Hannah BLUE
unread,Nov 24, 2007, 1:03:01 AM11/24/07Sign in to reply to author
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to Midiateca da HannaH
Signo, tempo e consciência: Gilles Deleuze e António Damásio
Face a face entre o organon [1] semiótico e as neurociências
Luís Carmelo, Universidade Autónoma de Lisboa
A urgência da actualidade apela a desafios. Um desafio é sempre a
abertura de uma brecha, o percurso de uma lacuna, de uma infracção, ou
de uma coligação impensável. A necessidade de desafios aplica-se
também às inevitáveis pontes entre as áreas do saber, cujos limites e
fronteiras são cada vez mais fluidos. Provavelmente sempre o foram,
embora, hoje em dia, a revelação desconstrucionista nos permita uma
outra visibilidade desse facto, sob a forma de deriva, de deslize, de
jogo entre sistemas de centros sempre deslocáveis.
No presente artigo propomo-nos, nesta linha epistemológica de
travessias, percorrer hiatos que atravessam as neurociências e a
reflexão semiótica e até filosófica. O tema empurra-nos para a ligação
entre virtual e real, mas também para os modos diversos com que a
consciência torna em figura os eventos já actuais.
Diga-se também que a dissimetria metodológica que é verificável entre
um filósofo e semiótico como Gilles Deleuze e um neurocientista como
António Damásio, director do Departamento de Neurologia da
Universidade de Iowa (EUA), autor de Descartes´Error-Emotion, Reason
and the Human Brain (1994) e do recente The Feeling of What Happens
(1999[2] ), estimula-nos particularmente a perscrutar as ligações e os
modos que pretendemos inquirir.
1- Consciência e plano de imanência, segundo Deleuze
No último texto conhecido que Deleuze publicou, L´immanence: une
vie..., um artigo que abre o número 47 da revista Philosophie
(1995:3-7 [3]) a ele dedicado, o autor estabelece um conjunto de
relações entre consciência humana, por um lado, e campo
transcendental, empirismo transcendental e plano de imanência, por
outro lado.
Para Deleuze, o campo transcendental define-se, em oposição ao campo
da experiência, por não "reenviar a nenhum objecto, nem pertencer a
nenhum sujeito". Estaríamos, pois, na área de uma "consciência a-
subjectiva", onde o papel do eu não pode sequer ser concebido.
Por seu lado, o empirismo transcendental surge descrito como uma
multitude de dados imediatos "pré-reflexivos e impessoais", ou seja,
como um fluxo pujante, sem delimitação, princípio ou fim, que se opõe
ao mundo do sujeito e do objecto e que é sobretudo anterior a ele.
Se o campo e o fluxo transcendentais aparecem intimamente ligados
entre si, já a noção de plano de imanência requer uma apresentação
prévia da própria consciência. Segundo Deleuze, neste seu artigo
condensado, a consciência só se torna num facto "quando um sujeito é
produzido ao mesmo tempo que o seu objecto", embora ambos acabem por
não surgir na boca de cena da consciência, acabando antes por se
tornar em entidades "transcendentes" da mesma.
Sublinhemos que o lexema "transcendente" significa, aqui, que, ao
observarmos o filme da nossa consciência, supomos a existência de
sujeitos e de objectos, mas sem, de facto, os vermos como figuras; é
nesta medida, e só, que ambos, sujeitos e objectos, são
transcendentes. Por outro lado, quando Deleuze utiliza o lexema
"transcendental", remete indubitavelmente para um campo prévio à
consciência e que se imagina ser, como vimos, um fluxo ininterrupto de
eventos, sem objectos nem sujeitos, a maior parte dos quais nem chega
sequer a tornar-se presente na cartografia da nossa consciência
alargada.
Nesta linha de ideias, a concepção de "plano de imanência", enquanto
aplicação do campo transcendental, confunde-se com tudo o que possa
escapar à transcendência do sujeito e do objecto, tornando-se em vida,
ou em dinâmica, sempre pronta a cruzar-se com a actualização que os
vários níveis da consciência vão levando a cabo, ao longo do tempo.
Deste modo, é da vida imanente e do seu fluxo empírico transcendental
que se vão separando eventos e "singularidades" que, por sua vez, se
actualizam permanentemente na consciência, através de sujeitos e
objectos que representam de modo ininterrupto (enquanto manipuladores
de marionetas) no palco do nosso interagir quotidiano.
