida e expandida, no mesmo momento em que o tempo enlaça linhas
múltiplas de narrativa que se transmutam em pensamento.
Existe uma continuidade, que caminha para uma contigüidade, uma
consistência que só é percebida na complementaridade dos planos. O
espectador é sujeitado ao filme, ele faz parte da imagem que é
composta para ele. Mas mesmo assim há algo que escapa no lapso da
linguagem que é imputada à imagem. Há algo para se sentir em gradações
e em intensidades. Há uma violência primordial no fundamento da imagem
em movimento. Uma crueldade que impõe o movimento e que poderia
conduzir a uma libertação do desejo. Um desejo de violência que se
quer satisfeito, saturado e reprimido.
Mas ocorre o inverso não é mais o desejo que deseja a sua repressão,
mas sim o agenciamento do desejo, o que é uma repressão em si. "À
questão, como o desejo pode desejar a sua própria repressão, como ele
pode desejar sua escravidão, respondemos que os poderes que esmagam o
desejo, ou que o sujeitam, já fazem parte dos próprios agenciamentos
de desejo: basta que o desejo siga aquela linha, para ser levado, como
um barco, por aquele vento". O que ocorre, então, é que as imagens
de violência agenciam o desejo por mais imagens, um desejo pelo
grotesco.
O voyeur, o sádico e o masoquista estão relacionados como linhas
múltiplas de agenciamento de subjetividade e de potência e todos
almejam ser tocados por aquela imagem que está por vir. Um desejo do
por vir como deriva do devir, um vir a ser do desejo estampado em
imagem. A violência da imagem apresenta-se como contenedora desse
desejo. Ao mesmo tempo, a imagem pode não libertar por que ela é
constritora do desejo. Instaura-se um paradoxo em que a imagem é
desencadeadora de novos desejos e pode libertá-los em linhas de fuga.
E lança-se, assim, um jogo que alicia, seduz e agencia enunciações
como máquinas no regime de signos.
Não existem sujeitos de enunciado, existem agenciamentos maquínicos de
enunciação. Não existe um sujeito declarado, exposto, existem em
múltiplas proposições que operam como um efeito-sujeito. "É nesses
agenciamentos que são produzidos os efeitos de sujeito, efeitos do
fato de sermos-reunidos-em-um-agenciamento. A subjetivação é assim, o
nome que se pode dar aos efeitos da composição e da recomposição de
forças, práticas e relações que tentam transformar - ou operam para
transformar - o ser humano em variadas formas de sujeito, em seres
capazes de tomar a si próprios como sujeitos de suas próprias práticas
e das práticas de outros sobre eles".

Abertura
Pulp
"A soft, moist, shapeless mass of matter.
A magazine or book containing lurid subject matter and being
characteristically printed on unifinished paper.
American Heritage Dictionary
New College Edition"

No primeiro sentido, uma massa disforme, úmida, o filme é uma ficção
do tempo uma deformação das apreensões não cronológicas, não
analógicas, mas crônicas. Essa é a primeira apresentação do filme, uma
definição de dicionário que se refere à inspiração inicial das
revistas do gênero 'pulp magazine', e refere-se também á deformidade,
flexibilidade da matéria e da própria narrativa que conserva seu apelo
popular.
Primeira cena: em um lugar comum, uma lanchonete ou restaurante, um
casal conversa. Mas não é apenas um diálogo corriqueiro, ele versa
sobre os riscos de assaltos e irrompe na ação do assalto. Nesse
ambiente começa e termina o filme de Tarantino, com o desenvolvimento
dessa primeira ação, que tem um alinhamento anacrônico com outros três
episódios enlaçados. O filme oferece a seguinte seqüência de blocos,
como episódios ou capítulos de revista:
1. Prólogo
2. Vincent Vega & Marcellus Wallace's Wife
3. The Gold Watch
4. Jules, Vincent, Jimmie & the Wolf/The Bonnie
Situation
5. Epílogo
O que caracteriza o filme de Tarantino é a reversão narrativa. A
conexão entre os episódios se dá na própria temporalidade. As
personagens retratadas fundam uma série de narrativas conectadas pelo
vínculo da ficção da violência.
A conexão é feita na serialidade de imagens reais. Sujeitos são
figurados, delineados, incorporados e assassinados pelas imagens. Além
da violência, o que o espectador consome através das cenas são
subjetividades, linhas de subjetividades delineadas pelas ações e
pelas personagens que as en-cenam e que promovem um banquete com as
imagens. Por outro lado, há uma inversão na relação subjetividade-
imagem, são as imagens que nos consomem. Em outras palavras, elas nos
agenciam em seus postulados de subjetividade nos tornando sujeitos, no
sentido de sujeição, dentro de uma noção de subjetividade periférica,
ou seja, que gravita em função das linhas narrativas da imagem e de
uma subjetividade fixa e dominante encenada no filme.
A violência perde o seu poder político de subversão e resistência,
perde o seu caráter simbólico, na medida em que nada é dito ou
narrado, há apenas o acontecimento. A cena em que Vincent Vega dá um
tiro acidental na cabeça de um pequeno marginal exemplifica justamente
isso, não há justificativa para a ação, o que pode levantar uma
gratuidade de se mostrar imagens de violência, mas não é só isso. Não
se trata de uma literalização da capacidade simbólica - onde o
espectador não faria distinção entre o real e a imagem entre a crítica
ou sátira e o grotesco da violência - mas evidencia o próprio
esgotamento do símbolo, o signo a-significante, não uma imaginação
simbólica, mas uma imaginação derivada da imagem e do desejo de
imagem, desejo de violência. A violência não é mais simbólica, e sim,
diabólica no sentido de romper o limite entre o real e o imaginário.
A ética da imagem não pode suprimir ou cercear o acontecimento
(hecceidade) no cinema, pelo contrário, ela escancara os padrões
visuais. "A verdade é que a violência é aquilo que não fala..." O
espectador passivo assume uma postura masoquista por que é movido pelo
choque, a brutalidade sem sentido e sofre a ação da imagem.
Cada episódio tem seu clímax, o que estabelece uma sensação de
finalização, como se um ciclo interno da narrativa se fechasse. A
apresentação do título do filme tem uma linha narrativa que se fecha
apenas no último bloco. O fato de o diretor ter inserido cortes
verticais e descontínuos aproxima o filme com uma revista, como se
pudesse fazer uma leitura de trás para frente. Esse recurso arbitrário
(pois não é uma opção) também joga com um dispositivo mnemônico do
espectador. Como no tema de uma música que se repete, - a repetição de
algumas cenas evoca uma gradação de intensidade da linha narrativa,
como é o caso da cena de assalto no início e no fim do filme.
O processo de análise de decupagem da imagem acentua planos, cores,
jogos de sombras e cada elemento que compõe a cena. E por isso mesmo a
decupagem pode se tornar excessiva e talvez obsoleta, porque o filme
não é a integração das partes, e sim, constitui um todo com planos
imanentes entre si. A música, por exemplo, se for analisada de forma
destacada, não integra o ambiente de 'beach music' do gênero com
guitarras cortantes e ritmo que evoca o barulho das ondas como
'Bustin' Surfboards' (performada por The Tornadoes) ou 'Surf
Rider' (de The Lively Ones), mas por opção do diretor, criam um
ambiente cáustico como se fosse um 'faroeste contemporâneo'.
A música é completamente re-interpelada pela imagem e pela narrativa,
havendo então um movimento sincrético onde a música integra um ritmo
sonoro no movimento da imagem. A música oferece uma complementaridade
dentro de um mesmo campo de imanência em seqüência com a imagem. Neste
caso, a violência surge também no corte e na montagem, na síncope das
imagens, ela está presente tanto no conteúdo quanto no formato do
filme.
Voltamos à primeira cena, as personagens concordam que não querem que
ninguém morra e decidem que, no restaurante, ninguém iria querer ser
herói e por isso seria mais fácil do que assaltar lojas de
conveniência. Depois de dialogarem na proposta de assalto ao
restaurante eles, na iminência da ação violenta, declaram seu amor um
ao outro, Honney Bunny (Amanda Plummer) e Pumpkin (Tim Roth), como se
a violência que eles impingem, unisse os dois. Como se o amor deles
fosse complementado pela violência.



O prefácio, geralmente funciona como uma advertência, que pode ser
conferida à última fala direcionada para os ocupantes do restaurante
mas que se volta para o espectador, quando as personagens anunciam o
assalto ao restaurante:

"Any of you fuckin' pricks move and
I'll execute every motherfuckin'
last one of you!"




Nesse momento, a música 'Misirlou' (citada anteriormente) arrebata os
espectadores, a imagem congela, o movimento parece impossível. Há um
corte e a imagem negra da tela revela o nome do diretor. Aparecem o
título e os créditos enquanto o som parece buscar no dial de um
aparelho de carro uma outra música: 'Jungle Boogie' (performada por
Kool & The Gang), anunciando a entrada em uma selva urbana, no caso,
as estórias marginais na cidade de Los Angeles em 1994. Essa sintonia
da música faz a conexão entre os blocos e introduz a imagem seguinte.
Na seqüência do corte, dois homens Jules Winfield (Samuel L.
Jackson) e Vincent Vega (John Travolta), em um carro, conversam sobre
a liberalização do uso de drogas em Amsterdã e sobre pequenas
diferenças culturais no consumo de comidas fast food - o costume
bárbaro de usarem maionese para comer batata frita -, nos lugares que
Vincent visitou o que demonstra uma expressão do estilo de vida
americano transposto para outros países. Nada indica o que irá
acontecer até eles retirarem armas do porta-malas do carro. Já dentro
de um prédio, eles conversam sobre Mia (Uma Thurman), a esposa de
Marcellus Wallace, (Ving Rhames) o chefe, a quem Vincent levará para
sair enquanto o seu patrão estiver viajando.
Eles entram em um apartamento, onde inicialmente havia três rapazes
que estavam comendo hambúrgueres, e dialogam sobre o mesmo assunto
quando estavam no carro. Há uma tensão crescente entre Jules e Brett
(o ator Frank Whaley, que entre os três rapazes tinha a postura de
líder). Os dois pistoleiros perguntam sobre a mala que foram buscar. O
seu conteúdo (já mencionado anteriormente em nota do segmento 'sujeito
no cinema' deste trabalho) não é revelado, mas os pistoleiros conferem
o seu interior. Vincent Vega abre a mala com o dígito satânico 666 e
apenas o seu rosto é iluminado quando ela é aberta. A mala misteriosa
pertence supostamente a Marcellus Wallace, mas está em poder dos três
que estão no apartamento. A tensão dos diálogos aumenta e Jules
dispara contra um dos rapazes que estava deitado. Jules pede a Brett
que descreva Marcellus Wallace, Brett tem medo de dizer por que Jules
é negro assim como o seu patrão. Jules insiste na pergunta e Brett
responde já em agonia, depois de ter levado um tiro no ombro:
"Well he's ...he's...black ...and he's...he's...tall" .
Jules continua com o seu interrogatório: "does he look like a bitch?!
(...) Then why did you try to fuck 'im like a bitch?!



Esses diálogos servirão como referência nos episódios posteriores,
como uma forma de perverter o poder de Marcellus Wallace e, também, de
antever o que irá acontecer com o chefão no episódio "O Relógio de
Ouro". Servem, também, para compor a caracterização popular e de baixo
calão das personagens.
Cada bloco ou episódio tem a sua finalização com um clímax, no auge
da violência na imagem, o que permite um corte abrupto para o outro
segmento realçando a agressividade das ações. O clímax desse episódio
culmina com Jules assumindo uma postura vingativa, colocando-se no
lugar de Deus para impor uma ordem dentro do sistema de poder liderado
por Marcellus Wallace.
Neste caso a violência surge como forma de controle e de imposição de
uma ordem interna e por isso ela é ordinária, por que dela emana uma
ordem que pereniza e formaliza a violência. Essa formalização da
violência opera dentro de uma ética marginal específica que vigora nos
interstícios das relações sociais vistas no filme. Essa violência
ordinária é banalizada e permeia o imaginário dos espectadores com
fantasias de poder. Uma violência imaginada que é compartilhada e
cultuada torna-se sedutora e por isso é diversão ou um entretenimento,
dentro de uma ética falsa (por que é ilusória) e um mundo feito de
aparências. O clímax do episódio estipula uma formalização dessa
violência imaginada. A violência é estetizada para atender uma demanda
do imaginário popular; e também é justificada e sacralizada com o uso
distorcido de palavras da Bíblia em favor a um usufruto próprio, para
justificar as ações nas palavras de Jules:

"There's a passage I got memorized, seems appropriate for this
situation: Ezekiel 25:17. "The path of the righteous man is beset on
all sides by the inequities of the selfish and the tyranny of evil
men. Blessed is he who, in the name of charity and good will,
shepherds the weak through this valley of darkness, for he is truly
his brother's keeper and the finder of lost children. And I will
strike down upon thee with great vengeance and furious anger those who
attempt to poison and destroy my brothers. And you will know my name
is the Lord when I lay my vengeance upon you."
"Memorizei uma passagem que agora é oportuna: Ezequiel 25:17. O
caminho do homem justo está bloqueado por todos os lados pelas
iniqüidades dos egoístas e a tirania dos perversos. Bendito aquele
que, em nome da caridade e da boa vontade, é pastor dos humildes pelo
vale das sombras, pois ele é o verdadeiro guardião dos seus irmãos e o
salvador dos filhos perdidos. Exercerei sobre eles vingança terrível e
furiosos castigos aos que tentarem destruir meus irmãos. E ficarão
sabendo que eu sou o Senhor quando Eu executar sobre eles a minha
vingança".(Legenda do filme)

Logo após a fala há uma saraivada de balas no pequeno marginal
(Brett), como se o discurso de Jules anunciasse a sua ação, sobrando
supostamente apenas um Marvin, que abre a porta e fica observando, de
fato Marvin parece ser o contato que os dois pistoleiros tinham para
achar a mala. Os disparos surgem como recurso que permite um novo
corte vertical numa narrativa sincopada que terá seu desenvolvimento e
fechamento e cristalização apenas no quarto episódio (Jules Vincent,
Jimmie & The Wolf - The Bonnie Situation).
A cena dos disparos explicita um momento que corresponde a uma imagem-
tempo pura, condensada como uma imagem cristal. O sentido da história
já estava revelado desde que Vincent pegou a mala e desde que Jules
atirou pela primeira vez no colega de Brett, que estava deitado. A
seqüência de tiros mostra, então, um sentido esgotado e que a imagem
se impõe como tempo - tempo de violência, onde a imagem pulsa em tons
vermelhos na tela para a iminente morte e para o corte.
A imagem cristal é uma componente entre a imagem atual e a imagem
virtual que se completa ou se cristaliza. Com esses tiros é lançado um
germe que se cristalizará no quarto episódio."O cristal é expressão. A
expressão vai do espelho ao germe. (...) Com efeito, por um lado o
germe é a imagem virtual que fará cristalizar um meio atualmente
amorfo; mas, por outro, este deve ter uma estrutura virtualmente
cristalizável, em relação à qual o germe desempenha o papel de imagem
atual".


2. Vincent Vega & Marcellus Wallace's Wife -
Vincent Vega & a esposa de Marcellus Wallace

Sujeito

O sujeito, antes de qualquer coisa, é uma categoria inventada que
insere o indivíduo na estrutura da linguagem e é, portanto,
eminentemente discursivo. O sujeito é um lugar que só se constitui no
ato da fala, no ato do uso da linguagem. O processo de individuação,
formação de persona e características individuais, passa
necessariamente pela incorporação de linguagens que o definem como
sujeito. Ele é o agente de uma ação pré-concebida e, por isso mesmo, é
agenciado. O sujeito da ação é sujeitado à condição da linguagem - de
viver em uma comunidade lingüística que define as representações,
ações, convenções, modos de pensar, expressões e ordenação do
pensamento em agenciamentos - construída a partir de máquinas binárias
(preto/branco, frio/quente, bom/mal, belo/feio...). Essa máquina
binária polariza o pensamento em uma estratificação estrutural que o
define e o limita - possibilita, então o agenciamento maquínico de
enunciação numa aproximação do homem com a máquina.
No contexto atual e mesmo relacionando uma 'evolução' histórica da
invenção do sujeito como categoria de conhecimento (que baliza a
experiência individual) o tema dominante é o 'Discurso de catástrofe',
que evoca estagnação e decadência. Nessa perspectiva, o pós-
estruturalismo considera a possibilidade da morte do sujeito. "Para
muitos, há a convicção de que a catástrofe já ocorreu e de que estamos
vivendo em uma zona morta - ou em um período de espera - assombrada
pela morte do sujeito." Em contrapartida, há uma tentativa de
restituição do sujeito por meio de uma re-locação, de sua reabilitação
e de sua reconstrução, numa proposta de representação alternativa
(diferente de uma interpretação) na tentativa de corporificar o
sujeito.
Um corpo que vibra e que se multiplica em constante processo. Ele se
coloca e se desdobra à deriva sobre um território e que é, em si
mesmo, um plano de consistência onde se sustenta e se cristaliza a
identidade. Essa identidade é cambiável entre vários planos de
consistência que são interligados e imanentes entre si. Este é corpo
sem órgãos, é um platô, é um campo de possibilidades abertas que é
constituído por movimento, por processo, por devir, ao invés da
estrutura ou da dependência de uma origem definidora. É a
possibilidade de afetos ao invés da especificidade dos sentimentos. Um
platô é um pedaço de imanência, ou seja, que tem conexões com outros
planos que estão em movimento.
O movimento é uma tendência, um devir que se cristaliza no campo de
consistência, que se define somente por zonas de intensidades, de
limiares, de gradientes, de fluxos. O corpo, então, não é uma
instância fixa, é a prática da libertação da organicidade e dos órgãos
na intenção de ter uma visibilidade da multiplicidade da
subjetividade. A subjetividade é, então, uma categoria do movimento,
ela é compreendida como um território em que dobra e se desdobra na
evolução do tempo. Nessa concepção, o cinema opera mutatis mutandis da
mesma forma (mas em escala menor) que a subjetividade em movimento
perene, ou seja, como forma de seqüências de planos imanentes entre
si.
Essa percepção do movimento promove uma imagem-pensamento marcada pela
anarquia das funções orgânicas e ordenadoras do corpo, fazendo do
filme uma experiência completa de sensações introjetadas - sendo que
desejo se manifesta nesses fluxos contínuos do corpo sem órgãos.
"O Corpo sem Órgãos é um corpo afetivo, intensivo, anarquista, que só
comporta pólos, zonas, limiares e gradientes. Uma poderosa vitalidade
não-orgânica o atravessa (...) A vitalidade não-orgânica é a relação
do corpo com forças ou poderes imperceptíveis que dele se apossam ou
dos quais ele se apossa, como a lua se apossa do corpo de uma
mulher."
A proposta de análise difere do pós-estruturalismo que fixa um sujeito
cindido e morto a partir do corpo como lugar de possibilidade de
subjetividade para se falar do sujeito relacionado à experiência
individual em perpétuo devir.
"Não se trata de um corpo despedaçado, esfacelado, ou de órgãos sem
corpo. O Corpo sem Órgãos é exatamente o contrário. Não há órgãos
despedaçados em relação a uma unidade perdida, nem retorno ao
indiferenciado em relação a uma totalidade diferenciável." O sujeito
não deve ser entendido nem como universal, nem como um indivíduo mas,
antes, como uma multiplicidade virtual.
O Corpo sem Órgãos parte de uma negação primeira como uma não
funcionalidade do corpo sendo apenas o lugar de subjetividade marcado
pelos seus múltiplos. A dobra, por sua vez, é também um lugar que está
entre-cortado por linhas, por afecções e narrativas dentro de uma
geografia pessoal. Esse lugar, corpo, se desdobra em troca contínua
com o exterior numa relação entre o 'dentro' (o que é retido pelo o
sujeito) e o 'de fora' (exterior).
Neste sentido, não existe sujeito de enunciado, apenas existem linhas
abstratas de agenciamento de enunciado. Linhas que se seguem em
desdobramentos de subjetividade. Essas linhas de segmentaridade ou
linhas de subjetividade atravessam o indivíduo e o prendem a uma rede
entre teias e tramas do ambiente social. Para Deleuze existem três
linhas de naturezas distintas: as linhas duras que definem o papel
social do indivíduo em sua trajetória em segmentos bem determinados -
são linhas que definem e são definidas pela cor, profissão, família,
sexualidade, nacionalidade, idade - são linhas atribuídas que
delimitam uma posição social.
Existem outras linhas que definem as relações políticas dentro das
dadas posições sociais, são as linhas moleculares, que delimitam as
relações de trabalho, inter-raciais, marido-mulher, etc., que permitem
micro-devires. Por exemplo, uma posição familiar é um segmento duro,
mas as relações e conexões entre os familiares coincidem com segmentos
moleculares.
Por último existem as linhas de fuga que transitam entre os planos e
que fogem dos processos de estruturação. As linhas de fuga caminham
entre e através de nossos limiares em "direção a uma destinação
desconhecida, não previsível, não preexistente." Todas as linhas
estão ligadas através de planos de consistência, elas têm relações de
inter-referência e se sustentam como plano através dessas ligações.
Pra Guatarri essas linhas refletem as principais componentes
heterogêneas que compõem a subjetividade: "1.Componentes semiológicos
significantes que se manifestam através da família, da educação, do
meio ambiente, da religião, da arte, do esporte; 2. Elemento
fabricados pela indústria dos mídias, do cinema, etc.; 3. Dimensões
semiológicas a-significantes colocando em jogo máquinas informacionais
de signos, funcionando paralelamente ou independentemente, pelo fato
de produzirem e veicularem significações e denotações que escapam
então às axiomáticas propriamente lingüísticas."
Não se trata mais do sujeito, mas sim, trata-se de uma subjetividade
latente, pautada em linhas de segmentaridade que se seguem também
através de platôs ou planos de consistência como patamares que
oferecem uma base transitória de consolidação de identidade que depois
avançam para outros planos imanentes num devir ininterrupto.
O deslocamento afetivo do espectador segue as mesmas linhas que
atravessam e cortam o indivíduo em sua reconstrução perene de
subjetividade. Na transposição para a relação espectador/sujeito pode-
se estabelecer o mesmo tipo de proposição a que Deleuze sugeriu para o
sujeito. Uma proposta de análise é que o espectador está posicionado
no mesmo plano de consistência do devir-imagem.
O plano de consistência, ou de imanência das linhas de subjetividade,
é semelhante aos planos de imagem cinematográfica, ou seja, são
reconfigurados como platôs ou regiões de intensidade contínua. Os
filmes são seqüências de planos, constituídos pela montagem o que dá
uma noção desfigurada de tempo. Existem as linhas duras que comportam
os elementos de representação específicos do cinema, (pode-se comparar
com o eixo do paradigma - o que Christian Metz considerou como a
indústria do cinema, ou seja, um aparato técnico de reconhecimento do
formato do cinema pelo espectador). Existem as linhas moleculares que
agenciam e movem as ações como os argumentos e roteiros, próprios da
narrativa (pode-se comparar com o eixo do sintágma). E existem as
linhas de fuga que se inserem nas duas linhas anteriores interferindo
no formato da narrativa e nas convenções da exposição das imagens,
possibilitando criar novas gramáticas e novas estruturas de
representação. Para o espectador seria uma linha de fuga que permite o
devaneio.
Todas as relações as quais se pretende analisar são estabelecidas
entre subjetividade e violência como um contato entre superfícies - a
tela plana do filme abala o território da subjetividade e forma dobras
de referências afetivas nesse processo. Essa proposição depende do
tratamento da relação da linguagem com o cinema dentro de um processo
violento de assimilação da imagem. Desse modo, no filme selecionado,
haveria uma dupla caracterização da violência: a primeira, como
criadora de uma 'deriva da imagem' orientada pela seqüência de frames
(a violência da imagem ou mesmo a imagem como narrativa); a segunda,
como o choque da narrativa bruta (a imagem da violência). Nos filmes
com temática violenta, a narrativa, a brutalidade e a ruptura se
encontram imiscuídas, tanto na forma, quanto no conteúdo. Narrativa e
violência tornam-se inseparáveis.

