Psicanálise, Psicoterapias e Medicação Psiquiátrica

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Hannah BLUE

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15 de jan. de 2008, 22:32:1015/01/2008
para Midiateca da HannaH
Psicanálise, Psicoterapias e Medicação Psiquiátrica
João Teixeira


O pano de fundo sobre o qual se ergue a psicanálise e todas as outras
formas de psicoterapia contemporâneas é um problema não resolvido: a
questão das relações entre mente e cérebro. Este é o problema central
da filosofia da psicologia e de uma nova disciplina que também discute
os fundamentos do saber psicológico, a chamada filosofia da mente, que
se consolidou nos últimos cinqüenta anos.

A questão das relações entre mente e cérebro é saber se o mental é um
produto da atividade cerebral ou se o cérebro é apenas o hospedeiro
biológico daquilo que chamamos de mente. Uma questão que divide os
filósofos em materialistas, de um lado, e dualistas de outro. Mas que
divide também os que praticam as ciências "psi", e talvez de uma
maneira mais radical, pois neste caso encontramos uma cisão entre
psicólogos, de um lado e psiquiatras de outro. Hoje em dia, a maioria
dos psiquiatras é materialista e pratica a biopsiquiatria,
prescrevendo medicação para transtornos mentais, na medida em que eles
acreditam que o pensamento e as emoções são variações da bioquímica
cerebral. Já para os psicólogos estaria reservada uma tarefa que se
julga ser mais leve: a psicoterapia, ou a conversa de consultório, a
"talking cure". Estaríamos encontrando, aqui, uma reprodução da cisão
entre materialistas e dualistas.

Esta cisão torna-se cada vez mais nítida a medida em que a
biopsiquiatria avança na produção de novas substâncias químicas e que
cada vez mais se vislumbra que a felicidade e o conforto psíquico
estão se tornando uma conquista farmacêutica. Assim tem ocorrido com o
PROZAC e com novas drogas para controle de outros transtornos mentais.
O que mais intriga acerca dessas drogas não é apenas sua capacidade de
alterar nossa disposição em relação ao ambiente que nos cerca como
também nossos próprios pensamentos que estariam sendo quimicamente
alterados como é o caso, por exemplo, da ideação suicida nos pacientes
que tomam anti-depressivos. Isto quer dizer que o sucesso estatístico
da biopsiquiatria seria a confirmação inegável da hipótese
materialista: é o cérebro e sua bioquímica que produz e controla o
mental. A rapidez dos efeitos da medicação seria a prova insuperável
de que a biopsiquiatria é muito mais eficaz do que longas, penosas e
custosas psicoterapias.

Infelizmente os psicólogos têm reagido muito mal a estas novidades que
vieram com a década do cérebro. Sua primeira reação foi condenar a
abordagem biopsiquiátrica como sendo algo ideológico, um tipo de
organicismo intolerável. Arautos desta condenação encontramos em
textos de psicanalistas renomados, como é o caso de Elizabeth
Roudinesco, que comparou a biopsiquiatria "a substituição da camisa-de-
força e os tratamentos de choque pela redoma medicamentosa". Contudo,
a condenação ideológica tem sido insuficiente para superar a busca
pelo conforto psíquico mais rápido e mais barato.

Os psicanalistas se sentiram particularmente acuados pelo aparecimento
das drogas psiquiátricas. Contra estas, vários psicanalistas nada mais
fizeram do que bater o pé com indignação, o que tem feito a
psicanálise cair na esparrela da cultura que se reproduz de maneira
idêntica, da mesma maneira que uma língua que não se fala mais, que
não se inventa mais, que se quer preservar na sua pureza sem que se a
deixe contaminar por outras línguas tornando-se uma língua morta. Por
isso, apesar de muitas tentativas de revisão e aprofundamento do
discurso freudiano a psicanálise acabou se tornando um gueto cultural
no século XX, um gueto que enfrenta uma condenação à morte por não se
deixar transformar. Um psicanalista ortodoxo praticamente não tem o
que dizer acerca de remédios psiquiátricos: a psicanálise não fala do
problema mente-cérebro por considerar impossível uma correlação entre
os níveis sub-pessoal e pessoal do discurso sobre o psiquismo. A
neurociência de Freud, aos olhos contemporâneos, pode no máximo ser
vista como uma metáfora interessante.

Para os terapeutas cognitivo-comportamentais o uso de drogas
psiquiátricas é encarado com menos aversão, embora ainda cause um
certo desconforto. Se para outras abordagens a psicoterapia se situa
no nível de "arrumação das idéias" e se o psicoterapeuta influi
causalmente apenas nas relações entre estas - e daí o fato de não
saber como acomodar drogas psiquiátricas nos seus paradigmas - não é
assim que o terapeuta comportamental concebe sua atuação. Para este, o
cenário psicoterapêutico tem uma dimensão essencialmente
comportamental. A relação entre terapeuta e paciente é uma relação
mediada por comportamentos verbais. São estes que afetam mutuamente os
cérebros daqueles envolvidos na relação terapêutica. Sabemos, hoje em
dia, que comportamentos verbais freqüentemente funcionam como
estímulos que especificam contingências produzidas pelo comportamento
verbal da própria pessoa. E que, ao fazê-lo, o sujeito, através de sua
própria narração, modifica seu comportamento e seu psiquismo.