Este processo, não distante de uma qualquer teoria do acto, põe em
evidência o emergir do virtual que, para Deleuze, é caracterizado como
compromisso (engagement) que se efectiva num processo de actualização,
"seguindo o plano" que lhe dá a sua "realidade própria". Daí a
conclusão crucial do autor, neste artigo: "Le plan d´immanence lui-
même s´actualise dans un Objet et un Sujet auxquels il s
´attribue" (1995:6).
Já no texto inédito que Deleuze havia publicado em anexo a Dialogues
[4], na sua edição de 1996 (179-185), com o título L'actuel et le
virtuel, o autor havia enfatizado a ideia de um universo torrencial e
potencial de virtuais, espécie de continuum hjelmsleviano, de onde a
consciência, nos seus diversos devires, recortaria, por actualizações
sucessivas, a realidade ou a actualidade sempre subjectiva e
objectual: "Tout actuel s´entoure d´un brouillard d´images virtuelles.
Ce brouillard s´élève de circuits coexistants plus ou moins étendus,
sur lesqueles les images virtuelles se distribuent et courent"(ibid.:
179).
No entanto, esta discussão sobre o turvo hiato que parece desenhar a
linha divisória entre a consciência humana, por um lado, e o "plano"
de imanência e os fluxos "transcendentais", por outro, parece agora
começar a aclarar-se. No artigo publicado em Philosophie, Deleuze
sublinhava que a actualização, isto é a passagem de potência a acto,
decorria do plano de imanência, de acordo com a sua "réalité
propre" (1995:6). A esta perspectiva autotélica é preciso agora
adicionar uma outra de caracter temporal que, surge no início do anexo
referido de Dialogues:
"Ils sont dits virtuels en tant que leur émission et absorption, leur
création et destruction se font en un temps plus petit que le minimum
de temps continu pensable, et que cette brieveté les maintient dés
lors sous un principe d´incertitude ou d´indétermination. Tout actuel s
´entoure de cercles de virtualités toujours renouvelés dont chacun en
émet un autre, et tous entourent et réagissent sur l
´actuel" (1996:179).
Esta dupla argumentação, autotélica e temporal, desagua numa terceira
e derradeira - também presente no anexo de Dialogues - e que se
configura no facto de actual e virtual se constituírem "em circuito",
ou em rede de implicações (1996:185). A comunicação entre ambas as
ordens pressupõe, seguindo esta lógica, alterações e afectações
permanentes em cada uma delas.
Resumindo, diríamos que a consciência se revela em cena, através de
actores não presentes, mas transcendentes (sujeitos e objectos); que a
consciência se alimenta de uma actualização protagonizada por uma
plano de imanência (no fundo, a aplicação do campo e do fluxo
transcendentais); que a consciência é um acontecer actual envolvido
por um potencial desmedido de virtuais, em interacção permanente; e
que, para terminar, a ponte entre campo transcendental e campo
consciente, ou empírico, é construída segundos critérios que decorrem
do próprio plano de imanência (autotélicos, portanto), do
desfasamentos entre ordens temporais e, por fim, das inevitáveis
alterações - e indeterminações - que os eventos actuais e os virtuais
sofrem, ao comunicarem nessa linha de falha que os separa (e que é, ao
fim e ao cabo, a linha de abismo entre representável e não-
representável).
2- A consciência e os seus circuitos, segundo António Damásio
António Damásio estatui, em The Feeling of What Happens (1999),
diversas entidades que, na mente, protagonizam operações
comunicacionais a vários níveis, nomeadamente a um primeiro micro-
nível entre organismo/objecto/ e o que designa por "proto-si"; a um
segundo nível, entre o 'si nuclear' da consciência dita "nuclear" e as
imagens do proto-si e do objecto (traduzidas do nível anterior) e, por
fim, a um terceiro nível, o da sequência, ou do "filme-no-cérebro" que
pressupõe o eclético 'si-autobiográfico', próprio da consciência
"alargada".
Esta rede comunicacional da consciência e seus 'sis' (que inclui
entidades e relatos diversos) está na base da própria definição de
consciência de António Damásio, expressa em antecipação a futuras
possíveis polémicas: "(...)se por consciência de si se pretende
significar consciência com um sentido de si, então toda a consciência
humana corresponde a esse termo" (ibid.:39)
Proto-si: a grande antecâmara.