O lugar do sujeito

Pensar um sujeito que emerge de seu discurso é também pensar uma
lacuna. Não existe interpretação que mereça ser irrefutável, assim
como não existe discurso que seja onisciente. A fragilidade do
discurso consiste também no que ele não alcança, no que ele deixa para
fora, como algo que é inominável e, por isso, quase impossível. Esta
impossibilidade está no lugar da lógica discursiva e se inscreve nas
relações de poder. "Assim, por sua própria estrutura, a língua implica
uma relação fatal de alienação. Falar, e com maior razão discorrer,
não é comunicar, como se repete com demasiada freqüência, é sujeitar:
toda língua é uma reição generalizada." (Barthes, Roland. "Aula", 1977
pp13).
Por sua vez, a imagem incorporada (relacionando o corpo como matéria
de subjetividade) ao discurso oferece uma possibilidade complementar
do sentido do enunciado e amplia a experiência estética com o
sentido.
A experiência do limite social associada aos limites da linguagem deve
ser considerada em dois aspectos. "Por un lado, como experiencia del
fracasso. Si el sujeito es construido a través del lenguaje, como
incorporación parcial y metáfora a un orden simbólico, toda puesta en
cuestión de dicho orden debe constituir necessariamente una crisis de
identidad. Pero, por outro lado, esta experiencia de fracasso no es el
accesso a un orden ontológico diverso, a un más allá de las
diferencias, simplesmente porque... no hay más allá." . Essa crise de
identidade é conferida pelas falhas da representatividade da linguagem
e concebe o sujeito a partir das relações das diferenças.
O limite da linguagem evoca uma impossibilidade de significação
simbólica total com uma perda do referencial categórico (do
significante real) e remete o sujeito para um deslocamento de
identificação. Isso não configura a afirmação do real como impossível,
mas numa deficiência do discurso para tratar a experiência do
indivíduo na sociedade. É no processo simbólico - como lugar da
linguagem e dos processos de identificação - que se encontram as
falhas de representatividade do real. É no processo simbólico que se
discute a permissividade da cultura, numa postura relativista, na
estrutura universalizante.
Para Lacan, a impossibilidade do universalismo é paralela a do
relativismo. O que ocorre na relação indivíduo x sociedade é um
intermédio do universal pela função simbólica, há uma reabilitação das
faculdades universais por sua função de representação simbólica. "Ele
distingue o universal do genérico, afirmando que não há nada que faça
a unidade mundial dos seres humanos (Lacan, (1954-55) 1985a:49).
Todavia, qualquer sistema simbólico que se constitui é, enquanto tal,
universal. O que está em jogo é a universalidade da função simbólica e
não dos conteúdos que os diversos sistemas podem apresentar." Para
Lacan, a definição de Simbólico é dada como o lugar da cultura, mas
que não se resume a ela e sim pela rede significante. Essa rede remete
ao conjunto de significantes como referência do real numa tentativa de
totalização do sentido. O real é irredutível ao simbólico (subsiste à
simbolização), indica a impossibilidade da totalização simbólica e
remete ao conjunto e à cadeia de possibilidades de significação.
Isso remete à noção de sujeito da psicanálise como descentrado (o ego
não mantém uma hegemonia sobre a individualidade estando em conflito
com o id e com o superego), em composição ao "sujeito do inconsciente"
- que "desloca-se na cadeia significante, que numa 'outra cena' se
repete e insiste. Por oposição, o eu, pelas suas inércias imaginárias,
opera justamente para acobertar esse deslocamento que é o sujeito".
(Rinaldi, Doris. Op cit., pp30) O sujeito do inconsciente está
exposto, não existe mais em profundidade assim como o inconsciente,
que é simbólico, existe em dimensão aparente (exterior) e não mais na
ordem da representação. "O sujeito é uma superfície em um sistema de
dobraduras" sendo que essas dobraduras se referem às cadeias de
significantes e o sujeito se desloca de um significante para outro.
(Rinaldi, Doris. Op cit., nota 22). A superfície é imagem direta, não
mediada, a qual o sujeito pode se deslocar em suas dobraduras e sua
textura o que configura a topologia da fala. O sujeito é também
imagem, é através dela que se desloca e se desdobra, é em sua base que
firma o seu discurso. E o discurso é um agenciamento em suas
categorias de formação subjetiva.
A noção de sujeito passa por um processo de tomada de consciência
discursiva dentro de características do agenciamento, tanto no
desenvolvimento do arcabouço teórico da modernidade e pós-modernidade,
quanto na formação de subjetividade individual. É a partir do processo
de distanciamento com o divino, com a essência (a negação do saber
absoluto - onisciência, do poder - onipotência e do local total -
onipresença) que é demonstrado com outros deslocamentos que seguem da
dinâmica de interpretação da impossibilidade de poder real do homem,
da descoberta de categorias de conhecimento que escapam ao indivíduo
(o agenciamento, a alienação e a falsa consciência, por exemplo) e,
por fim, a impossibilidade de igualdade universal.
Ao tratamento da imagem como uma substituição metafórica, Nietzsche dá
a sua resposta com a importância do esquecimento da linguagem e da
naturalização das convenções (um agenciamento) realçando o privilégio
do real: "Only by forgetting that primitive world of metaphors, only
by the congelation and coagulation of an original mass of simile and
percepts pouring forth as fiery liquid out of the primal faculty of
human fancy, only by this invincible faith, that this sun, this
window, this table is a truth in itself: in short only by the fact
that man forgets himself as subject, only by all this does he live
with some repose, safety, and consequence." (1965:510- trecho
retirado de Crapanzano, Vicent. "Hermes's Dilemma and Hamlet's
Desire", 1992; grifo meu) Em última instância, não existe sujeito de
enunciação, existe um "agenciamento coletivo de enunciação", no
sentido em que é o agenciamento que produz os enunciados. É a partir
dele que é possível o deslocamento entre redes significantes.
(Deleuze, "Diálogos", pp38).
Essa compreensão da posição do homem é feita à medida que se distancia
da sua centralidade genérica e se consegue perceber que há na relação
indivíduo x sociedade a possibilidade de diferença que a sociedade
humana pode atingir. Existe a diferença em microcosmos com as
especificidades dos grupos identitários - localizando o indivíduo como
produto particular da cultura, imerso em sua própria rede de
significados. A possibilidade universalizante é relativizada pelas
relações de significação simbólica.
Sendo assim, o sujeito emerge primeiramente do reconhecimento da
capacidade de representação do real pela linguagem. Em segundo
momento, emerge por meio de uma consciência discursiva impregnado pela
possibilidade simbólica de representação da realidade e de suas
implicações políticas de inter-relação cultural. Mas é no seu
silêncio, no seu esquecimento de si mesmo, no seu inconsciente e no
seu devir (fluxo) que ele se encontra para além da dualidade indivíduo-
sociedade. O sujeito se realiza em sua própria experiência de
deslocamento em caráter performativo, a partir do agenciamento
estruturado de sua experiência em sua relação aparente com o outro.
A experiência de qualquer indivíduo no mundo é balizada por uma
aquisição cultural referente a uma realidade. Essa aquisição é feita
através da linguagem e dos valores que ela veicula socialmente. A
questão da experiência é ligada a um 'evento lingüístico' na medida em
que é referida a um significado estabelecido. Considerando que os
sujeitos são construídos discursivamente, eles são agenciados "através
de situações e posições que lhes são conferidas. Ser um sujeito
significa estar sujeitado a condições de existência definidas". (...)
Já que o discurso é, por definição, compartilhado, a experiência é
coletiva assim como a individual. Experiência é uma história do
sujeito. A linguagem é o local onde a história é encenada".

Sujeito no cinema

Se o sujeito é uma dobra - que separa o 'de dentro' e o 'de fora' e
se articula em movimento, em ações que delineiam sua subjetividade - a
própria subjetividade se constitui na experiência do tempo. O cinema,
por sua vez, é um tipo de experiência do tempo. O sujeito do cinema
diverge em vários momentos a quem se fala, de quem que se fala e em
qual posição. Ele existe em uma instância aproximada, como um efeito
sujeito, na superfície plana da tela onde não existem em profundidade
apenas seqüências, movimentos e cortes. O sujeito-personagem é uma
forma de agenciamento do sujeito-espectador. São segmentos de
narrativa que o delimitam. E de certa forma, se pronuncia através de
uma estrutura pluricéfala, múltipla. O que acontece no filme é que
existe uma instância de subjetividade: o espectador tem uma interface,
um encontro de superfícies com as linhas subjetivadas das personagens.
Por isso, torna-se possível fazer um cruzamento, como um apanhado de
feixes de narrativa que se circunscrevem como em um mapa. Pode-se
arrolar uma cartografia plana entre dobras, texturas, territórios
nômades por fundamento, móveis e volúveis, mas que fixam uma impressão
temporária. São efeitos de subjetividade, temporários, que deixam a
marca do tempo percorrido nas estrias da memória. Dessa cartografia
surgem tipos de subjetividades em graus de alteridade, como linhas ou
segmentaridades que cruzam e cortam o olhar - como a relação da
seqüência de corte da lua, atravessada por uma nuvem, e o corte do
olho em "O cão Andaluz" (filme do diretor Luís Buñuel).
Essas linhas são dadas como imagem e essa imagem transcorre como
pensamento. O pensamento-imagem flui dos segmentos de acordo com a
posição que o sujeito assume na sua relação com a própria imagem. São
efeitos subjetivos, que irradiam deslocando-se em sua posição em
relação com uma forma de poder. Há, por exemplo, o sujeito-roteirista,
diretor (que em 'Pulp Fiction' imiscuem-se na figura de Quentin
Tarantino ) - que se traduz na figura do sádico, ou do agente que
imputa as ações e sensações. Há que se lembrar que: "a atitude de Sade
se opõe à do carrasco, com que está em perfeita contradição. Sade
escrevendo, recusando a trapaça (da manipulação do poder), empurra-a
para personagens que realmente só poderiam ser silenciosos, mas os
utilizava para dirigir aos outros homens um discurso paradoxal."
Existe, então, o sujeito-ator, personagem - que age por meio da
intenção sádica do diretor, ele sofre a ação narrativa e, por sua vez,
a transfere ao espectador. A intenção sádica do diretor é explícita,
ou melhor, demonstrativa e, por isso, distante de uma intenção
pedagógica. "Trata-se de mostrar que o próprio raciocínio é violência,
que está do lado dos violentos em todo o seu rigor, toda a sua
serenidade, toda a sua calma. Não se trata nem mesmo de mostrar a
alguém, mas de demonstrar, de uma demonstração que se confunde com a
solidão perfeita e a onipotência do demonstrador. Trata de evidenciar
a identidade da violência e da demonstração."
Por fim, há o sujeito-espectador que se desdobra em ativo e passivo.
Ele traz tanto a carga do sádico - no momento em que pode se refletir
na imagem da personagem, sentindo o gozo indireto da sua ação -,
quando a do masoquista - no sentido em que sofre a ação da imagem
direta.
O desdobramento da posição do sujeito espectador é quase indefinido
posto que existe uma infinidade de gradações afetivas que aproximam e
distanciam o espectador da imagem que ele observa. Sua posição está
entre o voyeur, que se distancia da imagem, e o espectador ativo
masoquista que sofre a ação junto com as personagens .
Há ainda um grau de diferenciação em relação à identidade com as
imagens no que se refere à nacionalidade, à língua e à carga cultural
e histórica do espectador.
Neste caso, existe a componente cultural que coloca o espectador no
lugar estrangeiro (e não o filme de outra nacionalidade), que tem que
participar do ato da leitura da legenda, com a imagem dotada de um
texto escrito dos diálogos.
É o filme que coloca o espectador na situação de estrangeiro - sujeito-
espectador estrangeiro - quando mostra uma imagem completamente
diversa do que é encontrado no cotidiano, não só a textualidade dos
diálogos, mas as paisagens, as relações humanas assim como todo o
objeto que é evidenciado. Mas principalmente no que se refere à
imposição violenta da linguagem que impele o espectador a uma situação
cultural inferiorizante, o impele a ser estrangeiro na sua própria
terra e a fabricar o seu desejo de ser outro, aquele outro. O
espectador é 'estrangeirizado'. É por essas questões que levaram Béla
Bálaz a indagar "Não há nada mais subjetivo do que o objetivo."
De certa forma, todos esses tipos confluem numa mesma narrativa, o
efeito-sujeito seria multiplicado na narrativa, deslocado em linhas
paralelas com uma inserção violenta. Mas essa narrativa não seria
apenas fragmentária e sim, na condição em que adiciona e aciona novos
tipos de leituras de acordo com o feixe de narrativa em movimento com
o engajamento com a imagem, como novas formas de experienciar a
imagem.
Fazendo um paralelo entre a fotografia e a imagem cinematográfica pode-
se integrar a noção de Roland Barthes sobre punctum , sobre a
apreensão afetiva com a imagem como o que fixa o olhar subjetivo,
focando um objeto em especial. Há um ponto de fuga na imagem
fotográfica - que, no caso do filme, delineia uma linha de fuga. Em
relação ao cinema, a imagem em movimento multiplica o objeto, quadro a
quadro, assim como o ponto em foco na fotografia que neste caso é
multiplicado em vários quadros o que dá a sensação de movimento. Dada
à multiplicação e multiplicidade dos pontos em seqüência de espaço e
de tempo são configuradas linhas narrativas - que formam teias de
associações e apropriações na relação do espectador com a imagem. É no
movimento que se estabelece a imagem discursiva em que se pode contar
a trajetória deste um ponto que não é mais um, a narrativa no cinema é
sempre múltipla. E é através da montagem, da inclusão de novas linhas
narrativas que há o desdobramento não só de espaço, mas de tempo, numa
apreciação da sensação do tempo condensado em imagem. No processo de
desdobramento de subjetividade é o tempo que permite a incorporação de
novas dobras.
Um exemplo da apreciação do tempo no filme ocorre no primeiro serviço
dos dois pistoleiros. Eles estão em um apartamento para buscar uma
mala que tem um conteúdo misterioso e, em um dado momento, os
pistoleiros disparam suas armas contra os ocupantes do apartamento. A
cena é cortada, segue-se o episódio do encontro entre Vincent Vega e
Mia, só depois no próximo episódio, que se desenrola a ação no
apartamento, inserindo uma outra linha narrativa com o encontro com a
personagem de 'The Wolf'.
Então se instauram as múltiplas linhas de narrativa, entre pontos
integrados e compassados, assim como na partitura de uma música. E é
nesse desdobramento do ponto que se enredam as linhas de
subjetividade. A música, por sua vez, contribui complementando os
diálogos, criando uma ambientalização com referência aos anos 70'. Ela
traz uma harmonia do conjunto das histórias e é carregada de ironia
entre a 'inocência' do beach music e a violência da imagem.
Existe ainda um outro efeito subjetivo da imagem que se dá por meio
das associações punctuais que escapam à linguagem e se referem às
impressões que cada olhar pode submeter à imagem. Neste caso, os
efeitos de subjetividade recaem não necessariamente sobre uma
personagem, mas também à ambientação, musicalidade, cenário, uso das
cores e luzes (jogos de sombras) que remetem a um arquivo imagético e
imaginário pessoal em constante fluxo de movimento. São sensações que
articulam sentimentos e remetem à definição de sublime no cinema. "A
imagem cinematográfica deve ter um efeito de choque sobre o pensamento
e forçar o pensamento a pensar tanto em si mesmo quanto no todo. É
esta a definição precisa do sublime" . Essas imagens remetem,
freqüentemente, às condições psicológicas das personagens, mas também
realçam as conexões da narrativa e chegam ao inominável da imagem. "A
imagem explícita provoca o esgotamento da capacidade de descrever. O
advento do cinema só aceleraria este processo. Tudo passou a ser
instantaneamente mapeado."

Relações de poder

O segundo episódio tem a sua introdução no prólogo quando Jules fala
sobre Mia, esposa de Marsellus Wallace, e conta sobre a história de
Antwan Rockamora, um homem que massageou os pés de Mia e por isso foi
jogado pela janela do quarto andar pelo patrão. Vincent tem que levá-
la para sair, a pedido de Marcellus, e está intimidado com a situação.
O diálogo do prólogo já incita uma condição delicada em que prenuncia
o suspense e a tensão que irão surgir no encontro entre Vincent e Mia.
Para eles o prazer é interdito desde o princípio.
A música 'Let's Stay Together' (na versão de All Green) anuncia as
imagens e permanece ao fundo criando um ambiente intimista no diálogo
inicial. As primeiras cenas fazem uma introdução para o bloco
seguinte: O Relógio de Ouro. O episódio começa em um ambiente fechado
e escuro (uma boate de top less), mostrando as feições tensas de Butch
Coolidge (Bruce Willis), com uma voz abafada ao fundo, de quem se
presume ser Marcellus Wallace, apenas a sua nuca é mostrada. Essa voz
grave pressiona Butch com o argumento que "boxers don't have an old
times day" , e ainda diz que 'é necessário esquecer o orgulho' ("fuck
pride, pride only hurts" ) e que só caindo agora teria sucesso no
futuro. Trata-se de um arranjo entre o patrão e o boxeador para
fraudar a próxima luta de Butch.



Existe uma hierarquia das relações de poder no filme que opera dentro
de uma ética entre bandidos. Eles ocupam o lugar do herói na
narrativa, mas isso não quer dizer que é uma abordagem a-moral do
banditismo e, sim, que existem regras e normas internas que refletem o
tipo de linha de agenciamento que as personagens retratam. Trata-se de
uma caricatura dessas relações de poder que banaliza a violência,
trazendo-a para o cotidiano das personagens e, por outro, lado agencia
o espectador numa narrativa distorcida. O grande poder da imagem está
no convencimento de que ela é uma realidade paralela e imputa uma
relação de afecção com o espectador, que paira entre atração e
rejeição em graus de intensidade.
A cena inicial faz referência ao episódio seguinte com o boxeador
fugindo após o término da luta. Butch está numa posição humilhante em
que tem que aplacar seu orgulho e aceitar a propina, apenas concorda
com Marcellus: ele deverá cair no quinto assalto da luta. Em nenhum
momento aparece o semblante do patrão, apenas sua nuca é mostrada,
numa alegoria do poder que não tem face, mas sua influência se alastra
atingindo tudo a sua volta.



