O UNIVERSAL SEM TOTALIDADE, ESSÊNCIA DA CYBERCULTURA - Pierre Lévy

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Hannah BLUE

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Nov 8, 2007, 12:16:49 PM11/8/07
to Midiateca da HannaH
O UNIVERSAL SEM TOTALIDADE, ESSÊNCIA DA CYBERCULTURA
Pierre Lévy

A cada minuto que passa, novas pessoas assinam a Internet, novos
computadores se interconectam, novas informações são injetadas na
rede. Quanto mais o ciberespaço se estende, mais universal se torna,
menos totalizável o mundo informacional se torna. O universal da
cybercultura está tão desprovido de centro como de linha diretriz.
Está vazio, sem conteúdo. Ou melhor, aceita todos, pois contenta-se
com pôr em contato um ponto qualquer com qualquer outro, qualquer que
seja a carga semântica das entidades postas em relação. Eu não quero
dizer com isso que a universalidade do ciberespaço seja «neutra» ou
sem conseqüências, pois o fato-mor do processo de interconexão geral
já tem e terá ainda mais, no futuro, imensas repercussões na vida
econômica, política e cultural. Esse evento está efetivamente
transformando as condições da vida em sociedade. Trata-se, no entanto,
de um universal indeterminado e que tende até a manter sua
indeterminação, pois cada novo nó da rede de redes em constante
extensão pode tornar-se produtor ou emissor de informações novas,
imprevisíveis, e reorganizar por conta própria parte da conectividade
global.

O ciberespaço possui o caráter de sistema dos sistemas mas, por isso
mesmo, também é o sistema do caos. Máxima encarnação da transparência
técnica, acolhe, no entanto, devido à sua irreprimível profusão, todas
as opacidades do sentido. Desenha e redesenha a figura de um labirinto
móvel, em extensão, sem plano possível, universal, um labirinto com o
qual o próprio Dédalo não poderia ter sonhado. Essa universalidade
desprovida de significado central, esse sistema da desordem, essa
transparência labiríntica, eu a chamo o «universal sem totalidade».
Constitui a essência paradoxal da cybercultura.

A escrita e o universal totalizante
Para entender bem a mutação da civilização contemporânea, é preciso
fazer um retorno reflexivo sobre a primeira grande transformação na
ecologia das mídias: a passagem das culturas orais para as culturas da
escrita. A emergência do ciberespaço terá provavelmente - já tem hoje
até - um efeito tão radical sobre a pragmática das comunicações como o
teve em seu tempo a invenção da escrita.

Nas sociedades orais, as mensagens lingüísticas sempre eram recebidas
no momento e no local de sua emissão. Emissores e receptores
partilhavam uma situação idêntica e, na maioria das vezes, um universo
semelhante de significado. Os atores da comunicação mergulhavam no
mesmo banho semântico, no mesmo contexto, no mesmo fluxo vivo de
interação.

A escrita abriu um espaço de comunicação desconhecido pelas sociedades
orais, no qual tornava-se possível tomar conhecimento de mensagens
geradas por pessoas situadas a milhares de quilômetros ou mortas desde
séculos, ou expressando-se desde enormes distâncias culturais ou
sociais. Assim sendo, os atores da comunicação não partilhavam
necessariamente a mesma situação, não estavam mais em interação
direta.

Subsistindo fora de seus condições de emissão e recepção, as mensagens
escritas mantêm-se "fora de contexto". Esse "fora de contexto" - que
inicialmente se insere apenas na ecologia das mídias e na pragmática
da comunicação - foi legitimado, sublimado, interiorizado pela
cultura. Tornar-se-á o núcleo de uma certa racionalidade e acabará
levando à noção de universalidade.