O proto-si é definido como um "conjunto coerente de padrões neurais" -
de que não temos consciência - "que cartografa, a cada instante, o
estado da estrutura física do organismo nas suas numerosas
dimensões" (2000:184).
Si nuclear
O si nuclear "é inerente ao relato não verbal de segunda ordem que
ocorre sempre que um objecto modifica o proto-si" (ibid.:206),
constituindo a tradução do que se passa nessa prévia ante-câmara. O si
nuclear constitui um sentido de pertença, de auto-apropriação que,
subitamente, na esfera do agora-aqui, reconhece que algo se está a
passar. É o início da representação que o torna possível. A sua
característica base é o conhecimento imediato de que o proto-si foi
alterado e de que existe, em função disso, uma dada metamorfose na
interacção organismo-objecto.
Consciência nuclear
A "consciência nuclear constitui ela própria o conhecimento, directo e
sem qualquer verniz inferencial, do nosso organismo individual no acto
de conhecer" (ibid.:152) e, por sua vez, esse conhecimento nasce da
"re-presentação do proto-si não consciente no processo de ser
modificado"(ibid.:202). Este imediatismo ainda não inferencial assiste
à transição dos dados, de padrões neurais a imagens, e, porque estas
últimas emergem em plena espontaneidade - nesta que é uma consciência
do pertinente instantâneo - não podem ainda considerar-se como
disputáveis em pleno pelo jogo semiótico.
O si autobiográfico
"A base neuroanatómica" do si-autobiográfico é descrita a partir de um
modelo que comporta, de um lado, um "espaço imagético" e, do outro
lado, um "espaço disposicional" (ibid.:254/377). No primeiro, ocorrem
explicitamente as "imagens de todos os tipos sensoriais. Algumas
destas imagens constituem conteúdos mentais manifestos que a
consciência nos permite experienciar enquanto algumas imagens
permanecem não conscientes"(ibid.:377). No segundo, estão presentes
"as disposições que contêm a base do conhecimento e os mecanismos
através dos quais as imagens podem ser construídas durante o recordar,
através dos quais os movimentos podem ser gerados, e através dos quais
o processamento de imagens pode ser facilitado" (ibid.:377)
O si autobiográfico é a consciência de pertença que age em nós como a
montagem do grande filme da nossa consciência.
Consciência alargada
É a consciência ligada directamente ao si-autobiográfico que António
Damásio assim traduz: "é a preciosa consequência de duas contribuições
que a possibilitam: primeiro, a capacidade de aprender e,
consequentemente, de reter miríades de experiências previamente
conhecidas através da consciência nuclear. Segundo, a capacidade de
reactivar esses registos de tal modo que, enquanto objectos, também
eles possam gerar 'um sentido de si' e, consequentemente, ser
conhecidos. [5]" (ibid.:228/9)
O funcionamento desta consciência não é muito diverso do da
consciência nuclear, já que, em ambas, se processam "múltiplas
gerações do si nuclear aplicado não só ao 'objecto-que-está-para-ser-
conhecido' como também ao eternamente re-evocado e complexo conjunto
de memórias pessoais que constitui o si-auto-biográfico"(ibid.:229)
Registe-se ainda as implicações entre cultura e consciência alargada,
no seio da qual o si autobiográfico está necessariamente envolvido num
processo concomitante e ininterrupto de inferências semióticas: a
consciência alargada "é posta em marcha pelo genoma, mas a cultura
pode influenciar o seu desenvolvimento individual de forma
significativa"(ibid.:232)
Os relatos
Cada nível da consciência e/ou dos sis que lhes estão associados
est(ão)á ligado(s) a um determinado tipo de enunciação. Esta não
significa sempre a produção de uma mensagem corpórea e legível, nem
tão pouco nítida, ou sequer verbal. A linguagem dos linguistas surge,
neste aparelho conceptual, como algo não necessário para definir os
níveis da consciência e, por outro lado, como algo que sucede
inevitavelmente as operações primeiras e constitutivas da consciência.
Por outras palavras, a linguagem dos linguistas é considerada, aqui,
de modo consistente e coerente, como um relato de terceira ordem.
