*"O Passado" *
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Nada passa, nunca; tudo o que acontece é indelével, sobretudo em se
tratando de amor
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"O PASSADO ", de Hector Babenco, estreou na última sexta-feira. O
filme,
que, antes disso, abriu a Mostra de Cinema de São Paulo, é inspirado
no
romance homônimo de Alan Pauls (Cosac Naify).
Resumindo a história ao osso, para não estragar o prazer dos
espectadores
futuros: Rímini e Sofía se juntam muito jovens e se separam,
amistosamente,
depois de 12 anos. De uma maneira ou de outra, a relação que eles
viveram
não os deixa tranqüilos.
Na saída do cinema, a conversa era animada. Os amigos (homens) achavam
o
filme tão apavorador quanto "Atração Fatal", de Adrian Lyne: para
eles,
Analía Couceyro, como Sofia, era mais inquietante que Glenn Close,
justamente por parecer menos louca. Nossos objetos de amor talvez
sejam
sempre assim, familiares até o dia em que, na hora de uma separação, a
própria paixão os torna totalmente estranhos.
As amigas respondiam que a causa do problema era a fraqueza do
protagonista
masculino. De fato, Rímini (Gael García Bernal) parece seguir o desejo
de
todas as mulheres que ele encontra, sem nunca descobrir e afirmar o
seu.
Outra discussão dizia respeito ao fim do filme: será que Rímini
conseguira
se livrar do passado, de vez? Eu pensei que não, que talvez ele
tivesse
conseguido se livrar das atenções incômodas de sua antiga companheira,
mas
não há amnésia que possa acalmar o passado.
A história de Rímini e Sofía me evocou um trecho da autobiografia de
Tchecov
("Minha Vida", ed. Nova Alexandria), em que o escritor comenta que o
ditado
"tudo vai passar" pode tanto aliviar nossa tristeza com a idéia de que
dias
melhores virão quanto mitigar nossa euforia com a idéia de que as
vacas
magras voltarão. Mas, por útil que seja, essa sabedoria é falsa: nada
passa,
nunca; tudo o que acontece é indelével.
Acrescento: sobretudo os amores, por mais que acabem, continuam
vivendo,
subterrâneos, dentro de nós, porque, bem ou mal, são essas as
vivências que
mais nos formaram e transformaram.
A estética do filme de Babenco me tocou tanto quanto a história de
Rímini e
Sofía. Por exemplo, os personagens circulam por interiores abarrotados
de
restos do passado: livros, fotografias, quadros, os inúmeros objetos
que, a
cada mudança de casa, confirmam que nunca conseguimos deixar para trás
os
vestígios de nossa vida pregressa. Num momento do filme, Rímini se
fecha,
desesperado, num apartamento vazio; rapidamente, ele se encontra
imerso numa
montanha de restos: o lixo se acumula como prova irrefutável de que
nem na
derrelição é possível começar do zero.
À primeira vista, isso pode parecer estranho. Afinal, estamos
acostumados a
pensar que, na modernidade, os indivíduos são definidos por suas
potencialidades futuras mais do que pelo passado. Não é assim?
Pois é, não exatamente. A modernidade começa quando paramos de deixar
que a
tradição diga quem somos. Não terei necessariamente a mesma profissão
que
meu pai, não serei nobre porque ele foi, não viverei no mesmo lugar
dos meus
antepassados, não escolherei meus amores para preservar a integridade
de
minha casta, religião ou raça e por aí vai.
Mas se o legado da tradição se torna menos relevante, é justamente
porque o
que me constitui é minha história -não apenas a intensidade do momento
e a
audácia de meus planos, mas o conjunto das experiências que vivi.
No começo da Revolução Francesa, o povo queria fazer tábua rasa:
eliminar os
nobres pela guilhotina e seus vestígios pelo fogo. Após um vigoroso
debate,
os vestígios foram poupados, e foram inventados os museus públicos.
Poucas
décadas depois, nasciam os conceitos de patrimônio histórico e de
preservação dos monumentos. Ao mesmo tempo, surgia um interesse, que
nunca
mais se desmentiu, pela narração e pela compreensão da história.
Não funcionamos diferente: é possível guilhotinar os amores do passado
ou
(menos radical) apagar seus números de nosso celular, é possível até
queimar
fotografias -embora dificilmente sacrificaremos aquele desenho que
compramos
juntos, num sábado, na praça Benedito Calixto. De qualquer forma, mais
que a
lembrança, os rastros do passado sempre assombram o presente e o
futuro.
Quando decretamos novos começos, ilusórios ou não, nem por isso
conseguimos
apagar nossa história: podemos apenas contá-la mais uma vez, quem sabe
revisá-la ou corrigi-la, para pior ou para melhor.