É difícil entender uma mensagem quando separada de seu contexto vivo
de produção. É por isso que, ao lado da recepção, inventaram-se as
artes da interpretação, da tradução, toda uma tecnologia lingüística
(gramáticas, dicionários...). Do lado da emissão, houve um esforço para
compor mensagens que fossem capazes de circular por toda a parte,
independentemente de suas condições de produção, as quais contêm em
si, na medida do possível, suas chaves de interpretação ou sua
"razão". A esse esforço prático corresponde a Idéia do Universal. Em
princípio, não há a necessidade de recorrer a um testemunho vivo, a
uma autoridade externa, a hábitos ou a elementos de um determinado
ambiente cultural, para compreender e admitir as proposições
enunciadas nos Elementos de Euclides. Esse texto inclui em si as
definições e os axiomas a partir dos quais decorrem necessariamente os
teoremas. Os Elementos são um dos melhores exemplos do tipo de
mensagem auto-suficiente, auto-explicativa, englobando suas próprias
razões, que não teria pertinência alguma numa sociedade oral.

Cada uma à sua maneira, a filosofia e a ciência clássicas almejam a
universalidade. Eu formulo a hipótese de que é porque elas não podem
ser separadas do dispositivo de comunicação instaurado pela escrita.
As religiões "universais" (não estou falando apenas dos monoteísmos:
pensemos no Budismo) são todas elas apoiadas em textos. Se eu quiser
converter-me ao Islamismo, posso fazê-lo em Paris, em Nova Iorque ou
na Meca. Mas se eu quiser praticar a religião bororo (supondo-se que
esse projeto tenha um sentido), não tenho outra solução que não ir
viver com os bororos. Os rituais, os mitos, as crenças e os modos de
vida bororo não são "universais", mas sim contextuais ou locais. De
maneira alguma apóiam-se numa relação com os textos escritos.
Evidentemente, essa constatação não implica nenhum julgamento de valor
etnocêntrico: um mito bororo pertence ao patrimônio da humanidade e
pode virtualmente comover qualquer ser pensante. Por outro lado,
religiões particularistas também têm seus textos - a escrita não
determina automaticamente o universal, ela o condiciona (não há
universalidade sem escrita).

Assim como os textos científicos ou filosóficos que supostamente
contêm suas próprias razões, seus próprios fundamentos e trazem
consigo suas condições de interpretação, os grandes textos das
religiões universalistas englobam por construção a fonte de sua
autoridade. Com efeito, a origem da verdade religiosa é a revelação.
Ora, a Tora, os Evangelhos, o Alcorão são a própria revelação ou o
relato autêntico da revelação. O discurso não está mais no fio de uma
tradição cuja autoridade vem do passado, dos ancestrais ou da
evidência partilhada de uma cultura. Somente o texto (a revelação)
fundamenta a verdade, fugindo, assim, de qualquer contexto
condicionante. Graças ao regime de verdade que se apóia num texto-
revelação, as religiões do livro libertam-se da dependência de um meio
particular e tornam-se universais.

Observemos, de passagem, que o «autor» (típico das culturas escritas)
é, originalmente, a fonte da autoridade, enquanto o que o
«intérprete» (figura central das tradições orais) faz é apenas
atualizar ou modular uma autoridade que vem de outro lugar. Graças à
escrita, os autores, demiúrgicos, inventam a autoposição do
verdadeiro.

No universal fundamentado pela escrita, o que deve manter-se
inalterado pelas interpretações, traduções, translações, difusões,
conservações, é o sentido. O significado da mensagem deve ser o mesmo
aqui e acolá, hoje e outrora. Esse universal é indissociável de um
alcance de fechamento semântico. Seu esforço de totalização luta
contra a pluralidade aberta dos contextos atravessados pelas
mensagens, contra a diversidade das comunidades que os fazem circular.
Da invenção da escrita decorrem as exigências muito especiais da
descontextualização dos discursos. Desde esse evento, o domínio
englobante do significado, a pretensão do "tudo", a tentativa de
instaurar o mesmo sentido (ou, para a ciência, a mesma exatidão) em
cada lugar está, para nós, associado ao universal.

