HAKIM BEY: O PROFETA ANARQUISTA DO CAOS ELETRÔNICO

3 views
Skip to first unread message

Hannah BLUE

unread,
Nov 8, 2007, 1:18:01 PM11/8/07
to Midiateca da HannaH
HAKIM BEY: O PROFETA ANARQUISTA DO CAOS ELETRÔNICO
Ricardo Rosas

1ª cena : Imagine um místico enlouquecido gritando numa montanha. Suas
palavras são um misto de poesia e aviso, como as iluminações desses
bárbaros visionários, Blake ou Nerval, como os antigos druidas, xamãs
e profetas a vaticinar o futuro da tribo.

2ª Cena : Imagine agora um pirata. Pense nas comunas piratas livres
dos mares perdidos, pense nos bucaneiros, nessas congregações misto de
utopia e anarquia, pense até mesmo nos hackers modernos, esses nômades
piratas de dados a surfar na net oceano de nossa época, onde a noção
de propriedade, principalmente intelectual, é cada vez mais próxima de
uma miragem fadada ao desaparecimento.

3ª Cena : Visualize um poeta, burilador de palavras a jorrar
significados e imagens vertiginosas num turbilhão borbulhante,
caótico, recheado de mensagens mas igualmente lírico, num ritmo fluido
que lembre o desregramento dos sentidos de Rimbaud ou o caleidoscópio
de imagens de Allen Ginsberg.

4ª Cena : Na Biblioteca de Babel, move-se um erudito. Imagine esse
sábio que já percorreu os livros místicos do hinduísmo e do sufismo,
que conhece os segredos dos neo-platônicos e dos alquimistas, os
livros de emblemas da época barroca, infinitudes de poesia, que já leu
utopistas e enciclopedistas, e todo um "contracânone" ou tradição de
inconformistas que vai de Sade, passando por Fourier, Nietzsche,
Baudelaire, Bakunin, até chegar aos luminares da ainda fértil
contracultura americana, sejam eles Timothy Leary ou Robert Anton
Wilson, ou ainda os subversivos teóricos do situacionismo, como Guy
Debord e Raoul Vaneigem. Para articular tanta informação, esse erudito
move-se por seus dados não de uma forma racional, mas como Salvador
Dali teria formulado de maneira precisa : por um método crítico-
paranóico, juntando dados aparentemente isolados, impensados, numa
livre associação que ele chamará de palimpsesto, junção de camadas
interrelacionadas.

Todas as cenas agora juntas. O homem é um só. Seu nome : Hakim Bey.

O nome é antes uma persona de Peter Lamborn Wilson, um estudioso
americano dos sufis, que chegou viver alguns anos no Irã e conviveu
com comunidades de devirxes, estudando rituais secretos dos sufis.
Tradutor de poesia sufi e teórico rebelde, Wilson publicou, entre
outros, uma coleção de estudos sobre os anarquistas do século
dezenove, em Escape the nineteenth century, e um livro polêmico sobre
costumes secretos da tradição sufi com o título nada inocente de
Scandal : Essays in Islamic Heresy, onde aborda desde a seita dos
Assassinos de Hassan Ibn Sabah (um dos temas prediletos de William
Burroughs), o consumo de haxixe e outros estupefacientes entre os
sufis, e o hábito de contemplação pedofílica entre poetas no Islã. Não
se assuste: ousadia e surpresa são uma permanente nesse pensador do
impensável. Não bastasse ir bem além das fronteiras que Salman Rudshie
sequer atravessou, Lamborn Wilson avançou mais ainda teorizando sobre
nossa época, a crescente virtualização do pensamento e das transações
econômicas, juntou a isso seu conhecimento cabal do ideário anarquista
e dos movimentos subversivos que o precederam, e assim surgiu Hakim
Bey.

Esqueça agora a pós-modernidade, esqueça a Nova Era, esqueça o fim da
história. Hakim Bey já esteve lá, e, quem sabe, poderá lhe contar como
serão os tempos vindouros. A contemplação do sublime tecnológico e a
frivolidade paródica da pós-modernidade são absolutamente alheios a
este ativista tecno-pagão e iconoclasta. Os anjinhos sorridentes do
supermercado new age são quebrados a martelo pelo dionisismo
nietszcheano brotando nas raves e por magos seguidores de Aleister
Crowley. O conformismo dos pregadores do fim da história e da
globalização é desafiado pelas hordes de anarquistas nômades que falam
outra linguagem que não a do mercado das grandes corporações.