Relato da primeira ordem
São relatos não legíveis conscientemente, mas que, ao traduzirem-se,
trazem à superfície a figuração permanente do proto-si em estado de
metamorfose e também, ao mesmo tempo, o estado das interacções
organismo-objecto. Por outras palavras, pode dizer-se que a
"cartografia das consequências relacionadas com o objecto surge em
mapas neurais de primeira ordem que representam o proto-si e o
objecto" (2000:201)
Relato da segunda ordem
As representações imagéticas de segunda ordem incluem o objecto
prestes a modificar o proto-si, em interacção com o organismo, assim
como as "modificações subsequentes do proto-si" (ibid.:201). É uma
escrita que marca o súbito despontar da consciência nuclear. Este tipo
de relato da relação causal entre o objecto e o organismo só pode ser
captado em mapas neurais de segunda ordem" (ibid.:201). O mais
interessante é que este relato tem como atributo o facto de ser um
"relato não verbal" e, por outro lado, como que reflecte "o organismo
surpreendido no acto de representar" (ibid.:202). António Damásio
chega a utilizar a feliz metáfora do "coro grego" (ibid.:202) para
acentuar a ideia de que este relato não verbal de segunda ordem age
como "um explicativo", ou como um "comentário" oriundo do agora-aqui,
sendo, desse modo, incorporado no permanente fluxo de imagens e de
"símbolos" que constituem o pensamento. Este tipo de relato é "supra-
regional" (ibid.:213) e é gerado por diversificadas estruturas
cerebrais e não apenas por uma
Relato da terceira ordem
O relato de terceira ordem, ou seja, a capacidade - entre outras - de
natureza verbal e todos os seus deferimentos, pode iniciar-se logo que
a representação se inicia, ou seja, a partir do emergir dos enunciados
de segunda ordem. Conforme a designação escolhida por António Damásio
assinala, o relato desta "terceira ordem" constitui uma tradução, no
tempo, das figuras que se geram a partir da submersão de dados que
ocorrem na consciência nuclear: "No caso dos seres humanos, a
narrativa não verbal de segunda ordem pode ser convertida
imediatamente em linguagem"(...)"Poder-lhe-íamos chamar a narrativa de
terceira ordem".
Por outras palavras ainda: para além da história que "significa o acto
de conhecer e o atribui ao recém-forjado si nuclear, o cérebro humano
também forja uma versão verbal automática dessa mesma história" (ibid.:
217). Um autêntico mise en abîme de enunciações, aparentemente
virtuais umas em relações à outras, mas funcionando todas elas através
de vasos comunicantes e traduções sucessivas.
As histórias do cérebro
Nesta contexto, António Damásio, conclui, com alguma ironia, que o
cérebro é um exemplar contador de histórias. Com efeito, no seio desta
teia de relatos que mutuamente se ampliam e que - a todo o momento -
desencadeiam na consciência fluxos de interpretantes, é natural que os
conteúdos latentes e a imaginação conotativa se acabem por tornar
reprodutíveis. O autor chega mesmo a referir que "contar histórias
precede a linguagem", o que é até, "afinal, uma condição para a
(própria) linguagem"(...)"que pode ocorrer não apenas no córtex
cerebral, mas noutros locais do cérebro, quer no hemisfério direito,
quer no esquerdo" (ibid.:221).
Toda a tradição, baseada na filosofia da consciência e que sublinha o
importante papel da intencionalidade (Husserl, Sartre, Merleau-Ponty,
Lévinas, etc) é interpretada por António Damásio como uma consequência
desta verificação simples: a capacidade do cérebro em contar
histórias. Diz o autor: esse "dizer respeito a", exterior ao cérebro,
tem exactamente "como base a tendência natural do cérebro para contar
histórias, o que ocorre sempre da "forma mais espontânea
possível" (ibid.:221).
3- Conclusões
Da leitura dos discursos de Deleuze e de Damásio, cuja dissimetria
metodológica não contradiz a abordagem de idêntico topic, ressalta uma
reflexão conclusiva que poderíamos dividir em três pontos: (1) uma
ordem autotélica que é própria do plano de imanência, mas também do
mundo da representação; (2) as permanentes interacções/alterações
sofridas pelo organismo e pelos objectos, ou, por outras palavras, a
correspondente ideia deleuzeana de "circuito" actual/virtual; (3) e a
questão temporal, talvez a decisiva para avaliar do corte existente
entre os possíveis que a consciência figura e o fluxo dos virtuais
jamais actualizáveis.