Meios de comunicação de massa e totalidade
Os meios de comunicação de massa (imprensa, rádio, cinema, televisão)
seguem, ao menos em sua configuração clássica, a linha cultural do
universal totalizante iniciada pela escrita. Dado que a mensagem
mediática será lida, ouvida, vista por milhares ou milhões de pessoas
mundo afora, é composta de maneira que encontre o «denominador comum»
mental de seus destinatários. Seu alvo são os receptores, no mínimo,
de sua capacidade interpretativa. Não cabe desenvolver aqui tudo
quanto distingue os efeitos culturais da mídia eletrônica dos da
prensa. Só queria ressaltar uma semelhança. Por circular num espaço
desprovido de interação, a mensagem mediática não pode explorar o
contexto particular que envolve o receptor, ignora sua singularidade,
suas aderências sociais, sua microcultura, seu momento e sua situação
especial. Tal dispositivo, ao mesmo tempo redutor e conquistador, é
que fabrica o "público" indiferenciado, a "massa" dos meios de
comunicação de massa. Universalizante por vocação, a mídia totaliza de
maneira frouxa sobre o atrativo emocional e cognitivo mais baixo, para
o «espetáculo» contemporâneo, ou de maneira muito mais violenta, sobre
a propaganda do partido único, para os totalitarismos clássicos do
século XX: fascismo, nazismo e estalinismo. A mídia eletrônica, por
exemplo, o rádio ou a televisão, trazem uma segunda tendência,
complementar da primeira. Paradoxalmente, a descontextualização que eu
acabo de mencionar estabelece outro contexto, holístico, quase que
tribal, porém numa escala maior do que nas sociedades orais.
Interagindo com os outros meios de comunicação, a televisão traz à
tona um plano emocional de existência que reúne os membros da
sociedade numa espécie de macrocontexto flutuante, sem memória e de
rápida evolução. Percebe-se isso mais especialmente nos fenômenos do
"ao vivo" e em geral quando a «atualidade» se torna quente. É preciso
reconhecer a McLuhan o fato de ter sido o primeiro a descrever esse
caráter das sociedades mediáticas. A principal diferença entre o
contexto mediático e o contexto oral é que os telespectadores, embora
emocionalmente implicados na esfera do espetáculo, jamais podem sê-lo
praticamente. Por construção e no plano mediático de existência,
jamais são atores.

A verdadeira ruptura com a pragmática da comunicação estabelecida pela
escrita não pode vir à luz com o rádio ou a televisão, pois esses
instrumentos de difusão em massa não permitem nenhuma verdadeira
reciprocidade, tampouco interações transversais entre os
participantes. Em vez de emergir das interações vivas de uma ou mais
comunidades, o contexto global instaurado pela mídia fica fora do
alcance dos que consomem apenas sua recepção passiva, isolada.

Complexidade dos modos de totalização
Muitas formas culturais derivadas da escrita têm a universalidade por
vocação; porém, cada uma totaliza com base num atrativo diferente: as
religiões universais sobre o sentido, a filosofia (inclusive a
filosofia política) sobre a razão, a ciência sobre a exatidão
reprodutível (os fatos), a mídia sobre uma captação num espetáculo
siderante batizado como "comunicação". Em todos os casos, a
totalização opera-se sobre a identidade do significado. Cada uma à sua
maneira, essas máquinas culturais procuram reproduzir, no plano de
realidade que inventam, uma sorte de coincidência com eles mesmos dos
coletivos que reúnem. O Universal? Uma espécie de aqui e agora virtual
da humanidade. Ora, embora desemboquem numa reunião por um aspecto de
sua ação, tais máquinas de produzir o universal decompõem, por outro
lado, uma multidão de micrototalidades contextuais: paganismos,
opiniões, tradições, saberes empíricos, transmissões comunitárias e
artesanais. Por sua vez, essas destruições de local são imperfeitas,
ambíguas, pois por contragolpe os produtos das máquinas universais são
fagocitados, relocalizados, misturados aos particularismos que eles
gostariam de transcender. Embora o universal e a totalização (a
totalização, isto é, o fechamento semântico, a unidade da razão, a
redução do denominador comum, etc.) tenham sempre estado ligados, sua
conjunção oculta fortes tensões, dolorosas contradições que talvez a
nova ecologia da mídia polarizada pelo ciberespaço permita desvelar.
Essa resolução, digamô-lo com força, não está em absoluto garantida,
nem é automática. A ecologia das técnicas de comunicação propõe, os
atores humanos dispõem. Eles são quem decide em última instância,
deliberadamente ou na semi-inconsciência dos efeitos coletivos, do
universal cultural que juntos estão construindo. E, para isso, devem
ter percebido a possibilidade de novas escolhas.

