LINGUAGEM É MIMETISMO
* João Teixeira
Nietzsche afirmou, certa vez, no seu texto sobre "A verdade e a
mentira no sentido extra-moral" (1873) que a linguagem humana surgiu
do tédio que os homens primitivos sentiam ao se reunir a noite, depois
de caçar e procurar por alimentos.
Reunidos em volta de grandes fogueiras para espantar o frio, após dias
extenuantes de caça e coleta, os homens teriam inventado a linguagem.
A linguagem teria nascido do tédio e do convívio...No começo seria o
prazer de experimentar o gesto separadamente do som. (Talvez por isto
para certos povos falar sem gesticular seja percebido como prova de
superioridade. Afinal, os primatas não podiam gesticular sem emitir
sons).
Outras hipóteses sugerem que a linguagem surgiu para enganar. Temos
aqui a célebre parábola do filósofo americano John McDowell, da qual
já me servi duas vezes em livros meus. Segundo este autor há pássaros
que emitem um som quando um predador é avistado. Este som é emitido
para avisar os outros pássaros de seu bando que o perigo está próximo.
Após a repetição deste comportamento sucessivas vezes, os outros
pássaros passaram a fugir mesmo quando não avistavam o predador.
Suponhamos agora que um pássaro emita esse som quando algum alimento é
percebido, mas nenhum predador está se aproximando. O pássaro que
emitiu o som pode se apossar sozinho da comida, pois o som fez com que
o resto do bando fugisse imediatamente.
Este exemplo de McDowell mostra-nos como a dissociação entre
informação, sinal, e comportamento tem um papel evolucionário
fundamental na sobrevivência dos organismos. A partir dela pode-se
imaginar o aparecimento de uma proto-linguagem, que poderá
eventualmente evoluir para uma linguagem mais complexa, como aquela
dos seres humanos, que os coloca num nicho privilegiado no processo
evolucionário.
Mas como teria evoluído essa capacidade de enganar que já encontramos
nas proto-linguagens? Uma hipótese interessante é a de que o
comportamento lingüístico - mais básico e mais importante do que a
multiplicidade dos códigos que se sucederam à linguagem natural -
surgiu como uma variante do comportamento mimético. Através da
linguagem criamos simulacros de situações e de ações e com isto
visamos, freqüentemente, manipular os comportamentos de outros seres
humanos. Através dela, abrimos também a possibilidade de não parecer o
que somos - que nada mais é do que uma estratégia de mimetismo.
A linguagem seria a apresentação de um simulacro, uma espécie de
imitação instantânea no plano virtual de uma situação ou
comportamento. É através dessa imitação que esperamos que os outros
nos imitem e, para isto, recorremos às vezes até a representação
virtual através de gestos. (Estes nos lembram sempre da base pré-
lingüística sobre a qual se apóia a linguagem). Um simulacro é uma
representação, ou melhor, uma re-apresentação contínua que funciona
como uma máquina de sedução. O simulacro não precisa ser
necessariamente para mentir, pode, ao contrário, ser usado para nos
convencer de uma proposição verdadeira.
O importante nesta história é que o mimetismo aumenta as chances de
sobrevivência de um animal diante de um possível predador - ele é uma
aquisição evolucionária que aumenta a adaptabilidade de um organismo
ao seu meio. A linguagem aparece como tentativa de recobrir nosso
órgão mais exposto ao mundo, além da pele: o psiquismo.
Da mesma maneira que o camaleão, que assume várias formas, assumo
instantaneamente uma forma, faço uma mimese instantânea que pode visar
não apenas enganar, mas induzir no outro um determinado comportamento.
Através da linguagem mudo continuamente o modo como me apresento aos
outros. Meu comportamento lingüístico influi sobre mim mesmo, mudando-
me o tempo todo.
Tornarmo-nos camaleônicos é uma exaptação da função primitiva da
linguagem que era comunicar; e foi essa exaptação que gerou o
comportamento verbal. (Exaptação
é o recrutamento de estruturas e mecanismos durante eventos
evolucionários para que venham a desempenhar uma função distinta
daquela à qual a estrutura esteve associada até momento).
Nossa linguagem muito pouco tem a ver com a descrição de estados do
mundo e sim como eles são apreendidos por nós. A referência não é o a
função primeira da linguagem. Ela só o foi primitivamente, e neste
ponto parece que a filosofia da linguagem se perdeu numa grande
confusão platônica - só os platonistas poderiam achar que a nomes e
palavras sempre há de corresponder alguma coisa. (Se referirem, é mais
provável que seja a estados internos produzidos pela percepção do que
àquilo que a percepção desvela). Desta função inicial de referir
conservamos ainda alguns aspectos tais como, por exemplo, fofocar, que
nada mais é do que uma elaboração daquilo que o pássaro da parábola de
McDowell faz para enganar seus companheiros de bando.