A suspeita com relação ao uso de drogas psiquiátricas recai, para esta
abordagem, no fato de que estas ofuscam a cognição do ambiente no qual
o paciente age, trazendo um falso e provisório conforto que impede que
ele modifique as contingências às quais ele reage. Esta condenação só
não se torna mais explícita porque terapeutas cognitivos
comportamentais fazem uma espécie de profissão de fé materialista, o
que, num certo sentido, faz com que eles inclinem suas simpatias em
direção ao materialismo.

Contudo, a abordagem comportamental parece ser incompleta. É preciso
saber ainda porque determinados comportamentos verbais e não outros
levam a uma modificação do psiquismo. Ou seja, o que é verbalizado num
determinado comportamento ou num determinado ato de fala pode ser
decisivo para uma modificação do psiquismo e posteriormente do
comportamento - e saber porque esse conteúdo específico pode ter esse
poder causal ainda precisa ser explicado. Retornamos então ao problema
inicial: que tipo de papel devemos atribuir às psicoterapias na
modificação do psiquismo?

O problema com as psicoterapias é que os psicólogos parecem ter caído
na cilada da psicologia popular ao concebê-las como sendo só um tipo
de conversa, uma "talking cure". Desta perspectiva psicoterapia é
perfumaria e certamente teria de ser colocada numa posição de
inferioridade em relação a biopsiquiatria. Pior: os próprios
psicólogos parecem estar cada vez mais engolindo este sapo. Um sapo
enorme, reforçado pelo pré-juízo corrente de que o psicólogo atua
somente sobre o mental e que este é uma espécie de "software"
independente do cérebro. O que não se percebe, contudo, é que a
psicologia popular é essencialmente contraditória, e que se
habitualmente consideramos o mental e o verbal como sendo causalmente
inócuos, ao mesmo tempo o consideramos tão poderoso a ponto de causar-
nos doenças. Ou seja, o problema da filosofia da mente - e o problema
da psicologia - não é apenas de saber como o cérebro pode produzir a
mente, mas como esta pode, por sua vez, afetar o cérebro. Não é a toa
que mesmo neurobiólogos famosos, como Antonio Damásio tenham dito que
"a perda de alguém que se ama profundamente, leva a uma depressão do
sistema imunológico a ponto de os indivíduos se tornarem mais
propensos a infecções e, em conseqüência direta ou indireta, mais
suscetíveis a desenvolver determinados tipos de câncer. Pode-se morrer
de desgosto, tal qual na poesia". Este é o chamado "problema da
causação mental" que tem ganhado cada vez mais destaque na discussão
contemporânea das relações entre mente e cérebro.
No caso das psicoterapias já se avançou muito no sentido de explicitar
como elas podem afetar o cérebro. Estudos recentes mostraram que a
psicoterapia altera de maneira significativa o funcionamento e as
conexões cerebrais. Constata-se uma mudança no fluxo sanguíneo do
sistema límbico em pacientes submetidos à psicoterapia e que, em
alguns casos quando esta é associada à medicação (por exemplo, a
venlafaxina ou Efexor) o aumento de fluxo sanguíneo chega também aos
gânglios basais. A ressonância magnética funcional e a tomografia
axial mostram que, no caso de pacientes que sofrem de depressão, a
terapia cognitivo-comportamental opera mudanças no córtex frontal, no
córtex cingulado anterior e no hipocampo. Uma reorganização da
conectividade cerebral ocorre após a psicoterapia.

Em outras palavras, o psicoterapeuta, tanto quanto o psiquiatra, trata
do cérebro e não da alma. E quando falamos de cérebro, queremos aí
incluir também as angústias existenciais, pois estas não chegam a
transcende-lo. Opor estas duas atividades como sucedâneas da oposição
entre materialismo e dualismo é um equívoco, pois elas, na verdade,
convergem. Podemos agora entender porque não há contradição entre o
Freud da "talking cure" e o mesmo Freud que nos seus escritos de
maturidade defendeu abertamente o sonho de tratar as angústias e
outros distúrbios através de medicação, ao afirmar, no "Esboço de
Psicanálise", que "o futuro talvez nos ensine a agir diretamente com a
ajuda de algumas substâncias químicas, sobre as quantidades de energia
e sua distribuição no aparelho psíquico [...] Por ora dispomos somente
da técnica psicanalítica".

O estilo do psiquiatra é o da grande indústria, o do psicoterapeuta,
do artesanato. Na grande maioria dos casos é preciso utilizar ambos.
Grande indústria e artesanato diferem quanto a método, mas convergem
quanto a finalidade. Hoje em dia, nas sociedades cada vez mais
pragmáticas, o artesanal tende a ser deixado de lado, tornando-se no
máximo curiosidade folclórica. Isto quer dizer que ninguém mais está
disposto a suportar dores psíquicas evitáveis com medicação. Mas, por
outro lado, há aquelas que, como peças difíceis de modelar, que só
podem ser esculpidas por um artesão.


Mente, Cérebro e Consciência: João de Fernandes Teixeira é professor
no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Carlos.
Autor de diversos livros na área de filosofia da mente e ciência
cognitiva, dentre os quais destacam-se "Mente, Cérebro e
Cognição" (Vozes, 2000), "Filosofia e Ciência Cognitiva" (Vozes, 2004)
e "Filosofia da Mente: neurociência, cognição e
comportamento" (Claraluz, 2005).

Fonte: http://www.redepsi.com.br/portal/modules/soapbox/article.php?articleID=82
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