Quando Butch está se retirando do recinto ele se encontra com Vincent
Vega, que está trazendo a mala para o patrão e, na escala hierárquica
de poder, está abaixo de Marcellus e acima de Butch. Vincent está com
a roupa que Jimmy (interpretado pelo próprio Tarantino, aparece no
quarto episódio) emprestou o que indica que é o desfecho da primeira
estória. Os dois se estranham, enquanto Vincent toma o seu drinque ol'
American, Butch pede um maço de 'Red Aple' (marca de cigarro inventada
por Tarantino). Esse enfrentamento e a antipatia inicial são
justificados no próximo episódio quando os dois se re-encontram em
outra situação em que Butch, em um momento de suspensão, dá um término
à rixa inicial atirando em Vincent.



Os episódios se entrecruzam em narrativas circulares. As relações de
poder exploradas no filme são centralizadas na figura do mandante, o
patrão, e dela emanam ou são delegadas as funções de manter esse poder
central por meio dos pistoleiros, que são como emissários de uma
vontade de poder dominante. A vontade de poder é uma condição
existencial das personagens tanto de sua vontade pessoal quanto da
vontade da entidade (Marcellus Wallace é descrito no roteiro como uma
mistura entre satã e rei), que eles representam. Os mandatários são os
propagadores dessa vontade de poder e são também os propagadores da
violência que sustenta essa vontade. Por outro, lado esse poder não é
ilimitado, ele é subvertido por Butch quando ele quebra o acordo feito
com o patrão e, mais ainda, quando Marcellus Wallace é preso e
violentado por dois pervertidos no capítulo seguinte.
Quanto às relações de poder é interessante ressaltar que 'Pulp
Fiction' é um filme eminentemente masculino e reflete a identidade
norte americana como linha demarcatória de uma subjetividade
dominante. Há a tese defendida por Slotkin segundo a qual a
"identidade americana depende de um ethos de violência" . Os filmes
são representantes ativos de uma nação, uma localidade; são expressões
de uma língua e cultura específicas e carregam toda a herança
histórica de uma nação como uma 'comunidade imaginada'.
'Pulp Fiction' expressa um modus operandi da mentalidade e estilo de
vida americanos com uma caricatura visceral do underground de Las
Vegas. As referências às décadas de cinqüenta e de setenta são
pertinentes ao imaginário coletivo reproduzido pela indústria
fonográfica e cinematográfica. Por outro lado, é um filme que expõe o
que deveria ser velado, em uma sociedade que consome vertiginosamente
imagens (e aparências), expõe uma brutalidade latente e hipócrita que
revela uma necessidade de violência expressa na demanda dos
espectadores e de sua experiência com o aparato imagético
cinematográfico.
"A experiência dos espectadores é baseada na visão do elemento
masculino de 'existir' (ou seja, caminhar, mover-se, lutar) e em
paisagens urbanas, paisagens naturais, ou mais abstratamente na
história. E no prazer inquietante de ver o macho mutilado... e
restaurado por meio de violenta brutalidade."
No caso do espectador estrangeiro a relação de dominância vai além da
ótica de uma violência masculina. Na relação entre fronteiras
culturais, há um lapso da linguagem, na tradução das falas, em que
muitas idéias e referências passam desapercebidas. A legenda aparece
também como imagem e como corpus do filme e, por isso, integra uma
impressão fragmentária da imagem. Mas, a maior questão é a imposição
de uma subjetividade dominante, delineada pela narrativa do filme que
surge como valor agregado à imagem, dando a nítida im-pressão de que o
melhor é aquele outro que a imagem representa. A imagem enquadra o
sujeito. Assim, o espectador estrangeiro está sujeitado a uma relação
de dominância da imagem em grau diferencial e mais opressivo (por que
é agenciado em parâmetros culturais que lhe são exteriores), e é, por
isso, submetido e renegado a uma subjetividade periférica onde o
espectador é estrangeirizado pelo filme.
Este aparato imagético dos filmes é extensamente consumido como
categorias que os associam diretamente com a nacionalidade. Outras
categorias também ordenam a classificação dos filmes e os relacionam
com os 'gêneros' ou os tipos temáticos como: drama, policial,
suspense, terror, romance, comédia, clássicos, etc. Isso indica que os
filmes são formas de agenciamento de discursos e, mais ainda, também
são agenciados por suas políticas de produção e distribuição em escala
mundial que tem uma estrutura operante há quase um século.
Ao mesmo tempo, respeitando as fronteiras que as diferenças culturais
impõem, as imagens e as idéias transmitidas pelos filmes são
incorporadas, apropriadas por sociedades que estão na periferia da
produção cinematográfica. O fato é que a produção cinematográfica
criou um referencial próprio - o imaginário não está apenas restrito a
uma nação, mas faz parte de uma comunidade sem fronteiras que,
obviamente, oferece privilégio a algumas obras - dependendo do lugar
de onde foram produzidas e onde foram consumidas e que também estão
submetidas à política de distribuição dos filmes.


Relação Homem-Mulher

As relações entre homem e mulher, ao longo do filme, são demarcadas
também por relações de poder. No caso do primeiro casal Honey Bunny e
Pumpkin, eles dividem o poder literalmente por meio da arma como forma
de sustentação do seu enlace afetivo. No caso de Vincent e Mia, há uma
inversão no jogo de poder pelo fato de Mia ser a esposa do chefão. No
outro casal, que aparece no episódio do Relógio de Ouro, a relação
entre Butch e Fabiene é de submissão da mulher que traz a sua
caracterização quase como débil. No episódio final, a simples menção
de que Bonnie poderia descobrir que dois pistoleiros haviam levado um
corpo sem cabeça para sua casa leva Jimmy ao pânico e isso leva os
pistoleiros a chamarem por ajuda de uma 'força maior', figurada pelo
personagem 'The Wolf'.
Após o encontro entre Butch e Vincent há um corte. A tela preta
inaugura uma nova narrativa com a voz de Jody (Rosanna Arquette)
dizendo: "... faz com que cada parte do seu corpo seja como a ponta de
um pênis". O corpo dela coberto por "piercings" é transpassado por uma
sexualidade latente que marca um efeito de subjetividade associado ao
trash e, também, à alegoria com as drogas, são elas que perfuram o
corpo e lhe dão uma nova substancialidade. Como se todo o formato da
narrativa e também o corpo das personagens estivessem entre-cortados
pelas gradações de intensidade de um 'corpo sem órgãos' os episódios
retratam uma permuta, uma perversão deste corpo retórico. Jody é
mulher de Lance, o vendedor de heroína. Ela defende o uso da agulha em
oposição à pistola para fazer as perfurações:

"Forget that gun. That gun goes against the entire idea behind
piercing."


No caso, a agulha toma o lugar da arma e toma também o lugar do pênis,
de uma forma literal, como é tratada mais adiante no mesmo episódio.
Uma música de praia (beach music) invade os diálogos e há um corte
para a conversa entre Vincent e Lance (Eric Stoltz) sobre a qualidade
da heroína que o primeiro está comprando. Lance está de roupão e por
baixo tem uma camiseta do desenho 'Speed Racer', (desenho animado
sobre corridas de carros). Enquanto escolhe o que vai comprar, Vincent
fala sobre seu carro, um Malibu vermelho de 1964, que teve a tintura
riscada durante o tempo em que ficou guardado. De acordo com a ética
marginal, para Vincent, quem o riscou praticou um mal 'contra todas as
regras' e deveria ser 'executado'. Esta é a primeira menção de Vincent
ao carro, mas em outros momentos ele deixa uma imagem que se
cristaliza com a sua associação com o carro, como se fosse uma máquina
agenciada pelo patrão, agenciada pela droga que consome, pelo papel de
pistoleiro e mesmo no seu estímulo sexual.
Como Lance não tinha a embalagem própria para heroína colocou-a em um
saco plástico como se fosse cocaína e ofereceu sua casa para Vincent
experimentar a mercadoria. Ele prepara a agulha ao som embalado da
música Rumble (de Link Wray & His Ray Men) e as imagens são
intercaladas entre o carro e a aplicação fazendo uma associação entre
a viagem da droga e a viagem de carro.
Só então, Vincent vai buscar Mia Wallace, (a verdadeira heroína do
episódio). A introdução da personagem Mia é feita de modo gradual,
existe um certo suspense, dado que ela é a esposa do patrão e qualquer
possibilidade de envolvimento entre eles seria uma traição com
conseqüências drásticas. Vincent chega à casa de Mia após ter tomado a
sua dose.
O primeiro contato entre eles é através de um bilhete fixado na porta.
Vincent entra e o som o acompanha com a música "Son of a Preacher
Man" (com Dusty Springfield); enquanto isso, há o segundo contato por
meio das câmeras de vigilância de Mia. Ela o vê e o convida para
entrar, sua voz sai dos alto-falantes. O terceiro contato é por meio
de um interfone. Essas escalas de aproximação propõem a
intangibilidade da mulher para além do jogo de suspense, há um jogo de
poder ou da impotência do homem diante do seu código de conduta e
moral próprios. A relação de poder entre homem e mulher aqui está
invertida, é ela que coordena as ações de Vincent. O rosto de Mia só é
revelado quando ela aspira uma dose de cocaína, nesse momento o volume
da música aumenta enquanto Vincent bebe um drinque.
Ela deseja ir a um bar temático dos anos 50', Jackrabbit Slim's. Ele
não tem opção, ela o acusa de ser quadrado, desenhando a forma
geométrica que fica fixa no ar, fica inscrita na imagem por alguns
segundos. Ele tinha que o entreter e realizar todas as suas vontades.
O bar é o sonho de todo fã de Elvis, a música ambiente é 'Lonesome
Town' de Ricky Nelson. Além dos cartazes de filmes antigos existem
várias referências a figuras clássicas do cinema americano como
Marilin Monroe, Buddy e outros.
Eles pedem seus hambúrgueres "bloody as hell", sangrentos como a
narrativa que irá se desenrolar. Ela pede um milk shake de $ 5 dólares
e fica brincando sensualmente com a cereja. Eles conversam um pouco
sobre como Marcellus e Mia se conheceram por meio de um programa
'piloto' chamado 'Fox Force Five', em que ela era uma especialista em
facas e que deveria contar uma piada a cada episódio. Ele insiste para
que ela conte, mas ela prefere deixar no suspense, como uma reserva
pessoal e como uma forma de sedução pelo mistério. Essa piada é
revelada no fim deste bloco narrativo como desfecho de uma forma de
entrega e de cumplicidade.



Há um momento de silêncio entre os dois, o 'silêncio que incomoda',
que emerge quando ainda não há intimidade entre as pessoas e há a
situação forçada de estarem juntas. Esse breve silêncio afere-se
também a um tempo, um espaço de tempo que revela uma suspensão entre
as duas personagens. Está em suspense uma tensão inicial que distancia
os dois e que precisa ser rompida com a quebra do silêncio
Então, ela se retira para o banheiro (para empoar o nariz) e pede para
que ele pense em algo para falar, para entretê-la. O seu caminhar é
acompanhado em câmera lenta, realçando os trejeitos femininos afetados
por influência da cocaína. Quando ela abre a porta do banheiro há um
cartaz de um carro de corrida como uma outra referência ao elemento
masculino que explicita a excitação e a tensão entre os dois. Já no
interior do banheiro do bar Mia consome outra dose.
Quando ela retorna, os pedidos já estão à mesa e então Vincent inicia
um comentário interessante (já que sua fala foi exigida por uma 'ordem
maior') sobre os serventes que estão a caráter, vestidos com roupas de
personagens de filmes dos anos 50'. A necessidade dessa fala, como uma
forma de aproximação dos dois, é o oposto da violência tida como
'aquilo que não fala'. O comentário inicial abre caminho a uma
pergunta mais pessoal feita para Mia.
Vincent entoa uma dúvida, uma pergunta que queria fazer, mas ainda
está vacilante e que este deveria ser um assunto proibido. Mia fica
curiosa e insiste para que ele faça a pergunta, pois "tudo o que é
proibido é mais emocionante". Só então ele questiona sobre a história
de Antwan "Rocky Horror" e se era verdade que ele tinha sido atirado
pela janela por ter feito massagem nos pés de Mia. Ela é bem irônica
quanto a isso, mas deixa bem claro que ele, 'Rocky Horror' nunca a
tocou a não ser quando deu um aperto de mãos no dia do seu casamento.
Apenas Marcellus e o próprio Antwan sabem o que aconteceu entre eles.
Este é o mistério, tudo pode acontecer enquanto estiver velado e
encoberto.
Neste momento, a voz nasalada do apresentador anuncia um concurso de
dança ao estilo twist em que o casal vencedor ganharia um troféu. Mia
manifesta desejo de participar e, enquanto Vincent tentava balbuciar
alguma esquiva, ela novamente impõe sua vontade de maneira bem mais
imponente:

"I do believe Marsellus told you to take me out and do whatever I
wanted. Well, now I wanna'dance, and I wanna win that trophy. So
dance good."


Com essas palavras, é impossível para Vincent se negar à dança, ele
não tem apenas que dançar, mas tem que dançar bem. O fato é que ele
realmente dança bem e seus gestos também se tornaram marcas do filme -
como quando ele passa os dedos apontando os olhos realçando seu
estilo.




A cena da dança é também uma referência ao trabalho anterior de John
Travolta. Tarantino firma o seu estilo trazendo atores que foram
marcados por trabalhos na década de setenta como o próprio John
Travolta em "Embalos de Sábado à Noite" e "Grease, nos tempos da
Brilhantina", por exemplo, que abusam das performances de dança. Chega
a ser irônico ver Travolta dançando no cinema novamente. Essa
característica acontece em outros trabalhos do diretor como em 'Jacky
Brown' em que a atriz Pam Grier é convidada para o papel principal,
sendo que ela foi famosa por atuar em séries policiais dos anos
setenta.
Nestes casos os atores que emprestam seus rostos para as personagens e
as personificam trazem também a carga de suas trajetórias
profissionais para dentro do filme, remontando com ironia (devido
também ao fato de John Travolta estar fora de forma em comparação com
o seu porte atlético e dançarino nos filmes anteriores) em referência
ao imaginário cinematográfico coletivo. Isso faz com que o ofício do
ator seja de-marcado como um território que se fixa a cada tomada de
personagem. O ator empresta o seu rosto como uma forma de marca, uma
"rostidade", que guarda toda multiplicidade de caracteres das
personagens. "Nós nos servimos de termos desterritorializados, ou
seja, arrancados de seu domínio, para reterritorializá-los em outra
noção, o 'rosto', a 'rostidade' como função social." Essa rostidade
oferece uma função demarcatória, uma referência afetiva em meio à
multidão de rostos a que as imagens oferecem.
No filme essa rostidade é uma forma de preenchimento e de fixação de
uma subjetividade inscrita na personagem, seu rosto é a sua
apresentação para o mundo. No caso, os rostos de Vincent e de Mia
funcionam como marcas de um produto. Os cartazes de divulgação que se
seguem demonstram essa fixidez da imagem como uma dobradura, ou um
efeito-sujeito que o filme apresenta. Há na primeira linha a
referência inicial do diretor, como o mesmo criador de "Reservoir
Dogs" ou "Cães de Aluguel", em português.
Logo abaixo, há a caracterização da personagem como 'the hitman', o
pistoleiro para Vincent e 'the big's man wife', a esposa do chefão
para Mia. No canto superior direito, há frases que marcam as
personagens. O rosto dos atores com iluminação excessiva impregnam a
foto com sombras, em referência tanto aos filmes noir, quanto às
revistas de pulp fiction. O título do filme faz referência também à
impressão da revista, tendo o nome do diretor em seguida. Os atores,
em suas rostidades, expressam as personagens que estão associadas às
armas, tendo logo ao lado os seus nomes impressos.



Após a seqüência da dança, eles chegam à casa de Mia ainda dançando,
bem românticos, com o troféu nas mãos. Enquanto ela põe uma música (no
toca-fitas antigo que é mais uma referência à década de setenta) ele
vai ao banheiro. A música em questão é "Girl, you'll be a woman
soon" (de Urge Overkill), que cria o ambiente para o que aparenta ser
o prenúncio do intercurso sexual.
Nesta fase do episódio, há uma série de cortes intercalando Mia e
Vincent que estão em aposentos diferentes. Enquanto Vincent está no
banheiro, se encarando no espelho e tentando conter sua ansiedade
dizendo a si mesmo: "Apenas um drinque e vá embora" - Mia continua
dançando vestida com o casaco dele. Novo corte para Vincent que
conversa com sua imagem no espelho, falando sobre lealdade e que toda
essa situação é um "teste de moralidade". Mia enrola seu cigarro e
procura pelo isqueiro no bolso do casaco de Vincent, e acaba
encontrando um saco plástico cujo interior aparenta ser cocaína.
No banheiro, Vincent se controla organizando seus atos:




"One drink and leave. Don't be rude, but drink your drink
quickly, say goodbye, walk out the door, get in
your car, go home, jerk off. That´s all you gonna do. "

Na sala, ela bate a heroína para cheirar. No momento que ela aspira o
pó o seu nariz sangra e ela fica com os olhos vidrados - a música
acaba. Quando Vincent sai do banheiro ela está desfalecida no chão da
sala e está claramente com over dose. Com isso, todo o glamour da
situação se esgota em direção ao bizarro. A próxima cena mostra o
Malibu vermelho de Vincent correndo desenfreadamente no trânsito, ele
liga para Lance e é para a casa do traficante que ele se dirige,
batendo o carro no muro do jardim de entrada.
Na seqüência, a câmera está trêmula como reflexo de um marcador do
pulsar do coração em meio à agitação do momento. A chance de salvar
Mia é aplicar uma injeção de adrenalina direto no coração. Novamente a
agulha aparece como uma substituição do pênis com um desfecho não
convencional. Este é o clímax do episódio. No instante em que Vincent
se prepara para aplicar a injeção há uma montagem de imagens que
acentuam o suspense da situação. Mostra-se o rosto desacordado de Mia,
a agulha pronta em riste, os rostos de Lance e depois de Vincent, o
ponto que foi marcado com caneta para receber o golpe da seringa, a
expressão de excitação no rosto de Jody na expectativa da ação e, por
fim, o rosto tenso de Vincent novamente. Imediatamente após o golpe,
Mia solta um grito e dá um pulo, sentando-se com a agulha ainda
cravada em seu peito.