A ordem autotélica
Deleuze diz que existe no empirismo transcendental qualquer coisa de
"sauvage et de puissant" (1995:3). Isto quer dizer que as
singularidades virtuais constituem um verdadeiro fluxo pujante,
anterior ao mundo dos sujeitos e objectos. A natureza da actualização
destas singularidades depende, ainda segundo Deleuze, da sua própria
ordem. É difícil inquirir que ordem é essa, já que, aquém da
consciência, não há discurso que comunique connosco. Para António
Damásio, esse discurso surge logo no momento do embate entre actuais e
virtuais, nessa linha de falha, nesse incerto "brouillard", para
utilizar a metáfora de Deleuze. Esse discurso assenta na primeira
antecâmara da consciência, o proto-si, que se faz reflectir no si-
nuclear, através de dados neurais. Estes dados já são cartografias,
escritas do corpo, mas que não acedem ainda ao palco da representação.
A ordem de selecção destes dados também não pode ser apurada. É
igualmente autotélica, como autotélico é um imenso conjunto de
figurações que entram nos circuitos do nosso organismo, sem que a
consciência deles tenha leitura (nomeadamente tudo o que povoa o
inconsciente).
A ordem do circuito e das alterações
O relato de segunda ordem, refere Damásio, exibe "o organismo
surpreendido no acto de representar o seu próprio estado de mudança
enquanto prossegue com a representação de um objecto" (ibid.:202).
Por seu lado, o objecto é cartografado no cérebro, mas "em regiões
sensoriais e motoras activadas pela interacção do organismo como
objecto" (ibid.:200). Por outras palavras: quando detectamos X, já
estamos sempre a detectar-nos a nós - em estado de metamorfose, de
alteração - e a detectar a própria rede comunicacional onde nos
inserimos com N objectos. Nenhuma entidade é discreta, pelo contrário
toda a natureza se mostra profundamente rizomática. E, neste momento,
ainda a consciência nuclear está apenas ocupada em disponibilizar a
tradução dos padrões neurais de primeira ordem noutros mapas de
segunda ordem, de onde, por sua vez, irão sair imagens mentais
(entretanto já seriadas e modificadas ao longo de todo este percurso).
Talvez por isso, Deleuze afirme em quase perfeita concomitância:
"Le rapport de l´actuel et du virtuel constitue toujours un circuit,
mais de deux manières: tantôt l´actuel renvoie à des virtuels comme à d
´autres choses dans de vastes circuits, où le virtuel s´actualise,
tantôt l´actuel renvoie au virtuel comme à son propre virtuel, dans
les plus petits circuits où le virtuel cristallise avec l
´actuel"(1996:185).
A ordem temporal
Já vimos que Deleuze afirmou que os virtuais são o que são, na medida
em que "leur émission et absorption, leur création et destruction se
font en un temps plus petit que le minimum de temps continu
pensable" (1996:179). Porventura, esta espécie de mónadas, mesmo as
actualizáveis, não são absorvidos sequer pela antecâmara da
consciência - senão numa parte muitíssimo escassa, os "actuais" -,
devido a esta questão decisiva, a do tempo da consciência. Vejamos
qual é o olhar das neurociências.
Dez para um, no melhor dos casos, e dez mil para um, no pior, eis a
escala que separa a realidade comunicacional verificada nos circuitos
que ligam os neurónios da realidade da primeira representação
correspondente que emerge na consciência nuclear. Ou seja, o
deferimento temporal é, no mínimo, radical. António Damásio explicita:
"Os neurónios são activados e disparam em apenas alguns milionésimos
de segundo, enquanto que os acontecimentos de que temos consciência na
nossa mente ocorrem na ordem de dezenas, centenas e milhares de
milésimos de segundo" (ibid.:154).
O atraso da consciência em relação à ocorrência primordial, verificada
na sua ante-câmara, é por mais evidente: "Na altura em que a
consciência nos 'é entregue' para um determinado objecto, os
respectivos mecanismos do nosso cérebro têm estado a trabalhar há uma
eternidade, medida na perspectiva temporal de uma molécula - se as
moléculas pensassem, claro. Estamos sempre atrasados para a
consciência, mas como todos nós sofremos do mesmo atraso, ninguém
repara."(ibid.:154).
Passemos a uma segunda quantificação: "A ideia de que a consciência
chega atrasada, em relação à entidade que a inicia, é apoiada pelas
experiêcnias de Benjamim Libet sobre o tempo que um estímulo demora a
tornar-se consciente. O atraso é de cerca de quinhentos milésimos de
segundo. Claro que é curioso que possamos posicionar o nosso si mental
entre o tempo celular, por um lado, e, por outro, o tempo que a
evolução demorou a trazer-nos até onde estamos".