A cybercultura ou o universal sem totalidade
Com efeito, o maior evento cultural anunciado pela emergência do
ciberespaço é o desatrelamento entre esses dois operadores sociais ou
máquinas abstratas (muito mais do que conceitos!) que a universalidade
e a totalização são. A causa é simples: o ciberespaço dissolve a
pragmática de comunicação que, desde a invenção da escrita, havia
conjuntado o universal e a totalidade. Com efeito, leva-nos de volta a
essa situação anterior a escrita - porém, numa outra escala e em outra
órbita - na medida em que a interconexão e o dinamismo em tempo real
das memórias em linha faz os parceiros da comunicação partilharem
novamente o mesmo contexto, o mesmo imenso hipertexto vivo. Qualquer
que seja a mensagem abordada, ela está conectada com outras mensagens,
com comentários, com gloses em constante evolução, com pessoas que se
interessam por elas, com os fóruns onde são debatidas, aqui e agora.
Qualquer texto é o fragmento que se ignora talvez do hipertexto móvel
que o envelopa, que o conecta com outros textos e serve como mediador
ou meio para uma comunicação recíproca, interativa, ininterrupta. Sob
o regime clássico da escrita, o leitor está condenado a reatualizar
dispendiosamente o contexto, ou então a aceitar o trabalho das
Igrejas, das instituições ou Escolas, obstinadas a ressuscitar e
fechar o sentido. Hoje, porém, tecnicamente e devido à iminente
colocação em rede de todas as máquinas do planeta, quase não existem
mais mensagens "fora de contexto", separadas de uma comunidade ativa.
Virtualmente, todas as mensagens mergulham num banho comunicacional
borbulhante de vida, incluindo as próprias pessoas, e do qual o
ciberespaço vai progressivamente sendo o coração.

Os correios, o telefone, a imprensa, as editoras, as rádios, as
incontáveis redes de televisão formam doravante a franja imperfeita,
os apêndices parciais e diferentes, todos eles de um espaço de
interconexão aberto, animado por comunicações transversais, caótico,
turbilhonante, fractal, movido por processos magmáticos de
inteligência coletiva. É verdade que jamais nos banhamos duas vezes no
mesmo rio informacional, mas a densidade dos vínculos e a velocidade
das circulações são tais que os atores da comunicações não sentem mais
nenhuma grande dificuldade para partilhar o mesmo contexto, ainda que
essa situação seja algo movediça e ocasionalmente confusa.

Utopia minimal e motor primário do crescimento da Internet, a
interconexão generalizada emerge como forma nova do Universal.
Atenção! O processo de interconexão mundial em curso realiza mesmo uma
forma do Universal, mas essa não é a mesma do que com a escrita
estática. Aqui, o Universal deixa de articular-se no fechamento
semântico chamado pela descontextualização. Muito pelo contrário. Esse
Universal não totaliza mais o sentido, mas sim liga pelo contato, pela
interação geral.

O Universal não é o planetário
Dir-se-á, talvez, que não se trata propriamente do Universal, mas do
planetário, do fato geográfico bruto, da extensão das redes de
transporte material e informacional, da constatação técnica do
crescimento exponencial do ciberespaço. Pior ainda, sob o pretexto de
universal, não se tratará apenas do puro e simples "global, o da
"globalização" da economia ou dos mercados financeiros? Está certo que
esse novo Universal contém uma alta dose de global e planetário, mas
ele não se limita a isso. O «Universal por contato» ainda é universal,
no sentido mais profundo, pois ele é indissociável da idéia de
humanidade. Até os mais ferrenhos desprezadores do ciberespaço rendem
homenagem a essa dimensão quando eles lamentam, com razão, que a
maioria esteja excluída ou que a África ocupe tão pouco lugar nele. O
que é que a reivindicação do "acesso para todos" revela? Mostra que a
participação nesse espaço que lega cada ser humano com qualquer outro,
que pode fazer as comunidades comunicarem-se entre si e consigo, que
suprime os monopólios de difusão e autoriza cada um a emitir para quem
estiver interessado ou implicado, esse reivindicação revela que a
participação nesse espaço funda-se num direito e que sua construção se
aparenta com uma espécie de imperativo moral.