O gozo do espectador estaria na experiência do grotesco que a
narrativa apresenta, com toques de humor negro. Lance pede para Mia
falar alguma coisa e ela responde: "something" . Jody, ainda com a
expressão de excitação, como se estivesse adorando o que presenciou,
faz o seu comentário final: "that was fucking triping"
Novo corte, Vincent está levando Mia para casa em seu carro, os dois
estão abatidos. Já na entrada da casa de Mia ele pede para que ela não
conte nada para Marsellus e ela promete segredo: "I can keep a secret
if you can" . Eles se despedem com um aperto de mãos, mas antes de ir
embora, ela conta a piada do seu programa piloto. Quando ela se vira
ele ainda manda um beijo à distância pelo que poderia ter sido.
A construção das personagens parte da idéia original do roteirista,
passa pela abordagem do diretor, funciona como persona do ator que o
incorpora e só então é passível de ser consumido e apropriado pelo
espectador que o acompanha em sua linha discursiva se inscrevendo
também com a personagem. Nesse processo de formulação da personagem,
duas características emergem da relação do espectador com o filme: a
primeira como a relação entre subjetividade e multiplicidade; e a
segunda se delineia de modo similar ao objeto de desejo. Neste caso, o
desejo de consumo de uma imagem de um outro é também disseminado e
múltiplo. "Sem o suporte da presença de um outro, a subjetivação tende
a tornar-se de tipo alucinatório, ela não se concentra mais sobre um
sujeito, ela se dispersa sobre uma multiplicidade de pólos, mesmo
quando ela se fixa sobre um único personagem."
O espectador se inscreve também na narrativa, mas sua ótica abrange
várias personagens em uma subjetividade múltipla a que se submete. Ele
assume, então uma subjetividade em devir, como um fluxo - de acordo
com a forma em que o filme apresenta a sua história - assim ele sofre
as ações, se emociona ou não, como uma subjetividade eminentemente
masoquista.
O espectador, então, é um elemento do filme e assume uma posição em
graus de intensidade de afecção entre o voyeur e o masoquista. Como
elemento do filme, ele se submete à imagem de modo passivo (por que
não interfere na narrativa, apenas espera que ela aconteça) e ativo
(por que se integra à imagem). O masoquista, segundo Deleuze, não é
aquele a quem, por desejo próprio e pervertido, se imputa uma
violência ou uma tortura, ele é um pouco mais sofisticado. O
masoquista cria o seu próprio algoz de acordo com o que deseja, é ele
quem manipula indiretamente as ações. É próprio do masoquismo a frieza
e a crueldade. Há uma mescla de repugnância e atração expressa numa
'estética do feio' que vaga entre o meigo e alegre e o severo e o
frio. "A frieza, o gelo, tudo fez: fez da sentimentalidade o objeto da
reflexão do homem, da crueldade o castigo de sua grosseria" . (levando
em conta que esse castigo é desejado). Na relação do espectador com a
imagem há uma frieza inicial que o alça a uma sentimentalidade a-moral
que, por sua vez, é expressa na crueldade necessária para a volição
que a imagem apresenta. A crueldade torna-se necessária para o
espectador se alçar a uma relação supra-sensual com a imagem.
Na relação com o cinema, o espectador emprega o seu desejo por
violência no momento em que seleciona o filme para assistir, ou seja,
no momento de sua demanda. Somente depois é arrastado pelo devir
imagético da narrativa. Em termos específicos, o masoquista associa a
dor ao prazer como uma operação racional, por vezes contratual (em
relação à compra de imagens de violência). Além disso, o masoquismo
opera por meio de apreensão de descrições visuais, como uma forma de
expiação e de fetiche, características essas realçadas no espectador.
O fetiche aqui é tratado como uma possibilidade de configuração do
desejo como uma referência, uma possibilidade fixa do desejo pela
imagem e da demanda por violência. "O fetiche não seria então de forma
alguma um símbolo, mas seria como um plano fixo e estático, uma imagem
parada, uma foto a que voltássemos sempre para conjurar as
conseqüências importunas do movimento, as descobertas importunas de
uma exploração: ele representaria o último momento em que se podia
ainda acreditar..."
Dentro de uma pedagogia dos códigos de filmagem existe, para o
espectador, a naturalização dos recursos de imagem, dos cortes e das
associações, da compreensão da montagem e, por fim, da narrativa
envolvida nos planos de imanência da imagem. Esses elementos para
assimilação da narrativa no cinema demandam um fetiche pela imagem, um
desejo de consumi-la. "O fetichismo é definido pelo processo da
denegação e do suspense, pertence essencialmente ao masoquismo." O
filme, de modo geral, opera na mesma lógica de suspensão de uma
realidade pessoal do espectador para um agenciamento na narrativa onde
se desdobra o efeito-sujeito das personagens.
Em relação ao caráter performático do fetiche para o espectador "...
vê-se a dupla dimensão do fetiche e a dupla suspensão que lhe
corresponde: uma parte do sujeito conhece a realidade, mas suspende
esse conhecimento, enquanto a outra parte se suspende no ideal." No
caso do cinema, no processo de fruição das imagens, o ideal consiste
na realização do fetiche do consumo de uma violência pictórica
impregnada no imaginário popular. Existe, então, uma dupla captura (a
dupla suspensão) do espectador proporcionada pela imagem e, de forma
mais proeminente, pela imagem de violência. É do masoquismo do
espectador que nasce a 'crueldade necessária' como uma forma de
satisfazer o fetiche da violência. E este mesmo processo é uma forma
de agenciamento do próprio fetiche que é satisfeito no gozo da imagem
violenta.
Há ainda uma outra subjetividade que atravessa a narrativa expressa
na própria figura do diretor que a conduz. Em última instância, é o
diretor que agrega condições de articulação da imagem e a traz para o
espectador. É a partir de sua ótica que a narrativa é montada, como um
mestre de cerimônias que apresenta o espetáculo. É neste sentido que
se pode considerar um traço de subjetividade sádica do diretor que
acompanha a narrativa.
O sádico é aquele que aciona seu prazer imputando sensações de dor no
outro. Uma crueldade fundamental está na base de suas ações. No caso
do filme, é o diretor que aciona as possibilidades de afecção com a
imagem. O espectador está submetido a essa imagem. O sádico se imbui
de um elemento provocador e apresenta imagens que correspondem à sua
fantasia como uma negação do real e mais, não como uma forma de
suspensão, mas atuando de forma de um agenciamento de desejos, em uma
ordem específica delimitada pela imagem.
Existe, então a subjetividade sádica do diretor que aciona a afecção
do espectador em um devir imagético. Para Deleuze, a figura do sádico
se baseia na demonstração, no prazer de demonstração: "ele não pode
senão acelerar e condensar os movimentos de violência parcial. A
aceleração se faz pela multiplicação das vítimas e suas dores. Quanto
à condensação, implica em que a violência não se dissipe seguindo
inspirações e arrebatamentos, que nem mesmo se deixe dirigir pelos
prazeres que se esperava, (...), mas que seja conduzida com sangue-
frio, e condensada por essa frieza mesma - essa frieza do pensamento
como pensamento demonstrativo."
Essa violência condensada na imagem é conduzida pelo diretor. E a
aceleração é dada tanto na multiplicação dos espectadores quanto na
forma em que ela é feita, ou seja, através de cortes abruptos e ao
mesmo tempo móveis (por que incitam a relação de um plano a outro,
como movimento interno que revela o todo do filme) da montagem.
A experiência do espectador, no ato de assistir um filme, funciona
como um contato ou um encontro entre superfícies: a superfície da tela
plana da imagem projetada e a superfície do espectador subjetivado
pela imagem. Existe, como desdobramento dessa relação inicial, o
encontro entre a superfície da subjetividade sádica do diretor e a
superfície do espectador masoquista, que sofre um processo de
subjetivação pela imagem. Como dois amantes, o sádico e o masoquista
(diretor e espectador) se envolvem através das imagens em linhas
múltiplas de narrativa. Esta relação é realçada quando se trata do
tipo de filme que está sendo analisado, justamente pelo seu teor de
violência como forma de afecção com a imagem.
Tarantino tornou-se uma marca também, desde seu roteiro que originou
o filme "Assassinos por Natureza" dirigido por Oliver Stone. O
cineasta tornou-se referência desde o seu trabalho anterior "Cães de
Aluguel", assim como aparece nos cartazes de divulgação de 'Pulp
Fiction'. Sua marca aparece com o tratamento do tema da violência, na
sua base mais popular, isso também justifica a apropriação do modelo
das revistas e na abordagem fragmentada da narrativa. O espectador
também compra essa imagem de Tarantino com sua características que o
figuram como um cineasta cult. Há, então, esse encontro de uma demanda
masoquista do espectador com a sagacidade sádica do diretor - que
opera numa "normatização", uma naturalização desse gosto do espectador
pelo bizarro.



Quentin Tarantino

3. The Gold Watch -
O Relógio de Ouro

Imagem

O real, o concreto, a base material, o corpo são, em primeira
instância, as 'primeiras realidades' com as quais interagimos e
reagimos , são de onde vem o fundamento de todas as imagens e
significados que a elas remetemos. São as sensações e os sentidos que
medem a percepção, então não se trata de uma lógica da percepção como
um fenômeno, mas como algo ligado intrinsecamente ao material e ao que
sentimos e extraímos dele. São essas sensações imediatas que constroem
a percepção de mundo, através delas que criamos histórica e
culturalmente os signos, símbolos e toda a sua carga de significado. É
por elas que temos a experiência e que estipulamos a nossa posição
como sujeitos. Um dos princípios do aprendizado da experiência do
mundo é justamente a repetição (o aprendizado da língua, por exemplo,
decorre em primeira instância, com a recorrência e repetição e da a-
provação como resultado de uma ação inicial do provar e de ser
aprovado, a experiência do sim e do não). É a partir dessa idéia de
experimentação que partimos para a reprodução e representação do que
se apresenta concretamente.
O ponto de partida é o mundo e a percepção do mundo que o revela e o
encobre. Um dos pressupostos da realidade é a nossa capacidade de
representá-la, de criar seu duplo, suas imagens e seus símbolos,
tornando tudo o que é real como passível de representação. O problema
aparece quando há a inversão da relação, em que tudo o que é
representável é real. A própria realidade é desdobrada em imagens e
significados, mas para isso inventamos outras categorias que cercam
esse outro real, categorias como o imaginário e o simbólico. É nessa
capacidade de se desdobrar sobre os sentidos que o real é concebido,
de forma mediada pelos signos que alteram nossa relação com o
concreto. Imediatamente ao objeto concreto revela-se seu duplo, seu
desdobramento, sua ampliação no tempo e no espaço, sua reprodução e
repetição. A imagem surge, em primeira instância, como o duplo do real
ao qual oferece possibilidades de representação, onde surgem
possibilidades múltiplas de narrativas que impõem re-significações do
real.
Nestes termos, o duplo recai na questão da simulação da realidade. "No
regime de simulação baudrillardiano, a mídia é responsável pela
produção desenfreada de signos que já não guardam atrelamento com a
realidade. O hiper-real assim produzido almeja ser mais real que a
realidade que já não é".
Mascarello continua sua digressão sobre a relação entre imagem e
simulação, fazendo uma síntese do pensamento de Baudrillard,
introduzindo o filme de Tarantino: O pensador francês organizou a
história da imagem em quatro estágios sucessivos. No primeiro, o signo
"é o reflexo de uma realidade profunda" (1991: 13). A seguir, "mascara
e deforma uma realidade profunda". No terceiro, a imagem "mascara a
ausência de uma realidade profunda". E no último, ela já "não tem
relação com qualquer realidade: ela é o seu próprio simulacro puro".
Tarantino parece querer inaugurar uma nova etapa: seu cinema oferece
um novo estágio, o da simulação do simulado, re-simulação do
fabricado. O referente parasitado de seu signo não é a violência, mas
a representação dela que criativamente vimos nos oferecendo.
O filme de Tarantino, por outro lado, remete a uma dupla violência da
imagem tanto no processo arbitrário da narrativa, quanto no conteúdo
das cenas - que não se bastam como representação, mas produzem uma
realidade da violência. A imagem, então, não é uma simulação da
realidade ou uma representação, mas ela é uma realidade.
O autor relaciona com o pensamento de Gilles Deleuze na relação da
imagem e o real de forma mais positiva: "O simulacro de Deleuze é
muito mais construtivo. A hiper-realidade é o real. Como aponta
Shaviro (1993: 5)", as aparências são instáveis, e devem ser
continuamente reinterpretadas não para descobrir a verdade, mas
precisamente porque não existe nenhuma verdade profunda". Onde
Baudrillard propõe a "simulação como uma perda de real", Deleuze a
indica como "uma produtiva intensificação da realidade"."
As relações entre simulação e o real são permeadas de diversas
referências. O "mito da caverna" expõe as primeiras considerações
sobre a imagem cinematográfica e revela uma face da discórdia da
imagem que oblitera a realidade, uma imagem negativa da qual se deduz
a incapacidade aparente de lidar com os sentidos e de interpretar o
que se é mostrado. O filósofo negligenciou a realidade dos habitantes
da caverna, como se o que ele presenciou no mundo exterior fosse uma
verdade inalienável. Desse modo, o ordinário, o banal é tratado também
de forma leviana, subjugado à apreciação superior do filósofo. O mundo
é o que nós conseguimos representar dele? Todo o conhecimento que
produzimos são formas de representação, de fabricação de imagens e de
linguagens. O que nos leva a repensar a categoria de imagem como
geradora de uma realidade própria, um desdobramento da realidade
primária que age em um universo limitado pelo enquadramento, pela
tela, pelo olhar e também pela linguagem do olhar.
A imagem abre para uma realidade apreciável, por vezes intangível e
que é, também, tomada como realidade em si. Na teoria do cinema o
"princípio de realidade" faz considerações sobre uma realidade
palpável ou assimilável, como uma narrativa paralela. A questão é que
a imagem é tratada como uma versão do real, um duplo negativo e
fantasmagórico que aciona processos de simbolização e associação mas,
diferente disso, ela é o próprio fato o qual descreve, que avança num
processo de literalização; portanto, deixa de ser mera representação
para interagir de fato, como realidade.
O mesmo fenômeno ocorre com a subjetivação do indivíduo que só passa a
existir a partir do momento em que consegue desenvolver a sua
capacidade de recriação e reprodução do mundo e com disso está
condicionado a um processo intermitente de formação de sua própria
subjetividade, onde só se torna sujeito a partir da linguagem e dos
instrumentos que tem para a sua representação, que por estar no campo
do discurso está submetido a um jogo de negociação do sentido.
Isso revela a própria inconsistência a que remetemos nossa relação com
o real, tudo pode ser interpretado de maneira diferente, pode ser
deturpado ou revisionado de acordo com o enfoque, teorias
teleológicas, apreciações, modismos, inclusão de novos olhares,
instrumentos - dado que nossa relação com a imagem tem mudado de forma
relevante graças às novas tecnologias e reformação de linguagens, como
a cinematográfica, por exemplo. O que nos leva a tratar a imagem como
extensão da realidade, o que implica dizer que a imagem tem como
princípio de produção a 'potência do falso'. "É uma potência do falso
que substitui e destrona a forma do verdadeiro, pois ele afirma a
simultaneidade de presentes incopossíveis, ou a co-existência de
passados não necessariamente verdadeiros. (...) O homem verídico
morre, todo o modelo de verdade se desmorona, em favor da nova
narração" .
O movimento é a ruptura da fixidez; Heráclito de Éfeso, já antevia
esse processo onde "tudo flui e nada permanece", como uma ocorrência
de um perpétuo confronto dos contrários. O movimento tem sua fundação
baseada na idéia de contradição, do Polemus, como a origem de todas as
coisas, a ruptura inicial que permite o desdobramento da imagem, a
quebra da seqüência, a montagem de linhas de significado e de
narração. O duplo do real, quando se afirma como categoria, ainda se
desdobra para seu oposto, Agon as traz para o campo do jogo e da
negociação de sentidos estabelecidos entre a fabricação de pólos de
opostos. O pensamento estruturalista de Lévi-Strauss estabelece o
conhecimento primeiro na classificação e no esquema bipartido e
contrapõe-se ao pensamento de Deleuze, que insere um campo de
possibilidades das intensidades e gradações de sentido entre os pólos,
flexibilizando-os.
Como na parábola de Zenon, existe um paradoxo em que o homem Aquiles
na mesma trajetória de uma tartaruga andando em uma velocidade maior
jamais a alcançaria por que o espaço entre os dois é infinitamente
representável - existem infinitos números entre um e dois - e
infinitamente fracionável. Nunca seria possível alcançar uma tartaruga
dado que o espaço é infinitamente divisível, o que é falho, por que de
fato o movimento ocorre. A possibilidade de representação do espaço é
que está mal dimensionada e acarreta a impropriedade da interpretação
de Zenon. Essa possibilidade traria também o tempo como uma categoria
infinitamente fracionada, mas ambos os casos têm a limitação do
acontecimento do evento que acontece de fato. No caso, a imagem
cinematográfica é o próprio movimento, oferece uma imagem média entre
os frames, abstrai da metáfora que impõe uma fixidez, que imortaliza
um evento, e o movimento é uma experiência por si só.
O duplo que a imagem oferece à realidade traz a sua ruptura inicial,
deslocando a imagem do real concreto e dando-lhe outra possibilidade
de realidade dado o seu suporte. A imagem não é simplesmente a
duplicação do mundo, mas a criação de novas realidades, o que permite
entrar dentro da narrativa do filme como um universo próprio.
Inclusive, há uma troca de informações entre os próprios filmes, com
uma inter-referência, que traz citações de obras anteriores e a
personificação da figura do diretor e dos atores (o ressurgimento do
ator John Travolta em 'Pulp Fiction' faz menção a trabalhos anteriores
do ator com a cena em que dança; há também a fixação do nome Tarantino
para filmes com temática violenta como referência a filmes anteriores
como 'Cães de Aluguel', 'Amor a Queima Roupa', entre outros).
Desde a primeira ruptura há o polemus, a polêmica, a diabólica
luminosidade do desdobramento da realidade para o universo dos signos
no imaginário. A imagem é diabólica (diaballein) no sentido de
promover uma quebra, ruptura fundamental (presente no radical 'dia',
como a luz que rompe a noite) no caminho, na trajetória (do radical
'ballein'), resultando num processo orgiástico, no sentido de excesso
de luz (orgia em plena luz do dia), um excesso que a linguagem impõe
ao narrar a realidade. Nesta polêmica original da ruptura há o jogo
agônico da imagem que lança o discurso em um campo de negociação de
sentido entre dois pólos opostos (confronto entre duplos dentro de uma
composição binária) ou de fixação do mesmo (pelas convenções) numa
luta constante contra o tempo ou de resgate de um tempo perdido
(Proust e os signos). Espaço de tempo ao qual caminha uma narrativa
sujeitada ao filme. A polêmica traz a agonia dos sentidos, assim como
Pan tem a idéia de trazer ou ser tudo, traz também o seu desdobramento
do temor em excesso, o pânico.
A questão dessas relações gira em torno do excesso, o excesso de
polemus traz à agonia, o excesso de agonia e de medo traz ao pânico. O
excesso da imagem revela a sua característica real, e o excesso de
realidade revela a falta da imaginação e aborda a anestesia, no
sentido de não ser mais capaz de afetar o espectador.
A realidade pode narrar a si própria? Há a mediação da linguagem,
assim como o indivíduo só se torna sujeito a partir da linguagem, em
suas predicações. Da representação narrativa para a narrativa do
sujeito há a apresentação da imagem. A partir do filme, se instaura
uma possibilidade de alinhamento, da narrativa de um sujeito, imposto
pela narrativa da imagem, mas ainda há algo que escapa como a
apreciação da imagem, o gosto inaudito do prazer que a imagem pode
oferecer e o gosto imaginável que o som pode acrescentar.

O Duplo: a imagem e o real, a emoção e a ironia.