De qualquer modo, diga-se que, se, para além de outras formas, o ser
humano também recorta do continuum dos conteúdos disponíveis o seu
próprio tempo possível - e não aquele que existiria, ou existe
ficcionalmente, para além da sua subjectividade e do seu oikos -
conformemo-nos com a escala em que a própria semiose ocorre, onde há
acomodamentos e "previsibilidades" face ao futuro imediato (ibid.:
176), onde a percepção nunca é perfeita porque construtora de
"ajustamentos" (ibid.:177). Sobretudo, é preciso ter em conta que o
fluxo do pensamento se move "para a frente no tempo, depressa ou
devagar, de forma ordeira ou sobressaltada e, algumas vezes, avança
não apenas numa sequência mas em várias". (ibid.:361).
Poderá ainda vir a existir uma semiótica do tempo, assente em
parâmetros laboratoriais das neurociências ? De qualquer modo, apesar
dos nexos temporais que nos levaram, ao longo de séculos, a tematizar
o fim, o princípio e outros sintomas de coerência forçada ou de
consciência de crise, estabeleça-se, pelo menos, o que ainda une a
epistemologia semiótica, i.e., a noção de signo, depurada pela leitura
de António Damásio e G. Deleuze:
um signo é sempre um interface onde intervêm figuras actuais
(segmentações de conteúdo, peças de significação e, por outro lado,
experiências sensíveis, corpos significantes, dimensões expressivas)
que são amalgamado(a)s no curso do tempo diferido da consciência,
através de uma relação produtora de sentidos, provocada, quer pelo
circuito envolvente de singularidades virtuais, quer pelo impacto
entre essas figuras e o fluxo de fundo dos padrões mentais com que
pensamos. O código, nas suas variadas facetas (genoma e cultura),
selecciona esses sentidos (que são ascendentes e descendentes - em
direcção à consciência alargada, ou ao plano de imanência), separa os
sememas, pressupõe a transcendência de sujeitos e objectos e tenta,
por fim, repor a sempre instável ordem que é própria da indecibilidade
da mente, cujo sortilégio último é a sobrevivência (assim como a
heideggeriana 'sorge'[6] ).
[1] P. Fabri corrobora a tese de B.Latour, autor que "considera que la
semiótica es un organon, lo cual, como decía Kant, no es lo mismo que
un canon. El canon, según Kant, es el conjunto de los principios a
priori que establecen el uso legítimo de ciertas faculdades de
conocimiento en general. El Organon, en cambio, es una regla de uso
práctico. Yo creo que hay una fuerte demanda de la semiótica como
organon para la ciencia, como una especie de arte racional, no
universal, para el funcionamento de los conocimientos". Como exemplo,
Fabri, seguindo o exemplo de Latour, refere o caso dos laboratório s
científicos e conclui: "(...) la idea, tambièn de Latour, de que un
laboratorio no es más que el centro de una red de informaciones
sometidas a traducciones y transformaciones es meramente semiótica, y
uno de los conceptos fundamentales para abordar el funcionamiento de
las técnicas científicas actuales." (El Giro Semiótico, Gedisa
Editorial, Barcelona,1999:100-101;La svolta semiotica-1998).
Verificamos, neste artigo, que essas "regras de uso prático" - o
Organon -, tal como decorrem da leitura de um texto significativo de
Deleuze, se adequam em boa medida ao aparelho conceptual descrito por
António Damásio. Daí o emprego do lexema Organon no sub-título do
presente artigo.
[2] É desta obra de António Damásio que retiramos todas as citações, O
Sentimento de Si, Europa-América, Lisboa, Lisboa, 2000
[3] L´immanence: une vie in Philosophie, Paris, Numéro 47, 1er
Septembre 1995:3-7.
[4] Gilles Deleuze/Claire Parnet, Dialogues, Flammarion, Paris,1996 e
Gilles Deleuze, L´actuel et le Virtuel, Annexe:Chapitre V, ibid.:
179-185.
[5] Por outras palavras:"A consciência alargada surge a partir de dois
truques. O primeiro requer a formação gradual de memórias de muitos
exemplos de uma classe de objectos: os objectos da biografia do
organismo e da nossa própria vida, tal como se desenrolaram no passado
pessoal, iluminados pela consciência nuclear" (ibid.:229)
[6] Martin Heidegger,Ser e Tempo,Vozes,Petrópolis,1997,I/II.