Em suma, a cybercultura dá forma a uma nova espécie de Universal: o
Universal sem totalidade. E, repetimos, ainda se trata de Universal,
acompanhado de todas as ressonâncias que se quiser com a filosofia das
luzes, por ele manter uma profunda relação com a idéia de humanidade.
O ciberespaço, com efeito, não gera uma cultura do Universal por estar
de fato em toda a parte, mas sim porque sua forma ou idéia implica
direito à totalidade dos seres humanos.

Quanto mais universal, menos totalizável
Por intermédio dos computadores e das redes, as pessoas mais diversas
podem entrar em contato, apertar a mão no mundo inteiro. Antes do que
se construir sobre a identidade do sentido, o novo universo prova-se
por imersão. Estamos todos no mesmo banho, no mesmo dilúvio de
comunicação. Ou seja, não é mais uma questão de fechamento semântico
ou de totalização.

Uma nova ecologia dos meios de comunicação está organizando-se em
torno da extensão do ciberespaço. Posso agora enunciar seu paradoxo
central: quanto mais universal (extenso, interconectado, interativo),
menos totalizável. Cada conexão suplementar acrescenta mais
heterogeneidade, novas fontes de informação, novas linhas de fuga, de
maneira que o sentido global fica cada vez menos legível, cada vez
mais difícil de circunscrever, de encerrar, de dominar. Esse Universal
dá acesso a um gozo do mundial, à inteligência coletiva em ato da
espécie. Faz-nos participar mais intensamente da humanidade viva, mas
sem que isso seja contraditório, ao contrário, com a multiplicação das
singularidades e a ascensão da desordem.
De novo: quanto mais o Universal se concretizar ou se atualizar, menos
totalizável fica. Existe a tentação de dizer que se trata, enfim, do
verdadeiro Universal, pois ele não se confunde mais com uma dilatação
de local, e, tampouco, com a exportação forçada dos produtos de uma
determinada cultura. Anarquia? Desordem? Não. Tais palavras refletem
apenas a nostalgia do fechamento. Aceitar perder uma certa forma de
domínio, é dar-se uma chance de encontrar o real. O ciberespaço não
está desordenado, mas exprime a diversidade do humano. Que seja
necessário inventar os mapas e os instrumentos de navegação desse novo
oceano, sobre isso cada um pode concordar. Não é necessário, porém,
fixar, estruturar a priori ,engessar uma paisagem fluida e variada por
natureza, uma vontade excessiva de domínio não prende o ciberespaço de
maneira durável. As tentativas de fechamento tornam-se quase
impossíveis ou por demais evidentemente abusivas.

Por que inventar um «Universal sem totalidade», quando já dispomos do
rico conceito de pós-modernidade? É que, precisamente, não se trata da
mesma coisa. A filosofia pós-moderna descreveu bem a dispersão da
totalização. A fábula do progresso linear e garantida não tem mais
vigência, nem na arte, nem na política, nem em campo algum. Ao não
haver mais »um» sentido da história, mas sim uma multidão de pequenas
proposições que lutam pela sua legitimidade, como organizar a
coerência dos eventos, em que tudo é «a vanguarda»? Quem é que está
«na frente»? Quem é que é «progressista»? Em três palavras, e para
retomar a feliz expressão de Lyotard, a pós-modernidade proclama o fim
dos «grandes relatos» totalizantes. A multiplicidade e o emaranhamento
radical das épocas, dos pontos de vista e das legitimidades, traço
distintivo do pós-moderno, vê-se claramente acentuada e encorajada,
aliás, na cybercultura. Mas a filosofia pós-moderna tem confundido o
Universal e a totalização. Seu erro foi o de jogar o bebê do Universal
junto com a água suja da totalidade.