A impureza (ou a polissemia) da imagem está no fato de estar
descolada, de ser mediadora (como mídia) do real, de estar num lugar
ENTRE o real e a percepção do sujeito. Mas, ao mesmo tempo em que a
imagem é um recorte do real, ela oferece uma apreensão não mediada,
imediata, instantânea de uma materialidade distante. A imagem é um
desdobramento do real na medida em que a própria subjetividade se
curva a ela e ao tempo. Em certos aspectos a imagem passa a ser mais
fiel e real do que o referente concreto a que ela remete.
Sendo a imagem um recorte e sua montagem, que a movem para outro
plano, há um recondicionamento ou ativação de novas possibilidades de
relação com o real. Mas a sua característica reside exatamente no
mesmo fato de se potencializar re-significações, e de tornar a própria
imagem, antes de ser articulação com o real, tornar-se o próprio real.
Não um índice de realidade, mas um tipo de realidade (virtual?) que é
constitutiva de um locus imaginário, antes utópico. Uma realidade-
pensamento. Uma imagem-sensação. Um pensamento real feito, melhor,
sustentado em imagens. Como um plano de seqüência de imagens remete a
uma seqüência de planos que interagem entre si como imanentes ou
contingentes.
O real está então colado à sua imagem. Tão colado que a imagem pode
ser real, não apenas como o 'efeito de realidade' antes afirmado pela
tradição da Semiótica e da Teoria do cinema, de forma geral. Foto-
jornalismo, sensacionalismo televisivo, a verdade da imagem compromete
a realidade dentro de parâmetros imediatos. Na situação de um filme,
por exemplo, por mais que se saiba que aquela imagem é ficção, por
mais que racionalmente pense que aquela não é a verdade, não é real,
ela também não é uma imagem fria. As sensações transcorrem entre os
quadros da tela e as poltronas do cinema em gradientes de co-moção, e-
moção em movimento sensível. "A imagem remete a uma natureza física
inocente, uma vida imediata que não tem necessidade de linguagem." O
cinema é uma fábrica de sensações, uma máquina de agenciamento de
enunciados, o espectador pode ser tocado pelas imagens que impelem a
uma sinestesia da imagem real.
Nada é mais ilusório do que separar a imagem do que ela mesma remete.
Nada é mais questionador que a necessidade humana de querer se
desprender e descolar da matéria, da concreta e fria realidade para
ingressar num universo beligerante na negociação dos sentidos,
onírico, em linha de fuga perene que situamos como pertinente à
capacidade imaginativa.
O imaginário é libertador de uma condição terrível do apodrecimento do
corpo material e da impossibilidade de sentir real, o medo do afeto e
do desafeto. Esse imaginário alusivo é ilusório, no sentido em que
aliena o corpo do próprio pensamento. "O corpo não é mais obstáculo
que separa o pensamento de si próprio, aquilo que tem que ser superado
para se chegar ao pensamento. É, ao contrário, aquilo no qual o
pensamento mergulha, a fim de chegar ao impensado, isto é, à
vida." (Deleuze 1989, pp189) O corpo é pensamento, assim como a imagem-
tempo.
O imaginário permeia nesse deslocamento do tempo, da concretude. É um
desfalque do real um lugar de redimensionamento do espaço. É uma
tentativa de des-sensibilização do real , relegando-o aos aspectos
mais baixos de afecção onde a esfera abstrata domina a capacidade e a
possibilidade de afeto. O imaginário condiciona uma impossibilidade de
percepção do excesso de violência pelo vício da imagem, o clichê.
O ato sexual, o contato dos corpos, é também uma manifestação concreta
do imaginário, do fetiche, da reificação (ou coisificação) de uma
sexualidade latente, que se manifesta em um desejo concreto, possível,
carnal, sujeito de uma oração material no ato do toque do sensível
entre os corpos. Imagem e real se misturam na volição do sexo. Em
contrapartida, a veiculação da imagem do sexo em filmes, por exemplo,
traz algo da perversão do corpo (uma integração do binômio Eros e
Tanatos), o desejo do corpo imaterial (o fetiche no desejo de posse),
o imaginário do desejo. Sexo sem corpo, corpo sem órgãos. Isso
explicita a violência integrante da imagem-real. Explicita, acima de
tudo, o desejo de violência - uma dissolução do sujeito e uma
reordenação do corpo.
No filme 'Pulp Fiction', não há o gozo no ato sexual, ele está sempre
interdito, as personagens não gozam por que há justamente a perversão
do gozo. O prazer é desdobrado em violência. A violência gera prazer,
ela é o gozo. Essa perversão associa a satisfação sexual com a
demanda de violência em que a brutalidade é o verdadeiro gozo das
personagens e também dos espectadores.
O cinema do virtual (como campo de possibilidades) desordena as linhas
narrativas, que por sua vez, assumem multiplicidades e assim
evidenciam, também, uma subjetividade múltipla. Uma subjetividade não
fragmentada (entre id, ego e superego), mas que percorre as diversas
linhas narrativas paralelamente desdobradas umas sobre as outras num
mesmo plano de imanência.
No filme, a violência é o desejo de aniquilação do corpo, aniquilação
do sexo, aniquilação do real (como ponto de fuga). A violência
constrita da imagem pode ser deflagrada em alguns aspectos de
abordagem: coercitivo ou de imposição de poder; subversivo ou rebelde;
catártico; reflexivo; reprodutivo e alienador que oferece contrastes
sociais; o aspecto da violência por prazer perverso (da afecção à
infecção); a violência como espiação moral e crítica social; e por
último o aspecto des-sensitivo - pela banalização da violência e o
abaixamento do umbral de sensibilidade, pois culmina com o excesso da
imagem. A imagem da violência está em um entre-lugar, entre uma
possibilidade narrativa e a inominável afecção da imagem. Mas mais que
isso, o cinema está em um entre-tempo que condiciona o movimento,
subvertendo a narrativa à formação do efeito-sujeito que amplia a
subjetividade para uma multiplicidade.
No processo de afecção e des-sensibilização: "A emoção, como diz
Janet, é uma reação de desorganização que intervém quando estamos
engajados num impasse. (...) Descobre-se que a cólera é uma conduta
mágica, através da qual, renunciamos à ação eficaz dentro do mundo,
damo-nos, ao nível do imaginário, uma satisfação inteiramente
simbólica (...)
É dessa forma que se estabelece a relação entre des-sensibilização e
ironia: "O sofrimento e a infelicidade parecem não mais emocionar pois
a ironia se torna a própria expressão da insensibilidade e da
impotência. O irônico não ri mais, verdadeiramente; satisfeito de sua
soberania beata, adota a posição convencional de uma negação dos
outros e se condena à sua própria perda pelo desprezo que não pára de
manifestar."
Entre a emoção e a ironia pode-se mapear gradações de afecção na
relação com a imagem e com o real. Por outro lado, essa relação pode
levantar possibilidades de desenvolver uma ótica cinematográfica que
comporte um olhar figurativo, distanciado, pautado na experiência em
que a imagem se conduz como forma de pensamento.

Desejo e fuga

A questão fica então na formação de uma nova sensibilidade subjetiva
diante da imagem e na sua capacidade de ser afetado por ela. Neste
caso a imagem de violência surge como uma dupla ruptura com o real.
Essa dupla ruptura sugere um desdobramento do real, um desdobramento
da narração do sujeito e uma quebra seqüencial da narrativa. Isso pode
demonstrar uma estética específica para além da narrativa violenta.
Mais ainda se considerarmos que há uma demanda, um desejo de violência
por parte do espectador inserido na concepção da imagem.
Esse desejo de violência é um desejo de subversão do pensamento e da
linguagem, é um desejo de transformação da acepção do sujeito, é o
desejo do choque, pelo bizarro, pelo grotesco que inunda a tela de
sangue na tentativa desesperada de quebra da rotina, quebra do banal e
ordinário em que o espectador está imerso. Isso ainda demonstra a
identificação com as personagens e o desejo de apropriação de outras
subjetividades, ou de outras linhas de narrativa de onde emerge o
sujeito. O que é consumido em 'Pulp Fiction', assim como em outros
filmes, é a possibilidade de se experienciar outras subjetividades, em
linhas narrativas que se entrecruzam. É como uma linha de fuga sempre
caminhando em direção contrária ao centro.
"Assim, a questão terá sempre sido o poder assassino das imagens,
assassinas do real, assassinas do seu próprio modelo, como ícones de
Bizâncio o podiam ser da identidade divina. A este poder assassino
contrapõe-se o das representações como poder dialético, mediação
visível e inteligível do Real. (...)" . O problema é que a imagem de
violência, por exemplo, não simula uma violência, ela o é, desde o seu
postulado de linguagem (a própria linguagem como uma violência
fundadora) ao conteúdo agressivo. Não se trata de uma simulação, de
"fingir ter o que não se tem", mas da exposição explícita de uma ação
real de suporte cinematográfico.
A imagem não tem identidade divina, ela é mundana, vil, corriqueira,
banal. A imagem não se refere a uma 'ausência' do real, ela o desdobra
o acontecimento em espaço e tempo. "Esta (simulação) parte do
princípio de equivalência do signo e do real (mesmo se essa
equivalência é utópica) é um axioma fundamental. A simulação parte, ao
contrário da utopia, do princípio de equivalência, parte da negação
radical do signo como valor, parte do signo como reversão e
aniquilamento de toda a referência." (op cit. pp28) A simulação é uma
"estratégia do real do neo-real e do hiper-real, que faz por todo o
lado a dublagem de uma estratégia de dissuasão."(op cit. pp29)
A questão que permeia a pesquisa emerge da imagem de violência no
processo de desestabilização constitutiva da formação de
subjetividade. Essa desestabilização tem como base a nova
sensibilidade que as imagens provocam incorporando um vazio afetivo,
deslocando o tocante emocional para situações limite (de violência
deflagrada) em que o sujeito é destituído de sua 'humanidade', ele é
bestializado - cronicamente bombardeado por imagens brutas onde a
'impressão de realidade' se mistura com a realidade em si. Assim cria-
se um elemento emocional ofensivo da imagem, ela necessita ser cada
vez mais aterradora e chocante, mais rápida, mais subversiva, mais
intensa .

Representação e Afecção

O caráter ambíguo da imagem oscila entre o real e o irreal
(imaginário), e por isso conforma uma possibilidade destrutiva do
referente real (ou de apresentar uma nova sensibilidade do real como
um desdobramento). Existe um tratamento de cisão em que a matéria é
cronicamente separada e descolada de sua representação imagética. Essa
desagregação do concreto em função de um imaterial remete à imagem
também como forma de pensamento: a imagem-pensamento. O real não pode
estar mais submisso à sua própria representação seja ela simbólica,
alegórica ou metafórica. As categorias de pensamento agem através e
pela representação como imagem-pensamento aonde a imagem simbólica é
equivalente ao pensamento simbólico.
Mas as possibilidades de afecção que a imagem causa extravasam os
afluentes da representação e sugerem uma apreciação imediata da imagem
como desdobramento real. Surge a imagem cristal, direta, clara. A
imagem surge como uma potência do real. De modo que o discurso sobre
uma dada realidade destrói essa realidade como fato concreto, táctil,
perceptivo, para estar velada por um filtro da representação e da
linguagem. Foucalt em "A Ordem do discurso" designa a palavra como
efeito de verdade, em paralelo pode-se deduzir a imagem como efeito de
verdade e derivar o corpo (e a imagem do corpo) como efeito de
sujeito. Para Ismail Xavier existe uma conexão que assume a estrutura
do filme com "afinidades diretas com estruturas próprias ao campo da
subjetividade."
O cinema reproduz e atualiza determinados processos de operações
mentais, que fazem com que a imagem seja inteligível. Roland Barthes
em 'A Aula', especula sobre o fascismo da linguagem, do que ela obriga
a dizer, quando se fala sobre o amor é o mesmo que destruí-lo, tirar
do âmbito da sensibilidade para o da comunicabilidade representada.
Uma narrativa centralizante do sujeito desarticularia todas as outras
linhas de subjetivação.

Tempo e afeto, a trajetória subjetiva

A subjetividade é marcada pela apreensão do tempo. Uma sucessão de
planos e períodos incessante que se impõe em formas sincopadas como um
'tempo de violência'. Neste episódio há freqüentemente alguma
referência ao tempo (às horas, mais precisamente) e, por isso mesmo,
começa no passado como um tempo interno de uma memória antiga de Butch
que se transforma em sonho, ou pesadelo, mas que sempre se remete ao
presente. É desse mesmo modo que se pode tratar a imagem-cristal, numa
cisão entre presente e passado onde o tempo se desdobra a cada
instante se lançando para o futuro. "(...) o passado coexiste com o
presente que ele foi; o passado se conserva em si, como passado em
geral (não cronológico); o tempo se desdobra a cada instante em
presente e passado, presente que passa e passado que se conserva.
(...) a única subjetividade é o tempo, o tempo não-cronológico
apreendido em sua fundação, e somos nós que somos interiores ao tempo,
não o inverso."
A memória de Butch coexiste com o seu presente, como uma imagem
afetiva que define sua relação com o tempo passado. Não apenas como
uma imagem interior, a personagem de Butch está inscrita no tempo,
como se fosse interior a ele e se desdobrasse ao longo da narrativa
através dos seus afetos. Existem então duas perspectivas que se
desenvolvem na personagem: a que passa por uma lente objetiva, do
presente que se atualiza e, uma outra, subjetiva dada à projeção de
afetos como potência que a imagem estimula. "O atual é sempre
objetivo, mas o virtual é subjetivo: primeiro era o afeto, o que
sentimos no tempo; depois o próprio tempo, pura virtualidade que se
desdobra em afetante e afetado, 'a afecção de si por si' como
definição do tempo." A definição de tempo é retomada na trajetória
dos sujeitos no tempo passado como parte do tempo presente. A memória
é, por definição, afetiva e não cronológica.
A este tempo revisionado e recortado por linhas de subjetividade
múltiplas que transcorrem na imagem pode-se assumir uma mediação
dessas subjetividades através das personagens. Por outro lado, a
própria câmera faz a narrativa das personagens como uma subjetiva
indireta livre que permite uma coerência interna do filme e transfere
às personagens uma maior intensidade dramática como nos momentos em
que o ponto de vista do espectador é o mesmo que o da personagem.
Associada a noção de tempo afetivo temos a inscrição do tempo na
imagem que é dada como uma 'deformação' ótica ou uma anamorfose. Em
uma abordagem estética há uma "materialização privilegiada do tempo no
espaço" como uma categoria que tem uma expressão sensível a qual
Mikhail Bahktin denominou de cronotopo, ou seja, uma materialização do
tempo enquanto a quarta dimensão do espaço. "Materializado no espaço,
o tempo se mostra como um efeito de superposição ou de percurso dos
corpos no espaço, onde 'os momentos sucessivos se tornam co-presentes
em uma única percepção, que faz desses momentos sucessivos uma
paisagem de acontecimento' (Virilio 1990, p81)" . O cronotopo é
também um momento transitório que depende da duração dentro de uma
narrativa, do instante, se instaura dentro de um plano de imanência
sendo jogado para o futuro, para outro plano na trajetória das
personagens. Isso demonstra como a narrativa dos sujeitos ou efeito-
sujeitos se imiscui ao tempo no cinema. Na necessidade de recriar a
narrativa cinematográfica o cronotopo sugere uma ligação com a
narrativa literária - dada também a base comparativa da literatura de
pulp ficção - nessa mesma concepção de tempo, também relacionado às
condições do contexto histórico ao processo de construção do objeto
artístico, 'Pulp Fiction' só poderia ser feito em seu período
histórico como reflexo daquela sociedade naquele momento. "No
cronotopo artístico-literário ocorre a fusão dos indícios espaciais e
temporais num todo compreensivo e concreto. Aqui o tempo condensa-se,
torna-se artisticamente visível; o próprio espaço intensifica-se,
penetra no movimento do tempo, do enredo e da história. Os índices do
tempo transparecem no espaço, e o espaço reveste-se de sentido e é
medido com o tempo. Esse cruzamento de séries e a fusão de sinais
caracterizam o cronotopo artístico."
A apresentação deste bloco do filme começa com um desenho antigo e um
menino em frente à televisão, (falando de um totem que se meche o que
pode ser uma figuração do próprio aparelho de televisão) numa estética
aparentemente relativa aos anos setenta. A mãe do menino o chama de
Butch e apresenta um amigo do seu pai que faleceu na guerra do Vietnã
depois de ter sido preso. Esse amigo é o Capitão Koons, ele foi
prisioneiro de guerra junto ao pai de Butch. E ele trás consigo um
relógio para o menino como herança do pai.

O Relógio e a narrativa do tempo

Há uma história que o relógio carrega, ele foi comprado pelo bisavô
de Butch no período da Primeira Guerra Mundial, depois foi passado
para o avô que o usou como um amuleto durante a Segunda Grande Guerra,
enviando-o pelo correio antes de ir a um combate fatal. E foi passado
para o pai de Butch, que o usou durante a guerra do Vietnã. O relógio
é então uma herança paterna eminentemente masculina que atravessa
gerações e guerras.
A narrativa que o capitão conta se desenvolve de modo escatológico
falando sobre o sacrifício que o pai de Butch fez quando estava preso
pelos vietcongs escondendo o relógio em seu ânus durante cinco anos. E
vai além, depois que o pai morreu de disenteria o capitão o guardou
durante dois anos, em seu próprio corpo com a promessa de que daria o
relógio para o filho do seu companheiro de guerra. Depois de sete anos
preso ele foi libertado e finalmente entrega o relógio para Butch, que
o usará em sua 'guerra' individual. Essa história serve como
explicação do esforço que o pugilista fará para recuperar o seu
relógio de ouro. E inscreve-se também na narrativa bizarra dos
acontecimentos.
Este é o episódio mais grotesco do filme que pode ser considerado
como uma modalidade de espetáculo condizente com a cultura popular.
Fazendo um retrocesso para os primórdios da história do cinema, que
era tido como expressão típica das camadas mais desfavorecidas da
população, o cinematógrafo mostrava expoentes da baixa cultura. Isso
reflete o que Mikhail Bakhtin chamou de "realismo grotesco" com formas
de expressão que compreendem um "sistema de imagens em que o princípio
material e corporal (comer, beber, defecar, fornicar) comanda e em que
abundam gestos e expressões grosseiras, as profanações, as heresias e
as paródias" (...) "O grotesco carnavalesco - para usar mais uma
expressão de Bakhtin - permitia jogar um olhar divergente sobre o
mundo" , o que relegava as imagens ao culto de apreciação popular e
que posteriormente foram confinadas em guetos, nas periferias dos
perímetros urbanos onde a diversão se misturava facilmente à
marginalidade. Este foi o berço do cinematógrafo nos seus 10 a 20
primeiros anos, depois houve um processo de higienização com a
apropriação do cinema pela cultura oficial exercendo, assim, uma
violência sanadora erradicando o grotesco do cinema, e de certa forma,
elitizando o cinema como expressão de uma cultura maior.
Há um resgate desse grotesco carnavalesco de origem popular que
reaparece nas imagens do filme, como alusão ao entretenimento das
classes baixas (como também ocorre com a revista de pulp fiction) que
aborda uma temática sangrenta e vulgar de um mundo marginal em sua
estética bruta e sua ética interna.
Os diálogos do filme são coloquiais, de baixo calão e refletem também
a sua origem popular, no entanto, maneira como os diálogos foram
traduzidos revela uma perda de dinamismo e uma perda mesma de
características do linguajar popular, dando uma formalização falsa do
conteúdo. Exemplos são facilmente encontrados em todo o filme com
trechos inteiros que não mencionam nenhuma palavra de baixo calão ou
palavrão que recheiam as falas das personagens em inglês.
Logo depois da narrativa da história do relógio - como uma apreensão
do tempo passado pela memória -, Butch (adulto) acorda em sobressalto,
ele está com o roupão de pugilista, pronto para a luta quando seu
treinador o chama: "It's time Butch" , numa pequena alusão ao tempo
passado. Ele sai da sala ainda se aquecendo. A tela escurece e só
então aparece o título do episódio: The Gold Watch (O relógio de
Ouro).
O terceiro bloco do filme começa com a locução do final da luta de
Butch em um beco escuro. Um táxi estacionado com a motorista ouvindo o
rádio. A notícia é que um dos pugilistas acaba morto. Logo em seguida
aparece Butch saltando de uma janela. A imagem mostra um pé feminino
descalço com esmalte vermelho acelerando o pedal de um carro. Há um
corte que mostra Vincent andando pelos corredores de um prédio até
chegar a uma porta que se abre, dentro está Mia, que diz: "Nunca te
agradeci pelo jantar" em referência ao episódio passado. Marcellus
Wallace também está presente, a câmera capta apenas a sua silhueta,
ele está à frente de uma mesa com um corpo coberto e anuncia que
deseja pegar Butch onde ele estiver.
Novo corte, o táxi corre pelas ruas, Butch ainda está com as luvas e
começa a trocar de roupa. A taxista (do filme 'Vocês matam e nós
limpamos' de Robert Rodrigues companheiro de Tarantino na produtora
Band of Brothers) pergunta qual é a sensação de ter matado um homem,
ela parece excitada com o assunto, ele responde que só soube que ele
havia morrido quando ela lhe contou. Eles param em um telefone público
e ele conta para um companheiro de golpe que a notícia do arranjo da
luta se espalhou e que ganhou muito dinheiro apostando em seu favor,
ao invés de cair no quinto assalto como havia combinado com
Marcellus.
Butch pouco se importa com o seu adversário: "Ele que se dane. Morreu
por que não sabia lutar. Se nunca tivesse posto luvas, ainda estaria
vivo. E quem se importa? Está terminado." Ele ainda menciona a cidade
de Knoxville para onde ele e sua namorada Fabian (Maria de Medeiros)
estão fugindo, cidade onde seu bisavô comprou o relógio de ouro (de
acordo com o relato do Capitão Koons) - além disso, é a cidade natal
de Tarantino, e foi mencionada também no filme "Assassinos por
Natureza" (de direção de Oliver Stone e roteiro de Tarantino), como
cidade original dos protagonistas.
A taxista o deixa em um motel, há uma tensão de sedução entre os
dois, a sedução pelo perigo. Ele a deixa, mas antes ele compra o seu
silêncio e discrição para que ninguém saiba que foi seu passageiro.
Ele vai se encontrar com Fabian. Enquanto ele é a caricatura do homem
viril, lutador, empreendedor (dado o golpe que deu no chefão) ela é a
caricatura da boa esposa, prestativa, compreensiva e submissa, reverte
a submissão apenas na cama quando pede por prazer oral.
Eles estão na cama, e ela fala sobre a sua barriga como uma alusão de
que estivesse grávida. Há um momento romântico entre os dois, que
integra o mesmo tipo de amor conturbado do primeiro casal (Pumpkin e
Honey Bunny), ou seja, a união do casal para subverter uma ordem, para
um viver marginal, nesse caso eles tiram proveito da situação e fogem,
ficando mais unidos e reafirmando seus votos de amor a cada infração.
Essa impressão do viver em perigo fica explícita nas falas:

FABIAN
"We're in a lot of danger, aren't we? (...)
If they find us, they'll kill us,
won't they? (...)
But they won't find us, will they? (...)
Do you still want me to go with
you?"

Butch balança a cabeça em consentimento: sim.

FABIAN
I don't want to be a burden or a
nuisance --

A mão de Butch's fora do enquadramento começa a massagear Fabian, e
ela reage.

FABIAN
Say it!

BUTCH
Fabian, I want you to be with me.

FABIAN
Forever?

BUTCH
...and ever.

Fabian deita sua cabeça para trás.


O casal prossegue fazendo juras de amor em meio ao perigo de vida que
eles incorrem. Butch a acaricia enquanto a câmera se fixa na expressão
de prazer de Fabian. Logo depois a imagem esmaece e a tela escurece
novamente. Eles são o único casal que tem relação sexual e real prazer
no filme, mas isso não é mostrado, é apenas deduzido.
Após tomarem banho e ele fazer brincadeiras ridicularizando Fabian,
ele fazem planos de fugir para vários lugares, mas principalmente o
México e começa a fala em espanhol, ensinando para ela, fazendo mais
uma referência às horas:

BUTCH
Que hora es?