É da pena de Hakim Bey que surgiu o já clássico TAZ (Temporary
Autonomous Zone) ou Zona Autônoma Temporária. A TAZ ou ZAT, em
português, é livro de cabeceira(ou de tela, se preferir) de nove entre
dez ativistas eletrônicos, e, pode ter certeza, eles não são poucos.
Liberado de direitos autorais, como de resto toda a obra de Hakim Bey,
a ZAT é como diz o próprio nome, uma zona de liberdade temporal, onde
a livre expressão, o livre pensamento, a imaginação, crença e prática
são exercido sem a repressão e o controle da autoridade, i.e. o Estado
e a Mídia. Dado seu caráter temporário, volátil e passageiro, a ZAT
tem a pretensão da realização utópica no aqui e no agora.

Sua grande inspiração são as utopias piratas dos séculos dezessete e
dezoito e sua materialização mais fremente são as festas, celebrações
coletivas, as raves, o carnaval, os sites de troca de livre
informação, todo e qualquer lugar onde se possa exercer a plena
liberdade mesmo que por uma curta duração de tempo. Lugar ideal de
autonomia temporária, a internet, por seu caráter invisível permite,
pelo menos por enquanto, essa troca nômade de experiências, esse
intercâmbio de desejos livres. Lugar de desaparecimento, onde a
presença é nada mais que um dado, a internet proporcionaria o ponto de
fuga necessário para as estratégias de ataque à ordem global ora
vigente. Para isso, Bey falará de uma contranet, uma rede de
informações ligada aos membros do mundo oculto do underground e da
contracultura, anarquistas, comunistas, hackers, cyberhippies,
ecoguerrilheiros, e assim por diante. A ZAT seria o grande ponto de
encontro, confluência de todas as tribos de discordantes, de xamãs, de
tecno-rebeldes. Como tal, como vislumbre de uma utopia, a ZAT seria
apenas o primeiro passo para a Zona Autônoma Permanente, aí sim,
realização perene do desejo utópico.

Em seu filão de precursores, Bey citará os piratas bucaneiros, que
formaram um república independente, estudará a utopia de Charles
Fourier, com sua junção de arte e sexo na criação de um estado amoroso
e chegará até mesmo à estranha república de Fiume, fundada pelo
escritor italiano Gabrielle D´Annunzio, formada majoritariamente de
anarquistas, segregados e párias sociais, putas, artistas e loucos em
geral, uma piração do meio do século vinte, praticamente desconhecida
em nossos manuais de história. Aí também poderão ser adicionadas as
comunidades livres dos anos sessenta e setenta.

Pode parecer que não, mas a Zona Autônoma Temporária tem dado muito o
que falar na internet. São numerosíssimos os sites em lingua inglesa
com TAZ livre para download e eles vão de sites de estudos de
tecnologia e sociedade, sites artísticos, de ativismo, de anarquistas,
de contracultura e anos sessenta, de anti-copyright, neo-
situacionistas ou de culture jammers. A influência de Hakim Bey é
visível em toda uma nova geração de artistas e poetas, que já sentiam
falta de alguém que levantasse a poeira como fizeram os beatniks nos
anos cinquenta e sessenta. A ZAT reatualiza toda uma tradição de
contestação nos Estados Unidos, que vem desde Henry D. Thoreau e sua
Desobediência Civil, assim como do libertarianismo de Whitman. A nova
geração de artistas, músicos e cineastas na linha anticopyright assim
como os "congestionadores de mídia", os provocativos culture jammers,
com suas estratégias de guerrilha sabotando propagandas, interferindo
em slogans e produtos massificados, alterando discursos dos meios de
comunicação seguem nada menos que esse anseio utópico anti-
capitalista.

Além disso, a crescente popularidade das raves, o aspecto tecno-
xamãnico dos DJs nessas reuniões gigantescas de uma coletividade que
transcende barreiras com a dança, igualmente revela esse desejo de
liberdade e elevação.

Mas há muito mais deste Marco Polo do mundo underground. Uma
infinidade de textos com sua rubrica e indefectível visão crítica
estão espalhados pela rede. Alguns se inclinam mais para o ensaio,
outros para a poesia. Coisas como CHAOS : the broadsheets of
onthological anarchism (CAOS: os panfletos do anarquismo ontológico),
pura poesia subversiva e inconformista.

Com idéias pertubadoras, imagens pouco aceitáveis, o libertarianismo
de Hakim Bey é um vento fresco numa época de tanto conservadorismo
como a nossa. Seu antídoto é poderoso frente ao marasmo pós-moderno e
ao controle mental das maiorias silenciosas. Depois dele, muitos já
surgiram. Outros surgirão.

Como Grant Morrison, Bey é um desses caras que conseguiu ligar os
dados certos, fazendo as conexões mais inesperadas mas nem por isso
menos corretas. Sua intuição e capacidade visionária nos põe anos à
frente em relação ao que pode acontecer neste planeta. Não só. Sua re-
visão do passado igualmente ilumina em relação a coisas às quais ainda
não havíamos atentado.

[Abril de 2000]

(Arquivo Rizoma)
http://www.rizoma.net/interna.php?id=129&secao=intervencao

Reply all
Reply to author
Forward
0 new messages