O que é o Universal? É a presença (virtual) para si da humanidade.
Quanto à totalidade, podemos defini-la como o agrupamento estabilizado
do sentido de uma pluralidade (discurso, situação, conjunto de
eventos, etc.). Essa identidade global pode encerrar-se no horizonte
de um processo complexo, resultar do desequilíbrio dinâmico da vida,
emergir das oscilações e contradições do pensamento. Mas qualquer que
seja a complexidade de suas modalidades, a totalidade ainda continua
abaixo do horizonte do mesmo.

Ora, a cybercultura mostra precisamente que existe outra maneira de
instaurar a presença virtual para si da humanidade (o Universal) que
não pela identidade do sentido (a totalidade).
Estará a cybercultura em ruptura com os valores fundadores da
modernidade européia?
Em contraste com a idéia pós-moderna do declínio das idéias das luzes,
afirmo que a cybercultura pode ser considerada como herdeira legítima
(embora distante) do projeto progressista dos filósofos do século
XVIII. Com efeito, ela valoriza a participação em comunidades de
debate e argumentação. Na linha direta das morais da igualdade, ela
incentiva uma maneira de reciprocidade essencial nas relações humanas.
Desenvolveu-se a partir de uma prática assídua dos intercâmbios de
informações e conhecimentos, que os filósofos das luzes consideravam
como o principal motor do progresso. E, se alguma vez tivéssemos sido
modernos (1), a cybercultura não seria pós-moderna, mas estaria
realmente na continuidade dos ideais revolucionários e republicanos de
liberdade, igualdade e fraternidade. Só que, na cybercultura, tais
"valores" encarnam-se em dispositivos técnicos concretos. Na era da
mídia eletrônica, a igualdade se realiza em possibilidade para cada um
emitir para todos; a liberdade se objetiva em softwares de codificação
e em acesso transfronteiriço para múltiplas comunidades virtuais; a
fraternidade, quanto a ela, se converte em interconexão mundial.
Assim, longe de ser resolutamente pós-moderno, o ciberespaço pode
aparecer como uma espécie de materialização técnica dos ideais
modernos. Em particular, a evolução contemporânea da informática
constitui uma surpreendente realização do objetivo marxista de
apropriação dos meios de produção pelos próprios produtores. Hoje em
dia, a "produção" consiste essencialmente em simular, processar
informação, em criar e divulgar mensagens, em adquirir e transmitir
conhecimentos, em coordenar-se em tempo real. Assim sendo, os
computadores pessoais e as redes numéricas colocam efetivamente nas
mãos dos indivíduos as principais ferramentas da atividade econômica.
Mais ainda, se o espetáculo (o sistema mediático), de acordo com os
situacionistas, é o máximo da dominação capitalista (2), o ciberespaço
então está realizando uma verdadeira revolução, pois permite - ou
permitirá, em breve - a cada um dispensar o editor, o produtor, o
transmissor, os intermediários em geral, para dar a conhecer seus
textos, sua música, seu mundo virtual ou qualquer outro produto de sua
mente. Em contraste com a impossibilidade de responder e o isolamento
dos consumidores de televisão, o ciberespaço oferece as condições de
uma comunicação direta, interativa e coletiva.

A realização quase técnica dos ideais da modernidade coloca
imediatamente em evidência seu caráter, não irrisório, mas parcial,
insuficiente. Pois está claro que nem a informática pessoal, nem o
ciberespaço, por mais generalizada que seja a totalidade dos seres
humanos, resolvem com sua mera existência os principais problemas de
vida em sociedade. É verdade que realizam praticamente formas novas de
universalidade, de fraternidade, de estar juntos, de reapropriação
pela base dos instrumentos de produção e comunicação. Mas, no mesmo
movimento, desestabilizam, em alta velocidade e freqüentemente de
maneira violenta, as economias e as sociedades. Ao mesmo tempo em que
arruinam os antigos, participam da criação de novos poderes, menos
visíveis e mais instáveis, mas nem por isso menos virulentos.
A cybercultura aparece como a solução parcial de problemas da época
anterior, embora constitua, por sua vez, um imenso campo de problemas
e conflitos para os quais não se está desenhando ainda nenhuma
perspectiva de resolução global. A relação com o saber, o trabalho e o
emprego amoedam a democracia, o Estado precisa ser reinventado, para
citarmos apenas algumas das formas sociais mais brutalmente
questionadas.