FABIAN
Que hora es?

BUTCH
What time is it?

FABIAN
What time is it?

BUTCH (OS)
Time for bed. Sweet dream, jellybean.


Logo depois ele cai em sua cama, dormindo pesadamente.
No dia seguinte, ele acorda em sobressalto como se tivesse tido o
mesmo sonho-lembrança do dia da luta. A televisão passa um filme sobre
motocicletas (novamente o diretor antecipa uma cena futura como a moto
que Butch levará) com cenas de tiroteios, a imagem de Fabian se
reflete no aparelho como se estivesse dentro das cenas. Eles estão se
arrumando para sair, ela fala o que deseja comer para o desjejum com
variados pratos, como uma grávida em seus desejos, então ele procura
pelo seu relógio de ouro, mas não o encontra. Ele tem um acesso de
fúria vasculhando a mala. Ela esqueceu se de pegar a preciosa herança
de Butch, mas tem medo de dizê-lo. Depois de jogar a televisão contra
a parede, ele pára por um instante, se recompõe e muda de planos, ao
invés de fugir da cidade e fugir da ira de Marcellus Wallace ele
decide voltar e buscar o relógio. Ele deixa um dinheiro com ela e diz
que voltará rápido e sai do quarto.
Ainda no carro ele continua irado, esmurrando o volante, ela não
podia ter esquecido o relógio. Butch estaciona seu carro ma rua
anterior à entrada do apartamento, atravessa um terreno que está entre
o baldio e uma garagem, ao fundo ouve-se um rádio que menciona o
Jackrabbit Slim's, o bar temático do episódio anterior. Com esse
pequeno trajeto mostra-se uma paisagem inóspita e abandonada, quase
desértica de um subúrbio, lembra a ambientação dos filmes Westerns,
como uma associação ao duelo em que o herói e o bandido sacam suas
armas. Essa paisagem compõe também os sentimentos da personagem, a
apreensão e a aridez da imagem estão associadas ao aspecto afetivo que
a situação demonstra.
Butch chega ao seu apartamento e abre a porta com cautela. Atravessa
a sala (o apartamento é de classe média, tendo alguns elementos
impessoais, os objetos significativos são a estátua de canguru, onde
está o relógio, a foto de Fabian e algumas medalhas e cartazes de
lutadores que estão na sala) e pega o seu precioso relógio. Como tudo
está quieto ele supõe que está sozinho, vai até a cozinha para comer
alguma coisa, pega dois pães (Pop Tarts) e os põe para torrar. Só
então percebe uma pistola sub-automática com silenciador em cima da
pia, ele a pega como se estivesse examinando-a. Então ouve-se a
descarga do banheiro. Ele instintivamente aponta para o banheiro, a
porta se abre e vê-se Vincent Vega com um livro nas mãos "Modesty
Blaise" de Peter O'Donnell (que se enquadra em literatura de pulp
fiction). Os dois não se movem, há um momento de suspense em que os
dois estão se encarando, sem saber ao certo o que fazer.








Esse suspense só é quebrado quando as torradas ficam prontas, soando
um alarme. Butch aperta o gatilho mecanicamente com o alarme,
atingindo Vincent com vários tiros. A torradeira continua buzinando,
enquanto o pugilista vai conferir o estado de Vincent; ele abre a
porta e vê o livro no chão e o corpo de Vincent ensangüentado, com os
olhos vidrados, jogado na banheira. Butch vai embora e respeitosamente
deixa a arma na mesa tendo o cuidado de limpar suas digitais. O som da
torradeira ainda se ouve do lado de fora, até Butch sair do
conglomerado de apartamentos.
Agora está tudo diferente para Butch ele, se sente um vencedor, a
música ambiente é bem leve refletindo o seu estado de espírito:
"Flowers on the Wall" (The Statler Brothers). O herói passa em frente
da entrada do seu prédio e mais a frente pára no semáforo, quando um
enorme homem negro atravessa na faixa de pedestres. O homem pára, os
dois se reconhecem, aquele homem é Marcellus Wallace. Neste momento,
Butch acelera seu carro atropelando o chefão, em seguida seu carro
bate em um poste depois do cruzamento. Os dois estão nocauteados e a
tela escurece novamente.
A imagem vai ficando definida e aparece um aglomerado de pessoas
(todas mulheres) encarando a câmera, como se estivessem se dirigindo
ao espectador, uma delas diz: "Ele está morto". Elas estão olhando de
cima para baixo sobre alguém, o rosto de Marcellus Wallace aparece na
tela em close. Ele está no chão e sua imagem aparece invertida, assim
como o seu poder que foi maculado por Butch. Marcellus abre os olhos
levanta-se com o apoio dos que estão em volta e olha para Butch.



O patrão saca a sua arma e tenta atirar em Butch, mas acerta
acidentalmente uma mulher que ajudava o pugilista. Todos fogem, Butch
tem sangue no rosto e sai mancando tentando fugir enquanto Marcellus
segue atirando sem conseguir firmar a mira. Butch sabe que não
conseguirá fugir, pois a sua perna está ferida, ele tenta correr
enquanto Marcellus atordoado ainda o persegue.



Há um excesso de closes ao longo do filme o que trás uma sensação de
proximidade com o drama das personagens. A cor predominante é sempre o
vermelho mesmo em ambientes abertos, como o vermelho do sangue na
tela. A paisagem desértica também evoca o vazio afetivo das
personagens e insere uma referência ao faroeste, ou filmes de 'bang
bang'transpostos para o ambiente urbano.
Na tentativa de fuga Butch então entra numa loja de penhores que está
aberta. O balconista pergunta se ele pode ajudar e o boxeador diz para
que ele se cale, pega uma garrafa que estava sobre o balcão e fica na
espreita esperando por Marcellus. Quando o chefão chega eles lutam e
Butch o subjuga, derrubando-o no chão. Ele lembra do discurso de
Marcellus no momento estavam fazendo o acordo e diz enquanto esmurra o
gangster: "Está sentindo um mal estar? É o orgulho te atordoando. Não
se deixe afetar. Alguém vai explodir sua maldita cabeça".
Butch pega a arma de Marcellus e aponta na cabeça do gângster, a
câmera está na perspectiva do chefão como se quisesse atingir o
espectador. O balconista interfere, com uma espingarda nas mãos ele
fala para Butch se aproximar e lhe dá um golpe com o cabo da
espingarda derrubando o boxeador deixando-o inconsciente. Marcellus
ainda consciente, mas bem ferido com as narinas e a boca sangrando
antes de desmaiar ouve o vendedor falando:
"Zed? It's Maynard. The spider
just caught a coupl'a flies."

A tela escurece novamente, dando início a uma outra fase do
episódio. Não é mais o conflito entre Marcellus e Butch que irá
conduzir suas ações e sim, como eles lidarão com as ações dos dois
'pervertidos' (Maynard, o balconista e Zed, vestido de policial como
um fetiche sexual) que os têm em poder. Marcellus lutava para manter a
sua honra como gângster como uma questão de fazer com que o outro
arque com as conseqüências da quebra desse acordo enquanto Butch
lutava por uma questão de sobrevivência, sobrepujando o mais forte em
favor próprio como uma guerra particular que ele instaura com a quebra
do acordo.
A partir do momento em que estão em poder dos outros dois, Marcellus
e Butch ficam em condições semelhantes, eles são igualados como
escravos do prazer sádico de Zed e Maynard, e em última instância, as
personagens estão orientadas pela ótica sádica do diretor. As
personagens não são masoquistas, de modo algum, elas são violadas sem
consentimento ou prazer, o elemento masoquista é o próprio espectador
que assiste ao filme incorporando a violência como um modo de afecção
com a imagem.
Em seqüência, Marcellus e Butch (ensangüentados) estão amarrados em
uma cadeira e amordaçados com uma bola na boca amarrada com tiras de
couro, ao estilo sado-masoquista. Eles estão inconscientes e recebem
jatos de extintor de incêndio no rosto para acordarem, o que é
efetivo. Eles não podem se comunicar, mas ao olharem ao redor no porão
da loja de penhores (transformada em prisão) as rivalidades e
hostilidades ficam suspensas diante do terror pelo qual os dois estão
passando juntos.
As cenas são escuras, pouco iluminadas com a predominância da cor
vermelha e com jogos de sombras dentro de um porão. Zed chega na cena
e pede para Maynard trazer o 'Gimp' , vem então um homem vestido
completamente em couro preto, usando uma máscara com zíper na boca,
ele é retirado de um alçapão e é conduzido por uma coleira. A roupa de
couro não mostra nem um traço de humanidade, ele é tratado como um
animal e ajoelha-se ao lado de Zed. Eles escolhem Marcellus que é
arrastado para o quarto ao lado para começar a sessão enquanto Maynard
prende a coleira de Gimp em um gancho no teto perto de Butch para
vigiá-lo.



A música Comanche (tocada por The Revels) invade o ambiente e revela
o clímax do episódio. A imagem fica mais lenta, em slow motion, para
sustentar o suspense da cena do que virá. A velocidade da imagem fica
em tempo normal quando Maynard fecha a porta. A música impõe uma
gradação de intensidade dramática, e depois da porta fechada, ela
dispara como uma notação do movimento do que pode estar acontecendo
dentro do quarto, transmitindo para Butch e para o espectador o medo
do inominável, do que não pode ser visto. Apenas o som é presenciado
entre os acordes de música os gemidos, pancadas e gritos de prazer
delirante dos carrascos. O Gimp, mesmo preso aproxima-se de Butch, o
pugilista entre a ira e o desespero quebra a cadeira (também em slow
motion) e se desamarra. Gimp tenta gritar, mas o zíper em sua boca
está fechado e leva um soco do boxeador que o deixa desacordado
pendurado pela coleira. Butch levanta-se desamarra os pés, tira a
mordaça e atravessa a cortina vermelha para sair. Já no balcão pega as
chaves da moto de Zed e anda mancando até a porta, onde se vê as
bandeiras do Estados Unidos e a bandeira sulista americana.
Butch vacila na porta, ele continua ouvindo os sons, olha para trás e
retorna ao balcão escolhendo uma arma. Maynard levou a pistola. Há uma
nova gradação na escolha das armas que têm um apelo viril por
excelência. Primeiro ele pega um martelo, depois encontra um bastão de
baseball, segue para a prateleira pegando uma serra elétrica (chega a
simular os movimentos com ela) por fim olha para cima e encontra uma
espada samurai. Ele a pega e tira a bainha mostrando a lâmina, neste
momento há um corte para Butch arrancando a cortina vermelha, e
enquanto a música ainda se mantém frenética, ele desce as escadas
lentamente com a espada em punhos. Ele abre a porta do quarto e se
depara com o horror da cena, não se trata mais do inominável, o horror
tem a sua imagem: Marcellus Wallace está debruçado sobre um barril de
madeira (como um 'cavalo de ginástica olímpica sem as barras),
enquanto Zed o estupra. Maynard está observando os dois com a feição
de tesão, ele tem a espingarda na mão. Marcellus olha para Butch que
se aproxima, quando Maynard se vira ele recebe um golpe vertical,
Butch anda para a sua frente dando a estocada final já de costas
encarando Zed. Maynard está em segundo plano e cai no chão enquanto
Butch põe a lâmina na garganta de Zed que por sua vez olha para a
pistola na mesa ao lado. Butch o encoraja dizendo para pegar a arma.
Mas é Marcellus quem pega a espingarda de Maynard, ele pede para Butch
ficar de lado e dá um tiro entre as pernas de Zed, que cai no chão em
agonia.
Marcellus diz o que irá acontecer com Zed:
BUTCH
What now?

MARSELLUS
What now? Well let me tell you
what now. I'm gonna call a couple
pipe-hittin' niggers, who'll go to
work on homes here with a pair of
pliers and a blow torch.
(Para Zed)
Hear me talkin' hillbilly boy?! I
ain't through with you by a damn
sight. I'm gonna git Medieval on
your ass.

(exemplo de lapso na tradução)

Depois desse diálogo, Butch e Marcellus estão quites, o acordo entre
os dois não existe mais, contanto que Butch respeite as condições de
sair da cidade o mais rápido possível, para nunca mais voltar e não
contar de maneira alguma o que aconteceu com eles. Butch pega a sua
jaqueta, olha pela última vez para Marcellus e vai embora na potente
moto de Zed, para encontrar-se com Fabian e fugirem juntos.

4. The Bonnie Situation -
Jules, Vincent, Jimmie & The Wolf

Violência

Existem dois tratamentos da questão da violência: uma abordagem é
discursiva e a outra imagética. A violência da imagem é observada na
estrutura do filme como narrativa, ou como uma forma de se contar o
enredo. Já a imagem de violência trata da relação de afecção com o
espectador - não se trata apenas de contar uma história, mas da
capacidade do espectador de ser envolvido pela imagem, como uma
componente afetiva. No filme, quando Jules anuncia o assassinato de
Brett citando a passagem da Bíblia, há um esgotamento do discurso, não
há mais o que ser dito, apenas mostrado. A morte anunciada transborda
o sentido do enunciado, ela não conta o enredo apenas o apresenta.
Neste caso a imagem pode alçar a sensibilidade do espectador em
desdobramentos subjetivos.
O primeiro ponto a ser levantado é a demanda de violência como objeto
de desejo do espectador. A exploração da violência como estratégia
discursiva recai sobre uma característica subversiva da imagem,
demonstrada em cenas e estéticas sujas, grotescas -onde a imagem
apresenta uma possibilidade desviante do sujeito.
Há o tratamento da violência como estratégia discursiva, dentro da
perspectiva cinematográfica, como forma de ruptura de uma narrativa
linear, numa estratégia de inclusão do grotesco. A violência no filme
oferece uma componente estrutural quando consideramos a própria
natureza da imagem e da narrativa. As cenas invadem a narrativa
pessoal de cada um e lançam o sujeito por novos territórios e por
outras subjetividades e acrescentam aos espectadores a riqueza de suas
histórias. Na mesma idéia, há a possibilidade da crueldade como força
motriz e subversora, que seduz pelo perverso e permite extrapolar a
banalização da história do cotidiano.
Essa mesma estratégia discursiva poderia imprimir outros significados
à violência inserida num cotidiano que oprime o sujeito e suas
possibilidades de afeto. O cinema teria uma posição catártica e
reflexiva sobre o banal. Isso culminaria com a própria banalização da
violência como fator de insensibilidade ao absurdo e por isso mesmo
afirmaria uma tentativa de re-significação (ou de significação
instável) a que o cinema propõe. Essa re- significação da violência
compreende vários aspectos dentro da estrutura do roteiro, dentro do
binômio sexo e violência (Eros e Tanatos) dentro da narrativa dos
acontecimentos. Permite uma montagem subversiva à linearidade (como
exemplo a montagem de 'Pulp Fiction'), permite uma rapidez frenética
de imagens e associações de idéias que compõem o imaginário de cada
pessoa (imagem-tempo), permite uma crítica sobre os limites do homem
(a fragilidade física e corpórea e por que não moral do sujeito
marginalizado).
A violência, de modo geral, é tratada como um produto simbólico no
cinema, um recurso narrativo impresso em um sujeito reprimido. Mas
também está no lapso da linguagem, que não se trata da capacidade de
representação ou de mediação senão por si só, sua apresentação. É
antes de tudo imagem que guarda uma categoria do inominável e do
horror na possibilidade de afetar o espectador. Ela estabelece um
limiar entre superfícies que aciona duas variações de abordagem:
dentro da narrativa e como desestabilizadora das estruturas de
representação.

Estética da Violência

A estética do filme tem como paralelo a própria definição de pulp
fiction: "impresso em material barato". No caso as imagens dão essa
impressão de pouco acabamento e, por isso, expressam uma imagem mais
crua, uma estética marginal que mostra uma ética deturpada e
perturbadora própria do universo gangster. O diretor tem uma
preocupação não de fazer um juízo de valor sobre o assunto, mas apenas
apresentar, de forma irônica, a temática que ao mesmo tempo humaniza
(são relevadas um certo tipo e intimidade dos protagonistas com os
quais o espectador estabelece uma relação de empatia) e desumaniza os
protagonistas (pois as personagens por mais carismáticas que sejam
estão apenas cumprindo ordens como máquinas, Vincent Vega se compara
ao funcionamento de um carro).
A estética no filme é tomada não no sentido clássico do termo, mas na
sua afirmação como estilo - "capaz de acentuar a contribuição
específica da prática no movimento geral do cinema diante do mundo" .
A estilização da violência remete a uma crise de representatividade
com o deslocamento de valores e com o deslocamento da própria palavra,
o discurso perde sua posição de definidor de uma imagem. Existe uma
falha ou um excesso de sentido que a palavra não delimita sozinha. A
violência é um ato em si, pode ser justificada ou não dentro de um
filme, mas em todo o caso a palavra dá lugar à imagem. A situação
violenta impõe seu discurso no ato - ato estético. A ação violenta é
pura forma, ela é estetizada no espaço sagrado da mídia e imprime uma
apresentação de uma violência imaginada - como uma experiência
coletiva da apresentação de imagens de violência.
No espaço da mídia, diferente da noção de propagação da violência por
contágio apresentada por René Girard , a imagem violenta não opera por
ondas de ação e reação. Mas ao afirmar que "desde o início, a
violência revelou-se como algo eminentemente comunitário" , o autor
revela o caráter coletivo da violência. O que as imagens mostram é que
a violência está introjetada no sujeito como parte de um imaginário
coletivo. A estética da violência é um ato diabólico, no sentido em
que rompe com a fixidez, como no escuro da sala de cinema em que se
irrompe a luz.
A violência não está guardada no recôndito porão de uma loja de armas,
como em 'Pulp Fiction'. A imagem de violência não se representa (ela
apresenta) nem opera por contágio, mas está em estado latente e pulsa
com demandas de descarga emocional. A violência imaginada está
introjetada no imaginário coletivo. E assim é projetada nos filmes
como apresentação do culto à força física. Uma força inominável, que
se mantém ao mesmo tempo para além do discurso (em seu aspecto
irracional), e também na estrutura narrativa das imagens, na forma
pura do ato como modo de subjugar ou eliminar o Outro. E por isso, a
imagem violenta impõe uma formalização contínua, através de rupturas
bruscas, do sujeito e das categorias de subjetivação.
A estetização da violência recorre à imposição de uma temporalidade
diferenciada na tela. O tempo de violência é o corte da palavra, é o
corte da cena, é o corte do corpo, é a montagem como artifício de uma
imagem-real. É a subversão de um tempo corrente para uma temporalidade
recorrente (se recorre ao passado para se implodir o presente, ou,
imagens que concorrem simultâneas dão uma sensação de intensidade
presente nas cenas), é a forma bruta de suspensão da realidade à qual
o espectador se submete em direção a uma outra realidade: a da imagem.
O filme é a imagem-cinema se articulando em curto-circuito com a
imagem-pensamento. O filme é um agenciamento coletivo de enunciação, é
um alinhamento de diversas narrativas pelas quais se desdobra o
sujeito. A narrativa se (con)figura no pensamento.
Através dessa articulação a hipótese do projeto parte da imagem como
efeito de subjetividade, de um sujeito que é constantemente violado
pela imagem, e por isso, o relega a uma condição de constate
rearticulação. Portanto, a imagem violenta presume uma im-posição mais
aparente impressão de des-sensibilização do corpo e do real no
processo de experiência do cinema.

Da crueldade irônica - descrição

"É a mistura de terror, de crueldade até, permeada de ironia. E,
sempre debaixo do chuveiro cheguei à brilhante conclusão de que o
cinema dos anos 90 é o cinema da crueldade irônica."
É com essa idéia que se norteia a possibilidade de afecção do sujeito
com a imagem: através da violência e da ironia estéticas como forma de
sensibilidade apresentada em grande parte dos filmes dos anos 90 e em
'Pulp Fiction', de modo específico.
O quarto episódio começa com a retomada da história do prólogo,
quando Vincent e Jules estão no apartamento para buscar a mala. Esse
retorno narrativo indica um outro clímax no desenvolvimento do enredo
e faz uma alusão a materialidade de um livro ou revista de pulp ficção
em que se tem a liberdade de leitura de trás para frente de acordo com
o que convier ao leitor.
Na relação entre literatura e cinema, ou entre o livro e o filme,
existem conexões como as semelhanças das linhas narrativas, mas
existem também disparidades dadas pelas diferenças de tratamento das
imagens mentais que são formadas. O filme não é apenas uma forma de
contar histórias, ele mostra o seu enredo em imagem direta, ele
cristaliza as imagens e as remete ao espectador em processo sensível
de afecção. Diferentemente do livro em que o leitor cria as suas
imagens através da descrição e de outros modos de apreensão literária.
Nesse caso, a apresentação da história é arbitrária e sua montagem
entrecortada serve para concatenar os outros episódios, como se fossem
três histórias sobre uma história - "Three stories about one story".
Os diálogos se repetem, mas há a inclusão de um quarto ocupante no
apartamento. Jules fala, novamente, a Brett: "Fez sim Brett. Tentou
foder com ele. E Marcellus, para foder, só com a esposa. Você lê a
Bíblia?" Jules cita Ezequiel 25:17, os tiros são ouvidos. A unidade
dos episódios permite uma linearidade da primeira fala de Jules com a
história do bloco anterior. Sua fala faz uma indagação irônica aos
olhos do espectador - que é onipresente na narrativa. O poder de
Marsellus Wallace é subvertido quando ele é violentado fisicamente. O
negro em sua posição marginal como mandante gangster é preservado no
seu meio e é esse poder que Jules serve como intermediário.
O ponto de vista da imagem agora é de um outro marginal que estava
escondido em um cômodo do apartamento e ouve tudo o que está
acontecendo. A repetição ocorre como um efeito mnemônico para o
espectador e imprime um outro grau de dramaticidade da cena, a
surpresa dos acontecimentos ocorre na continuação da história. O
quarto integrante está desesperado enquanto ouve a fala de Jules,
segurando uma pistola sussurrando para si mesmo que não deseja
morrer.
O espectador sabe o que vai acontecer depois de Jules terminar a
citação da Bíblia. Depois que Jules e Vincent atiram em Brett, o
quarto ocupante sai correndo gritando e atirando nos dois pistoleiros,
mas não atinge ninguém. As marcas de balas na parede podem ser vistas
antes dos tiros serem efetuados. À primeira vista pode ser um erro de
continuação, por outro lado pode ser o que Baptista considerou
levantando a questão: o "tamanho visível das marcas e a importância
deles na história (a conversão de Jules) levam a desconsiderar a
explicação corriqueira de erro de continuidade". O autor continua a
sua interpretação como uma evidência do toque do diretor o que
"assinala ao espectador o caráter ficcional e portanto arbitrário dos
eventos e que evidencia a presença de um narrador que manipula imagem
e som". De fato há esse narrador, assim como existem outros pontos de
vista para contar a mesma história como se evidencia essa seqüência do
ponto de vista do atirador; e assim como existem múltiplas histórias
que se colocam como narrativas subjetivas para o espectador.



A arma do quarto ocupante é totalmente descarregada nos dois
pistoleiros, mas nenhum deles é atingido, eles se entre olham e
finalmente disparam contra o atirador. Nessa edição, Marvin, ao lado
da porta, aparece gritando e depois se lamentando pelos assassinatos.
Os pistoleiros falam para que ele se acalme, pois Vincent está ficando
nervoso. Enquanto Vincent está falando com Marvin sobre esse outro
marginal que estava escondido, Jules fica observando a parede com as
marcas de bala, impressionado diz: "isso foi uma intervenção divina.
(...) O que aconteceu aqui foi um maldito milagre!" Essa conclusão de
Jules o levará a repensar em toda a sua carreira como pistoleiro e ele
vai considerar isso como um aviso, um sinal divino para que mude de
vida.
Já dentro de um carro (os três saem antes da polícia chegar), Jules
dirigindo, Vincent no banco da frente e Marvin no banco de trás, eles
continuam a falar sobre a intervenção divina e Jules em um processo de
redenção da sua vida marginal diz que vai se aposentar. Ele não está
preocupado com o fato de matar pessoas ou quanto já o fez, o que o
motiva é a o fato sobrenatural de como escaparam da morte iminente.
Vincent tenta convencer seu parceiro que esse tipo de coisa pode
acontecer e que não houve intervenção divina e sim um golpe de sorte,
ele não acredita na interpretação de Jules de que 'Deus parou as
balas'. Vincent pergunta a Marvin o que ele acha sobre isso, ele por
sua vez, diz não ter opinião formada sobre o assunto. Vincent
indignado, ainda com a arma na mão, se vira para Marvin dizendo: "Como
não tem? Acha que Deus desceu do céu e parou...".Ouve-se o som de um
tiro. Nesse momento o vidro traseiro do carro fica coberto de sangue,
Vincent deu um tiro acidental na cabeça de Marvin. A tela fica plena
em vermelho.



Depois do tiro os dois estão cobertos de sangue e ficam discutindo o
que aconteceu. Com temor de serem parados pela polícia com o carro
ensangüentado e com um corpo sem cabeça no banco de trás Jules
telefona para seu único conhecido que mora naquele bairro branco:
Jimmie. Há uma pequena referência ao filme de Truffaut, 'Jules e Jim',
caracterizando o repertório imagético no meio do cinema como uma
referência presente dos filmes noir. Eles se dirigem para a casa de
Jimmie para poderem se esconder.



A próxima cena mostra Jules e Vincent lavando as mãos sujas de sangue
na pia da casa de Jimmie. Eles precisam ter cuidado já que a situação
é delicada e não podem trazer maiores transtornos para o anfitrião.
Jimmie (o próprio Quentin Tarantino em mais uma referência a
Hitchcock, que sempre aparecia nos seus filmes) está na cozinha com
uma caneca de café nas mãos, ele está nervoso e preocupado com o quê a
sua esposa (Bonnie) possa descobrir sobre o acontecimento e diz: "Não
percebe que se Bonnie chegar e encontrar um cadáver aqui, ela se
divorcia de mim?" Está exposta então a situação 'Bonnie', eles têm que
se limpar, arrumar o carro, se livrar do corpo antes que ela chegue em
casa contando com uma hora e meia para isso. O nome Bonnie, também é
uma referência a um filme como 'Bonnie e Clyde - uma Rajada de
Balas'(de Arthur Penn, 1967), em que um casal vive às custas de uma
vida criminosa.
Jules telefona para Marcellus Wallace para pedir ajuda. Imagens
mostram a simulação de Bonnie entrando na casa e encontrando os três
carregando o corpo de Marvin na cozinha, em um tempo hipotético que
nunca acontecerá, mas que está presente nas cenas como possível devir.
Marcellus, do outro lado da linha telefônica, está na beira de uma
piscina em um dia ensolarado comendo na companhia de Mia e chama
alguém que poderá auxiliar os dois pistoleiros, ele chama The Wolf.
Jules fica mais aliviado quando ouve o nome de quem o vai ajudar.
A personagem de The Wolf (Harvey Keitel) é o elegante criminoso frio
e calculista, extremamente competente no que faz e com isso demanda
respeito no meio gangster, por isso ele é denominado como The Wolf, o
lobo. Ele está em uma festa requintada quando é contatado por
Marcellus; pega informações básicas sobre as pessoas que estão
envolvidas como os nomes e cor de cada um, numa demarcação de tipos
com quem vai lidar e segue para a casa de Jimmie exatamente no tempo
que diria chegar como indica a legenda do horário no filme. Chegando
lá, vestido de smoking, ele se apresenta: "Eu resolvo problemas". Ele
inspeciona o carro e enquanto toma café organiza toda a situação. Fala
para Vincent e Jules colocarem o corpo de Marvin no porta-malas e
limpar o carro. Vincent não gosta de receber ordens em uma quase
insubordinação fala para que The Wolf diga: por favor. Com isso o Lobo
responde:
"If I'm curt with you, it's because
time is a factor. I think fast, I
talk fast, and I need you guys to
act fast if you want to get out of
this. So pretty please, with sugar
on top, clean the fuckin' car."

The Wolf acalma Jimmie e com ele providencia acolchoados para
camuflar o estado do estofamento do carro enquanto Jules e Vincent vão
limpar o sangue e partes do corpo de Marvin que ficaram espalhadas no
interior do automóvel.



Depois disso, Wolf faz um telefonema, ele usa um lenço para não
deixar as digitais no aparelho, e faz os seus contatos para se livrar
do carro. Jimmie trás as cobertas dizendo que foram presentes de
casamento. Como forma de se aproximar de Jimmie, o Lobo pede para que
ele o chame pelo primeiro nome, Winston e depois lhe recompensa com
dinheiro por elas.
No carro, Jules está no banco de trás limpando os fragmentos de ossos
e sangue e Vincent está limpando os vidros no banco da frente. Vincent
diz que tem um limite para pressão. Segue uma referência ao segundo
episódio na associação com a excitação sexual e a tensão em que
Vincent se vê como um carro de corrida, um homem-máquina que se
apresenta em momentos de agitação ou tensão, pronto para rodar ou
estourar. Quando Vincent encontra-se com Mia existe sempre uma alusão
a carros de corrida, o que expressa o estímulo e a excitação da
personagem de Vincent e que agora são explicados em suas próprias
palavras: "Agora eu sou um carro de corrida. Estou no sinal vermelho.
É perigoso forçar tanto um carro de corrida. Só isso. Posso explodir."
Jules também está sob estresse e diz que está a ponto de explodir,
nesse momento ele percebe que está no banco de trás limpando os
dejetos mais grotescos, em uma clara posição inferior em relação a
Vincent e fala para eles trocarem de lugar. O poder do negro marginal
é sempre de alguma forma subvertido mesmo por que de fato ele não é o
detentor de poder ele está sempre numa condição marginal, e serve a
isso.



Depois da limpeza, The Wolf faz novamente uma inspeção no trabalho
de camuflagem do carro para não chamar atenção de ninguém na rua e
passa para a segunda fase de limpeza: os dois pistoleiros que estão
cobertos de sangue. Os quatro vão para o quintal da casa de Jimmie e o
Lobo fala para os pistoleiros tirarem toda a roupa suja, eles ficam
completamente nus. John Travolta expõe o seu físico decadente em
relação ao seu passado como símbolo sexual.
Jimmie entrega um sabonete para cada e The Wolf lhes joga um jato de
água fria lavando o corpo e o cabelo, depois Jimmie entrega uma muda
de roupas para se vestirem. A tela escurece (fade off) e os dois
reaparecem já vestidos de shorts e camisetas nas cores da bandeira
americana: azul, vermelho e branco. Jimmie e The Wolf se divertem com
os dois pistoleiros que estão parecidos como dois "dorks", 'babacas'.
Eles jogam a roupa suja no porta-malas do carro onde aparece de
relance o rosto de Marvin (erro de edição ou provocação do diretor?).
Então The Wolf apresenta seu plano para se desfazer do carro, eles
vão levá-lo para um lugar chamado "Caminhões e Guinchos do Monstro
Joe" que fica ao norte de Hollywood onde Joe e sua filha já estão a
par de toda a situação. Eles vão em dois carros, The Wolf vai, junto
com Jules, no carro com o corpo e Vincent dirige o carro do Lobo. Na
seqüência mostra-se a placa do estabelecimento: Monster Joe's used
auto park, um ferro velho. The Wolf aparece abraçado a Raquel, filha
de Joe. Ela pergunta por que os dois pistoleiros estão vestidos
daquela maneira em tom irônico. The Wolf e ela riem e depois saem para
tomar café. Os pistoleiros agradecem e dizem ser um prazer terem visto
o Lobo em ação, demonstrando respeito. Nesse momento o Lobo os permite
chamar pelo primeiro nome, Winston. O carro de Winston sai em alta
velocidade espalhando poeira. Ainda na sucataria Jules e Vincent
decidem tomar o café da manhã e a história segue para seu epílogo.
Os outros episódios terminavam após o clímax geralmente dado com
cenas de violência ou de distorção do cotidiano e que coincide com o
desfecho final do bloco. Nesta história o clímax se dá com cenas do
mesmo tipo, mas também no modo como os pistoleiros lidam com as
conseqüências. O clímax se altera e também se cruza com o fim, quando
os pistoleiros trocam de roupas e a situação 'Bonnie' está sob
controle.

Lugar de fala

Eles estão ao norte de Hollywood entre sucatas e carcaças do que
antes foram carros. Essa posição, assim como a rosa dos ventos mostra,
é o que norteia e o que orienta as ações em Hollywood, ou seja, o
mundo de aparências está imerso em sujeira. É justamente essa
capacidade de saber que existe algo a ser escondido e que deve
permanecer assim para manter as aparências que se torna uma
característica do filme - tudo pode acontecer conquanto esteja no seu
lugar. Essa condição é ao mesmo tempo lúdica e cruel; o que demonstra
a arte de velar pelo que não pode ser mostrado, o inominável que não
vemos, mas sabemos que está em algum lugar, o subterrâneo que aflora
ao convívio doméstico.
Essa marginalidade cerca o homem comum e está a espreita fomentando
uma sociedade que se alimenta de seus vícios e cruezas e que se mantém
seduzida por esse mal que está entranhado em sua super estrutura como
ideologia disfarçada em entretenimento. A violência não está apenas
submetida aos recônditos da sociedade, mas está imiscuída em toda a
sua extensão com nichos de concentração e graus de intensidade. A
imagem de violência é incorporada como produto comercial e ganha o seu
lugar nas confortáveis poltronas da classe média, alta, sem restrição
de poder aquisitivo.
Como uma analogia a esse mal está o corpo decapitado, o homem
mutilado maquinizado, obedecendo as regras, e se as questiona é apenas
por formalidade, pois as normas são acatadas (como Vincent que não
questionou a ordem de The Wolf, apenas gostaria que ele pedisse 'por
favor'). O homem, um corpo sem órgãos trespassado por linhas de
subjetividade, dobrado e desdobrado ao longo das múltiplas narrativas
que prendem o homem ao tempo - é ele a máquina, o carro, pronto para
explodir.
Desse mal se extrai a tela transbordada de sangue - a imagem de
violência - cultuada pela sociedade americana que, por sua vez,
exporta a sua visão de mundo para outros países. Esses países assumem
uma posição periférica na produção de linhas de subjetividade. O
Brasil, que é o local de fala dessa dissertação, assume uma posição
nas linhas de subjetividade periféricas se apropriando e reproduzindo
imagens de violência em seu próprio contexto social como forma de
denúncia, mas também como forma de afecção com a imagem ou a imagem
que deve chocar . Isso demonstra também uma visão da elite brasileira
sobre a marginália, vista muitas vezes como dejeto social, des-
subjetivada, pois não tem como se representar ou apresentar sem o
filtro do olhar estético da classe média, o feio fica mais feio e
menos humano - por que assim consegue chocar mais.
O grande produto de exportação dos filmes brasileiros da nova safra é
a imagem de violência social, quase impessoal, - generalizada;
enquanto nos filmes americanos a violência é restrita a um universo
mais intimista, sem intenção de denúncia.
O que acontece com filmes brasileiros como 'Cidade de Deus' (de
Fernando Meirelles), por exemplo, é que o espectador 'nativo' se
identifica com a linguagem, com a paisagem urbana, as personagens
causam empatia, mas existe um distanciamento dado o ponto de vista da
elite sobre os traficantes, mostra um olhar estrangeiro sobre a sua
terra. Tanto é assim que a personagem que mais chama atenção no meio
marginal quer ser 'mauricinho', quer mudar de classe social e começa a
namorar uma garota da classe média carioca. Ele muda a sua imagem,
descolore o cabelo e delineia uma história mais simpática ao
espectador. Mas no geral, o espectador não se reconhece, a imagem não
faz com que ele queira se refletir nela. A platéia brasileira média,
que vai ao cinema não é representada pela imagem, não quer ser aquele
sujeito (pobre, negro, marginal), imantado na figura de Zé Pequeno. A
violência social é tão acachapante e opressora que desumaniza as
personagens. E não obstante as pessoas vão ao cinema para ver a
violência social, como atrativo, como o diferente e o exótico (no
sentido do olhar estrangeiro).
Diferente disso o filme americano expressa um outro tipo de 'mal
sedutor' que pode estar em qualquer lugar independentemente de classe
social, cor, sexualidade etc. Ele expressa uma violência barata,
comum, ordinária porque ordena o cotidiano. Os pistoleiros de 'Pulp
Fiction', por exemplo, são como um modelo do bad guy, em tipos em que
se reflete a auto-imagem, o espectador deseja ser aquela personagem
sarcástica e irônica pelo menos durante o filme. As personagens do
filme se transformam, então, em referência de linguajar e atitudes do
americano médio.
Houve uma grande produção de filmes com a temática central na
violência e no mundo criminoso que tiveram maior destaque na década de
noventa. Privilegiando o espaço do entretenimento, a violência
transforma-se em um atributo cool do filme, algo instigante como um
atrativo da cultura popular.

Tipos de subjetividade e trajetória das personagens

Esse viés da violência apresentada é personificado também nas
personagens de 'Pulp Fiction' e em sua narrativa sincopada forma
linhas de subjetividade a serem seguidas pelo espectador. É somente a
partir dessa fase do filme, desse episódio, que todas as personagens
estão apresentadas e cada uma delas apresenta um tipo que pode ser
arrolado dentro do universo referencial de Tarantino.
As personagens são tipos, são como dobras na superfície do filme,
elas retêm características próprias e agem de acordo com performances
sociais. São apresentados os seguintes principais tipos nas linhas
narrativas de subjetividade:
Marsellus Wallace - Calvo, negro e alto é o chefão do mundo gangster,
impõe a sua ordem através de seus mandatários. A figura do negro
poderoso, ou melhor, mafioso é reincidente e conota uma relação racial
(o negro como minoria) com o poder - ele só emana poder porque
descende do crime, estando numa posição social marginalizada. Seu
poder é subvertido, na figuração do estupro no episódio do relógio de
ouro, mas depois é retomado, assim como a sua dignidade.
Mia Wallace - Sensual, branca de cabelos negros, esposa do chefão
envolvida com o consumo de drogas, tem a sua lenda no meio gangster .
Enquanto o seu marido está viajando sai com um de seus mandatários, a
pedido do próprio Marsellus, e tem uma overdose (que mantém em
segredo). Após esse incidente, sua figura é sempre mostrada ao lado ou
à sombra de Marsellus.
Vincent Vega - O pistoleiro, homem de confiança e assassino. Branco,
olhos claros. Tem como parceiro Jules Winnfield. Veste-se com terno
preto, assim como 'agentes do serviço secreto' ou como os guarda-
costas do presidente Kennedy, a não ser quando precisa trocar de roupa
como mostra o quarto episódio. Ele vem de outro país. Seu primeiro
serviço é pegar a mala de Marcellus (que supostamente contém a alma do
chefão, ou os diamantes como referência ao filme 'Cães de Aluguel' do
mesmo diretor, ou mesmo cocaína como encomenda do patrão). Atira
acidentalmente na cabeça de Marvin. Encontra-se de relance com Butch,
o boxeador. Sempre no limite entre a vida e a morte sai com Mia
Wallace e ela quase morre de overdose. Em sua trajetória acaba morto
pelo pugilista.
Jules Winnfield - Pistoleiro negro que tem uma excelente performance
para intimidar pessoas. É parceiro de Vincent Vega e, após o serviço
da coleta da mala, em que quase é morto, tem um momento de inspiração
religiosa e aspira à redenção, ou seja, a sua saída da vida do crime.
Butch Coolidge - Calvo, branco e forte. O lutador que foge do
fracasso. Faz um acordo com Marcellus para arranjar o resultado de uma
luta, um pacto com o diabo. Depois de vencer a luta quebrando o pacto
ele foge, mas volta para recuperar o seu relógio de ouro, herança do
pai, que foi deixado em seu apartamento. Encontra-se com Vincent e o
mata. Em seguida é perseguido pelo próprio Marsellus até uma loja de
penhores onde os dois são presos e tratados como escravos sexuais a
contra-gosto. Butch consegue se livrar das amarras, mas antes de fugir
salva Marcellus, salvando também a sua situação com o mafioso.
Fabian - A namorada francesa de Butch, submissa ao lutador. Carinhosa
e frágil tem prazer sexual no filme, mas é ela quem esquece o relógio
de Butch fazendo-o voltar para buscá-lo, expondo-o para o perigo.
Maynard e Zed - Os pervertidos no porão da loja de penhores, eles são
descritos como hillbilly boys, ou garotos do interior ou de áreas mais
afastadas das grandes cidades. Só por essa caracterização já podem ser
considerados marginais. Mas como são várias linhas que os definem,
também são marginais quanto à exploração do prazer sexual, pelo gosto
sádico de imputar o prazer de forma violenta.
Lance - O traficante de heroína. Relaxado e confiante ao início,
depois tenso e irritado. Veste-se de roupão e tem o domínio da
situação, mesmo em crise quando Mia é levada para a casa do traficante
em overdose.
Jody - A esposa do traficante de heroína. Com diversos piercings no
corpo, diverte-se com a ressuscitação de Mia.
O casal Honey Bunny e Pumpkin, ao estilo de Bonnie e Clyde, com
influência de Mickie e Mallory (de Assassinos por Natureza, Oliver
Stone), são dois pequenos assaltantes, sem grande pretensões, a não
ser de continuar na vida do crime.
Os pequenos marginais - liderados por Brett, onde está presente
Marvin, Roger (o primeiro a ser assassinado), e o quarto integrante.
Eles são inseridos na trama como alvo do próprio diretor-roteirista
para satisfazer seu gozo sádico, eles estão na trama apenas para
morrer. Todos são personagens concebidos para serem brutalmente
assassinados, seja de modo intencional ou acidental.
The Wolf, o lobo, elegante criminoso, frio e calculista. Metódico ele
é chamado para ajudar Vincent e Jules com o acidente com Marvin, que
aliás, é tão despersonificado - inclusive literalmente sem cabeça -
que nem chega a ser a grande questão, o que importa é que Bonnie,
esposa de Jimmie não saiba o que os assassinos fizeram. The Wolf é,
então, a pessoa encarregada da 'limpeza', de não deixar transparecer a
sujeira do universo daqueles gangsteres.
Jimmie, amigo de Jules, temperamental e sarcástico, fica desesperado
com o que a sua esposa pode achar dos seus negócios obscuros e expõe a
situação 'Bonnie' para os pistoleiros.
Esses tipos são modelos estanques, são instâncias de conexão com o
espectador que se inspira nesses tipos subjetivos - e é dessa conexão
que se estabelecem afecções ou apropriações e repulsões por parte do
espectador. É da narrativa que emerge a violência, uma violência
necessária que impele ao movimento e ao desdobramento do espectador
entre os tipos subjetivos. É a partir das personagens que se
estabelece uma empatia com o filme, embora existam outros elementos do
filme que podem ser subjetivados como a apreciação da imagem,
paisagens, música, a própria temática entre outros. Neste caso a
fotografia do filme está longe de ser primorosa, se apresenta pelo
contrário, segue a influência do tema, como uma outra forma de
ambientalização de pulp ficção, ou seja, uma imagem suja e escura, com
predominâncias da cor vermelha em vários ambientes como uma conotação
do teor sangrento do filme.
O que são as personagens, então? São como linhas demarcatórias de
narrativas de subjetividades que, definidas pelas linhas do roteiro do
filme, entram em contato com o espectador, um contato de superfícies
onde deixa as suas próprias dobras.