Num sentido, a cybercultura perpetua a grande tradição da cultura
européia. Noutro, ela transmuda o conceito de cultura.

A cybercultura ou a tradição simultânea
Longe de ser uma subcultura dos fanáticos da rede, a cybercultura
exprime uma grande mutação da própria essência da cultura. Conforme a
tese que desenvolvi neste relatório, a chave da cultura do futuro é o
conceito de Universal sem totalidade. Nessa proposição, «o Universal»
significa a presença virtual da humanidade para si. O Universal abriga
o aqui e agora da espécie, seu ponto de encontro, um aqui e agora
paradoxal, sem lugar nem tempo claramente atribuível. Por exemplo, uma
religião universal dirige-se supostamente a todos os homens e os reúne
virtualmente em sua revelação, sua escatologia, seus valores. Da mesma
maneira, a ciência exprime supostamente (e vale por) o progresso
intelectual da totalidade sem homens, sem exclusão. Os cientistas são
os delegados da espécie e os triunfos do conhecimento exato são os da
humanidade em seu conjunto. Da mesma maneira, o horizonte de um
ciberespaço que consideramos universalista é o de interconectar todos
os bípedes falantes e fazê-los participar da inteligência coletiva da
espécie no seio de um meio onipresente. De maneira totalmente
diferente, a ciência e as religiões universais abrem lugares virtuais
onde a humanidade encontra a si mesma. Embora exercendo uma função
análoga, o ciberespaço reúne as pessoas de maneira muito menos
«virtual» do que a ciência ou as grandes religiões. A atividade
científica implica cada um e dirige-se a todos pelo intermédio de um
sujeito transcendental do conhecimento, no qual cada membro da espécie
participa. A religião agrupa por transcendência. Para sua operação em
que põe o homem em presença de si, ao contrário, o ciberespaço lança
mão de uma tecnologia real, imanente, ao alcance da mão.

Agora, o que é a totalidade? Trata-se, na minha linguagem, da unidade
estabilizada do sentido de uma diversidade. Quer essa unidade ou
identidade seja orgânica, dialética, ou complexa, antes do que simples
ou mecânica, não muda em nada a questão; trata-se ainda de totalidade,
isto é, de um fechamento semântico englobante. Ora, a cybercultura
inventa outra maneira de fazer advir a presença virtual para si do
humano somente impondo uma unidade do sentido. Essa é a principal tese
defendida aqui.

À luz das categorias que acabo de expor, podemos distinguir três
grandes etapas da história:
a das pequenas sociedades fechadas, de cultura oral, que viviam uma
totalidade sem Universal; a das sociedades «civilizadas», imperiais,
que usam a escrita, que fizeram surgir um Universal totalizante e, por
fim, a da cybercultura, que corresponde à mundialização concreta das
sociedades, que inventa um Universal sem totalidade.

Ressaltemos que os estágios dois e três não fazem desaparecer os que
os antecedem, mas relativizam-nos ao acrescentar dimensões
suplementares.

Numa primeira época, a humanidade é composta de uma multidão de
totalidades culturais dinâmicas ou de «tradições», mentalmente
fechadas sobre si, o que evidentemente não impede nem os encontros,
nem as influências. «Os homens» por excelência são os membros da
tribo. São raras as proposições das culturas arcaicas que supostamente
concernem a todos os seres humanos sem exceção. Nem as leis (nenhum
«direito humano»), nem os deuses (nenhuma religião universal), nem os
conhecimentos (nenhum procedimento de experimentação ou raciocínio
reprodutível em toda a parte), nem as técnicas (nenhuma rede, nem
padrões mundiais) são universais por construção.