5. Epílogo



E no fim, eles caminham em direção a porta, olham para os lados,
levantam a blusa, guardam as armas na cintura e vão embora. É quase
irresistível fazer uma comparação com o pênis em um filme dotado de
imagens da experiência masculina imersa em violência. No entanto essa
explicação é um tanto simplista já que a violência é generalizada - a
mulher Honey Bunny também utiliza uma arma como forma de coação, além
do quê a imagem tem o seu fundamento na violência da imposição
arbitrária como uma linha narrativa demarcatória que, por sua vez,
serve como referência da experiência comum do espectador. Essa
violência nem sempre é símbolo de virilidade, mas também de castração
e impotência diante de uma força maior dentro de uma maquinaria de
comportamentos clichês do apelativo universo gangster.
A fachada de uma lanchonete mostra seu nome: Grill Mawthorne, não é
apenas um lugar qualquer, mas um lugar que o espectador já foi
apresentado. Aqueles que estão conversando também não são mais pessoas
estranhas, mas são remetidos a todo um passado recente de trocas com o
espectador. Os dois pistoleiros conversam sobre 'Winston Wolf',
comentando sobre a frieza e a elegância com que organizou a 'situação
Bonnie'.
Vincent está tomando café da manhã com panqueca e bacon e oferece um
pouco a Jules, que está comendo um bolo 'muffin'. Jules não aceita e
diz que não come carne de porco, "porcos são animais imundos. Eu não
como animais imundos". Eles têm diálogo non sense sobre a
'personalidade' dos animais e ironicamente Jules diz que o porco
deveria ser encantador para que o comesse. A maioria dos diálogos do
filme não tem conexão direta aparente com a trama e integram uma
componente irônica como um excesso de fala diante da ausência de
palavras que é o próprio ato de violência. Os diálogos incitam à
banalização da morte e da indiferença a qual os pistoleiros se
acometem sem sentimento de culpa. Eles iniciam um assunto escatológico
com os porcos, nas palavras de Jules: "Porcos dormem e esfregam o
focinho na merda. Eu não como nada que não tenha senso para desprezar
a próprias fezes". Isso é também uma referência à escória social, as
fezes, como dejetos sociais que devem ser desprezados.
Esses diálogos - assim como no episódio do encontro de Vincent Vega e
a esposa de Marcellus Wallace em que eles conversam coloquialmente
enquanto comem - preenchem séries de 'silêncios constrangedores'
falando sobre assuntos aleatórios, o que implica que eles pouco se
importam com o que estão fazendo. Essa característica é quebrada
quando Jules fala a respeito do 'milagre', ou melhor, o fato deles não
terem sido atingidos pelos disparos na finalização do episódio do
prólogo. Vincent debate o assunto dizendo: "Você presenciou um
milagre. Eu, um acontecimento insólito".
A discussão religiosa vai além, Jules pergunta o que é um milagre, ao
que Vincent responde: é 'um ato de Deus', e depois completa: 'quando
Deus faz do impossível, possível'. Jules fala do seu processo de
redenção e diz que sentiu o 'toque de Deus'. Neste caso é o toque do
próprio diretor como deus profano do seu universo de imagens mundanas.
O toque do diretor em imagem direta, como sua influência sem mediação
interferindo no enredo o que servirá de estratégia para prender a
atenção do espectador e para desenvolver a redenção como desfecho para
Jules. De fato e de maneira geral, a relativa onipotência, onisciência
e onipresença do diretor em paralelo aos poderes divinos fazem de
Jules o seu pastor, principalmente quando evoca o trecho da Bíblia
representando o tirânico deus vingativo, e por que não, sádico: o
diretor.
A quebra do instante é o que proporciona o movimento, essa quebra é a
primeira violência, de caráter fundador e necessário para arrolar o
movimento em con-seqüências de imagens - a violência necessária é a
que impele ao movimento.Tarantino comprova através da violência que a
imagem extravasa a palavra e transpõe um sentido muito mais geral e
permeado entre as imagens como uma forma de pensamento, uma forma
deliberada de refletir a mentalidade média norte-americana dos anos
90.
Após essas reflexões Jules decide desistir da vida do crime. Depois
de entregar a maleta para Marcellus, ele diz que vai viajar pela Terra
'como Caine em Kung Fu' (antigo seriado em mais uma referência da
cultura pop ao gênero faroeste americano), para viver aventuras.
Vincent indignado diz que ele decidiu ser um mendigo ao que o seu
parceiro responde: "serei só Jules, nem mais nem menos". Neste
momento, há um breve corte para uma cena reincidente do casal Honey
Bunny e Pumpkin que estão sentados pedindo café. Vincent levanta-se
dizendo que quer continuar a conversa e termina o seu assunto
escatológico quando diz: "I'm gonna take a shit" . Antes de Vincent
sair, Jules replica sobre o seu 'momento de iluminação', como os
alcoólatras chamam. Ele toma o seu café já sozinho e em silêncio - a
câmera se aproxima lentamente.
Entram em cena novamente Honey Bunny e Pumpkin com o mesmo diálogo
inicial anunciando o assalto no restaurante. Existem diferenças entre
as cenas do anúncio do assalto que são repetidas com outro enfoque. O
final da fala dela é alterado - "Any of you fuckin' pricks move and
I'll execute every one of you motherfuckers!" A outra mudança é a
continuidade: na primeira versão a fala é mais descontrolada e mais
nervosa e a imagem é congelada logo após a fala. Essa repetição com as
diferenças de diálogo e de ponto de vista da câmera não pode ser
meramente considerada como erro de continuidade e remete ao que Mauro
Baptista especulou como "uma estratégia que contradiz qualquer
pretensão de verdade da história e indica ao espectador que está
assistindo a uma ficção que pode ser contada de diversas maneiras".
Esse momento é o exemplo de uma imagem cristal, ela foi anunciada no
primeiro episódio e se cristaliza no tempo, como um presente que se
atualiza. A seqüência foi inicialmente rompida para propor um sentido
maior nas ações das personagens: propõe a história de violência das
personagens e como o espectador os acompanhou até aquele momento em
uma relação de resgate de um tempo que já é passado. Mas as
características mais proeminentes deste corte e desse tipo de montagem
são: a imposição do ritmo e a afirmação do estilo do diretor.
Na continuidade da ação, o casal intimida todos no restaurante.
Enquanto ela toma conta dos clientes, ele controla os empregados. O
gerente tenta acalmar a situação e Pumpkin o domina dizendo: 'nós
temos um herói aqui Honey Bunny.' Com a arma apontada para a cabeça e
o torso pressionado contra o balcão, depois de ter escutado ela dizer
'execute ele', o gerente fala para levarem o que quiserem e que ele
não é um herói e que vai colaborar e repete para os clientes: "fiquem
calmos, cooperem e isto terminará em um minuto". Honey Bunny está
eufórica e grita: "o restaurante é nosso".
Há um corte que mostra uma imagem em tempo simultâneo: Vincent está
tranqüilamente sentado no vaso do banheiro lendo seu livro, sem ouvir
ou se dar conta do que acontece no lado de fora. É por sinal o mesmo
livro de pulp ficção que estava lendo quando saiu do banheiro na casa
de Butch, sendo então, assassinado pelo pugilista em fuga. (Na
cronologia da história é um evento futuro, mas já foi experienciado
pelo espectador por causa da inversão narrativa do filme).
Voltando à cena no restaurante, Pumpkin tira o dinheiro do caixa e
fala para os ocupantes colocarem as suas carteiras no saco plástico de
lixo. Jules prepara a sua arma sob a mesa e retira a sua carteira.



Pumpkin ao longe vê Jules, se aproxima o encarando e pergunta: "Que
tem na maleta?". Ocorre então um impasse por que Jules não pode
entregar a preciosa mala de Marsellus Wallace, ele se recusa a abrir a
maleta, mas Pumpkin o briga, em um momento de tensão, contando até
três para que Jules mostre o seu conteúdo. Antes de terminar a
contagem Jules abre a mala e o rosto de Pumpkin é iluminado (assim
como no episódio do prólogo com Vincent Vega verificou o interior da
mala no apartamento de Brett). Honey Bunny pergunta o que é. Pumpkin
fala para Jules: "é o que eu estou pensando que é? (silêncio) Que
lindo..." Ela pergunta mais uma vez com um tom de excitação e Pumpkin
fica distraído. Nesse momento, Jules pega rapidamente a mão que segura
a arma de Pumpkin deixando o rosto do assaltante próximo à mesa e
apontando sua arma para o rosto dele. Honey Bunny sobe no balcão
apontando a arma para Jules e grita desesperadamente.



Esse é o clímax do episódio final, os três estão gritando: ela manda
Jules soltar seu companheiro e parceiro no crime, Jules grita para que
Pumpkin a acalme e Pumpkin, temendo por sua vida pede a Honey Bunny
que se controle. A voz que sobrevalece é a de Jules, ele pergunta o
nome dela, Pumpkin responde e Jules diz em voz alta para Honey Bunny:
"Diga que nada vai acontecer! Yolanda, não faremos nenhuma besteira".
Ela pede em tom melancólico: "Não o machuque". Jules responde:
"Ninguém vai machucar ninguém". Ele conta até três para que Pumpkin,
ou Ringo como Jules o denomina (o ator Tim Roth tem um nariz
proeminente o que lembra a figura de Ringo Star, o baterista da banda
inglesa The Beatles) se sente a sua frente. Ele conta até três e eles
se acomodam. Com isso Jules consegue estabilizar a situação. Honey
Bunny aponta sua arma para ele que aponta a sua arma para Pumpkin. A
situação está colocada: se Jules ferir Pumpkin, Honey Bunny irá
atirar.
Para um assassino profissional como Jules essa situação já estaria
resolvida se ele tivesse atirado nos dois antes, quando não prestavam
atenção nele. Mas o pistoleiro está em fase de 'transição', ao invés
de matá-los ele prefere ajudá-los. Além disso ele tem que entregar a
mala para Marcellus e não para o casal. Com a chegada de Vincent,
ocorre outro momento de tensão. Agora Vincent aponta para Honey Bunny
que mira em Jules que tem Pumpkin como alvo. No quadro, os quatro
estão estáticos enquanto Jules fala.



Honey Bunny demonstra fragilidade quando diz que quer ir para a casa
e declara seu amor a Pumpkin novamente numa composição entre violência
e amor que completam a relação afetiva para o casal. Pumpkin retribui
a sua parceira, mas permanece coagido por Jules. Por sua vez, Jules
pede para Pumpkin pegar a sua carteira que já estava no saco e retirar
U$ 1.500,00 dólares. Com isso Jules diz não estar dando o dinheiro,
mas está comprando a vida dos dois. "Te dou esse dinheiro para não te
matar".
Jules declama novamente o trecho da Bíblia Ezequiel 25:17 , com uma
nova entonação, mais calma e menos impactante. E dessa vez interpreta
a sua fala explicitando o seu momento de iluminação: "Há anos eu tenho
dito essa merda. Se prestou atenção, significava que ia morrer. Jamais
pensei no que significava. Gostava de dizer isso antes de encher um
canalha de balas. Mas hoje vi algo que me fez pensar duas vezes". A
câmera fecha um close no rosto de Jules preenchendo meia tela, do
ponto de vista de Pumpkin. Ele continua a sua interpretação, que
revela uma ciranda de papéis pré-estabelecidos: "talvez signifique que
você é o perverso e eu sou o justo. Este 9 milímetros é o Senhor, é o
pastor que protege a minha pessoa justa das sombras. Ou você é o justo
e eu sou o pastor. E que o mundo é perverso e egoísta. Dessa versão eu
gosto, mas essa não é a verdade. A verdade é que você é o fraco e eu
sou a tirania do perverso. Mas eu estou tentando muito para ser o
pastor." Ele desarma o gatilho da pistola e diz: "suma".
Pumpkin (ou Ringo) levanta-se e enquanto Jules come um pedaço do seu
muffin o casal abraçado sai do restaurante com o saco plástico
contendo o furto. Jules pega a sua carteira e Vincent fala para eles
irem embora. A música 'Surf Rider' (de The Lively Ones) preenche o
ambiente, os dois pistoleiros pegam a mala caminham lentamente até a
porta passam pelas pessoas ainda atônitas no restaurante. Eles olham
para os lados colocam as armas debaixo da camisa e vão embora. O
letreiro indica o fim: Written and Directed by Quentin Tarantino .

Conclusão

afecção, nova narrativa, nova subjetividade, sensibilidade.

'Pulp Fiction', ao longo dos dez anos desde o seu lançamento foi alvo
de uma onda de críticas e de acirradas discussões sobre a
'representação da violência'. O filme tem seu estilo marcado pela
violência explícita numa montagem 'nervosa', tendo a centralidade dos
temas no universo marginal. Não foi nem o primeiro filme nem o último
a fazer este tipo de inserção da temática da violência. O filme trata
de uma afetividade (também) marginal e não apenas pictórica da imagem.
É através da violência que se permite a afetividade, na inclusão da
ironia (no sentido oposto ao literal) como crítica e do grotesco como
forma ou estética.
Essa afetividade marginal é permissiva a uma alter-ética vivida por
anti-heróis e recai na inclusão do sujo, do violento como formas de
apreensão de uma humanidade desvalorizada. Com essa 'sub-humanidade'
em foco, a violência deixa de estar à margem para se impregnar no
cerne dos acontecimentos. O grotesco neste caso pode servir como um
subversor de uma estética do cinema.
O cinema está em um lugar entre o discurso e a imagem, justamente
porque é a composição temporal dos dois - como se estivessem em uma
mesma linha de sentido, mas situados em posições opostas. Por isso
mesmo a violência no filme pode ser tratada ora como discurso e ora
como imagem onde o discurso se esgota.
É um filme que deixa clara a não equivalência entre discurso e imagem
- como mostra, por exemplo, o diálogo entre Vincent e Jules sobre a
'personalidade dos porcos'. Não obstante a imagem pode ser uma
narrativa, ela conta uma história, mas não se resume a ela. O
espectador é sensível à imagem - ela trás consigo a possibilidade de
se envolver com a imagem, não apenas no seu aspecto discursivo, mas
também no aspecto afetivo. O espectador é exposto a uma afetividade
marginal, no sentido que está dentro de uma estética marginal e
oferece o mesmo tipo de apreciação.
Em 'Pulp Fiction', o tempo crônico da narrativa redimensiona a imagem
para um "tempo de violência". O filme mostra como a imagem opera -
por meio do choque - e como a violência serve como afecção para o
espectador. A apreensão do tempo, como a imagem-tempo, recai no
movimento de desdobramento de subjetividade. O tempo é fator
constitutivo da subjetividade e o filme expõe como a violência da
imagem faz o espectador estar numa posição entre o voyeur, o
masoquista e mesmo o sádico, quando transfere suas emoções para as
personagens.
O filme refaz seu percurso no tempo como uma evocação da 'nova
narrativa': "onde a descrição toma lugar do objeto, o conceito torna-
se narrativo, e o sujeito, ponto de vista, sujeito de enunciação." A
película, assim como a maioria dos produtos áudio-visuais, é uma forma
de agenciamento de discurso e uma forma de agenciamento de
subjetividades. Não existe o sujeito no filme, existe uma agência de
um ato pré-programado que envolve o espectador em linhas narrativas e
linhas afetivas. A nova narrativa encena uma subjetividade igualmente
nova ou experimental. A história contada não tem mais importância do
que o modo ou a estilística do que é mostrado. A subjetividade se
desdobra e se amplia a cada plano e a cada experiência de afecção com
a imagem.
Isso abre caminho a uma nova sensibilidade da violência que tem que
ser cada vez mais brutal para poder chocar. Por outro lado, a
brutalidade primária da imagem - como o duplo do real e como a
arbitrariedade dos códigos e convenções de linguagem, por exemplo - é
deixada de lado. O que leva a crer que não se trata da domesticação do
ato de violência ou de sua naturalização, mas trata da naturalização
dos códigos, da afirmação do cinema como um veículo que por si só é
brutal.
A questão da a-presentação da violência no filme não pode ser
considerada simplesmente como naturalizada ou banalizada, mas como um
ponto constitutivo da relação do espectador com a imagem. E é na
relação da imagem com o espectador que está a ousadia dos cineastas e
das novas narrativas.
'Pulp Fiction' é como um território onde a subjetividade se desloca
criando estrias e dobras como referência a uma cultura pop. O esforço
teórico dessa dissertação foi fazer uma apreciação associando a
cultura pop do filme com a pop' filosofia deleuziana: "Não há questão
alguma de dificuldade nem de compreensão: os conceitos são exatamente
como sons, cores ou imagens, são intensidades que lhes convêm ou não,
que passam ou não passam. Pop'filosofia. Não há nada a compreender,
nada a interpretar."
Os conceitos são demonstrativos e oferecem uma impossível coerência
entre o discurso e a imagem como duas práticas discursivas com
estéticas diferentes: a brutalidade da imagem e os diálogos
corriqueiros. Essa perspectiva apresenta a fixação de um novo gênero
no cinema - não é drama, não é comédia, não é ação e não é terror. É
um filme simplesmente violento.
A hipótese da relação entre narrativa e os processos de subjetivação
chega nas fronteiras entre o discurso e imagem que mobilizam uma
sensibilidade no espectador. Essa sensibilidade povoa uma
subjetividade nômade que se desdobra e amplia seu referencial afetivo
a cada plano de imanência. O espectador não é apenas passivo ou voyeur
das ações do filme. Ele não é apenas masoquista para ser arrebatado
pelas imagens e pela narrativa cinematográfica. Ele é, sobretudo,
sádico quando manifesta seu desejo por violência - postulando a
brutalidade como forma de afecção.
A relação entre a imagem e o espectador sempre foi proposta como
questão no cinema desde as primeiras imagens veiculadas pelos irmãos
Lumiére. As imagens de um trem chegando à estação, para os primeiros
espectadores foi tão intensa e real que alguns correram com medo da
locomotiva. As incursões à teoria deleuziana levantam uma continuidade
com essa questão do espectador. Ao longo dos 100 anos de cinema foi
fixada uma pedagogia da imagem, o que implica no seu campo semântico
de compreensão da imagem como código e como comunicação. Mas esse
mesmo código se renova e modifica na medida em que dá novo suporte à
narrativa, constituindo, talvez, uma nova narrativa.
Dentro da possibilidade dessa nova narrativa, há a inserção das
categorias de tempo e espaço no cinema - como a imagem movimento e a
imagem tempo - como um plano paralelo ao da subjetividade. E dentro
desse espaço afetivo da imagem, a subjetividade se desdobra no tempo.
Os cortes, as dobras que se acumulam no mapa da subjetividade, as
pregas, rusgas, ou seja, as marcas que a subjetividade carrega ao se
movimentar no tempo, são relações de afecção. Por sua vez, o afeto é
impresso e permeado, em sua extensão, pela violência. O que leva à
conclusão de que a subjetividade é tempo e mais que isso, é tempo de
violência.




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Fotos:
www.home.aone.net.au/redfoot/pulp4.html

www.adorocinem.com/filmes/pulp-fiction/pulp-fiction-poster

Textos on line:

Mascarello: www.pucrs.br/famecos/producao_cientifica/publicacoes_online/revistafamecos/fam5/tarantino.html

Fantini: www.intercom.org.br/papers/xii-ci/gt01/01f06.PDF


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