É verdade que o registro estava ausente. Mas a transmissão cíclica de
geração para geração garantia a perenidade no tempo. As capacidades da
memória humana limitavam, no entanto, o tamanho do tesouro cultural às
lembranças e aos saberes de um grupo de idosos. Totalidades vivas,
porém fechadas, sem Universal.

Numa segunda época, «civilizada», as condições de comunicação
instauradas pela escrita levam à descoberta prática da universalidade.
A escrita, a seguir o impresso, trazem uma possibilidade de extensão
indefinida da memória social. A abertura universalista efetua-se
paralelamente no tempo e no espaço. O Universal totalizante traduz a
inflação dos sinais e a fixação do sentido, a conquista dos
territórios e a sujeição dos homens. O primeiro Universal é imperial,
estatal. Impõe-se sobre a diversidade das culturas. Tende a cavar uma
camada do ser em toda a parte e sempre idêntica, pretensamente
independente de nós (assim como o universo criado pela ciência) ou
apegada a tal definição abstrata (os direitos humanos). Sim, nossa
espécie existirá futuramente como tal. Encontra-se, comunga dentro de
estranhos espaços virtuais: a revelação, o fim dos tempos, a razão, a
ciência, o direito... Do Estado às religiões do livro, das religiões às
redes da tecnociência, a universalidade afirma-se e corporifica-se,
porém, quase sempre pela totalização, pela extensão e pela manutenção
de um sentido único.

Ora, a cybercultura, terceiro estágio da evolução, mantém a
universalidade ao mesmo tempo em que dissolve a totalidade.
Corresponde ao momento em que nossa espécie, com a planetarização
econômica, com a densificação das redes de comunicação e transporte,
tende a formar apenas uma comunidade mundial, mesmo que essa
comunidade seja - e como é! - desigual e conflituosa. Única de seu
gênero no reino animal, a humanidade reúne toda a sua espécie numa
única sociedade. Mas, ao mesmo tempo e paradoxalmente, a unidade do
sentido surge, talvez porque começa a realizar-se praticamente, pelo
contato e pela interação efetiva. Noé está voltando feito multidão.
Flotilhas espalhadas e dançantes de arcas que abrigam a precariedade
de um sentido problemático, reflexos confusos de um tudo fugidio,
evanescente, conectadas com o universo, as comunidades virtuais
constroem e dissolvem constantemente suas micrototalidades dinâmicas,
emergentes, submersas, que derivam entre as correntes cheias de
turbilhões do novo dilúvio.

As tradições se expandiam na diacronia da história. Os intérpretes,
operadores do tempo, transmissores das linhas de evolução, pontes
entre o futuro e o passado, reatualizavam a memória, transmitiam e
inventavam no mesmo movimento as idéias e as formas. As grandes
tradições intelectuais ou religiosas construíram, com paciência,
bibliotecas-hipertextos, às quais cada nova geração acrescentava seus
nós e laços. Inteligências coletivas sedimentadas, a Igreja ou a
universidade costuravam os séculos um com o outro. O Talmude gera uma
profusão de comentários nos quais os sábios de ontem dialogam com os
de anteontem.

Longe de desarticular o motivo da «tradição», a cybercultura inclina-o
num ângulo de 45º, para arranjá-lo na ideal sincronia do ciberespaço.
A cybercultura encarna a forma horizontal, simultânea, puramente
espacial da transmissão. Só liga no tempo como acréscimo. Sua
principal operação está em conectar no espaço, construir e estender os
rizomas do sentido.
Eis o ciberespaço, o pulular de suas comunidades, a ramificação
entrelaçada de suas obras, como se toda a memória dos homens se
abrisse no instante: um imenso ato de inteligência coletiva síncrona,
convergindo para o presente, raio silencioso, divergente, explodindo
como uma cabeleira de neurônios.

(1) Ver a obra de Bruno Latour, Nous n'avons jamais été modernes. La
Découverte, Paris, 1991.
(2) Ver La société du spectacle de Guy Debord, primeira edição: Buchet-
Chastel, Paris, 1967

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