O aspecto mais interessante da linguagem é que ela não nos aparece, a
primeira vista, como sendo um comportamento. É nesse sentido que ela é
um comportamento encoberto, mas não apenas no sentido de ocorrer no
interior de nossas cabeças: é um comportamento disfarçado, que se quer
passar como sendo causalmente inerte, como é o caso típico da
"conversa a toa" ou do falar puro e simples. Não a concebemos,
normalmente, como sendo um comportamento, apesar de nela estar
envolvido o movimento muscular, da boca, da garganta e das cordas
vocais. Ao relatar uma situação, por aqueles segundos, eu a mimetizo
com o uso de palavras e, com isto tento influir no comportamento
daqueles que estão a minha volta, mas o mais importante, talvez seja
que talvez eles não percebam que o comportamento mimético que estou
fazendo visa seduzi-los ou induzi-los a algo.
O disfarce mais importante desse comportamento é precisamente o fato
de ele não se apresentar como um comportamento ao observador comum, a
não ser quando a percepção dos movimentos musculares que acompanham a
fala, torna-se inevitável em casos extremos, por exemplo, quando
gritamos. No gritar os efeitos do comportamento lingüístico geralmente
tornam-se aparentes à observação e são esses efeitos que nos remetem à
percepção de um comportamento. Mas normalmente o comportamento
lingüístico - o falar - não se apresenta como um comportamento, ou não
o classificamos como tal. Ele é encoberto no sentido de ser um
comportamento disfarçado e isto faz parte de sua estratégia mimética.
Nossa atenção concentra-se menos na ocorrência do comportamento verbal
do que na recepção da informação contida na fala. Da mesma maneira
que, quando lemos, não enxergamos letras, enxergamos o que as palavras
e sentenças nos dizem. Da mesma maneira, estamos tão imersos na nossa
linguagem que não podemos ouvir nosso próprio sotaque, ou seja, que
nosso falar tem um ritmo que só percebemos quando escutamos uma língua
desconhecida, que nos soa apenas como um matraquear inquieto.
Nesta acepção específica, falar é um comportamento feito de tal
maneira que não percebamos que estamos agindo sobre os outros e vice-
versa, isto é que outros estão agindo sobre nós. Ou nos induzindo a
imitá-los. É um comportamento cujo disfarce é apresentar-se como uma
espécie de não-ação, de "não-comportamento".
É preciso esconder sua eficácia para que ele se torne eficaz. É por
isso que em nossa cultura, ao falar ou à palavra falada se dá menos
importância do que à palavra escrita. Da mesma maneira que temos como
uma espécie de pressuposto que o que ocorre na nossa cabeça, o
pensamento, é causalmente inerte, que só pode influenciar o meio
ambiente se expressado na forma de alguma ação. Tenta-se com isso
fazer com que esqueçamos facilmente da dimensão pragmática da
linguagem e de que ela é, além disso, um conjunto de atos ilocutórios,
ou seja, de atos mentais (ou comportamentos encobertos, se assim
quisermos chamá-los).
Essa atividade camaleônica pode nos colocar numa situação de
superioridade sobre os outros membros da tribo. Uma superioridade que
os membros de uma determinada comunidade lingüística tentam ganhar
sobre os outros. Mas cujo começo é, na verdade, o próprio mito da
torre de Babel, pelo qual os grupos humanos se dividiram, para tentar
ganhar superioridade sobre outros grupos, criando códigos exclusivos
que impediriam o acesso à informação veiculada pela linguagem.
Assim, se Nietzsche estava certo, do tédio nasceu a linguagem e com
esta a possibilidade de enganar e de dividir os humanos. A linguagem
se sofisticou ao longo da evolução, levando o cérebro a selecionar
circuitos que permitiram o desenvolvimento da sintaxe. E depois veio a
etapa na qual o comportamento lingüístico a usa predominantemente como
uma pele de camaleão - o enganar sofisticado que cria castelos no ar e
faz com que eu possa parecer o que não sou.
Mas será o comportamento lingüístico fenômeno biológico e, como tal
único na evolução? A partir disto não seria então razoável a hipótese
de que haveria uma sintaxe universal da qual todas as outras vieram?
Esta é uma questão tão difícil de responder quanto tentar saber a
origem da linguagem. O paradoxo é que, qualquer coisa que digamos
acerca da linguagem, o fazemos de dentro da própria linguagem e a
partir dela. Por exemplo, seria uma hipótese semiótica interessante
afirmar que a sintaxe universal ou nosso dispositivo primário de
simbolização deve surgir da combinatória do DNA. Mas nunca saberemos
se é a sintaxe universal que emergiu do DNA ou se é a nossa linguagem
que enxerga uma sintaxe no seqüenciamento do DNA. Isso nos condena a
uma circularidade inexorável onde o comportamento lingüístico estaria
sempre tentando se explicar a si mesmo. Encontramos aqui o mito do
Oroborus, ou da serpente que devora sua própria cauda - um mito que
estará sempre presente na filosofia da psicologia.
Wittgenstein (Tractatus, 4.002) sugeriu que a linguagem veda o
pensamento, da mesma maneira que uma roupagem não deixa conhecer a
forma do corpo. Os psicólogos darwinistas sugeriram que essa roupagem
pode ser um disfarce útil. Mas, talvez, o mais interessante da
evolução da linguagem foi ela ter influído retroativamente sobre o
pensamento, criando-nos, por exemplo, a ilusão do infinito. É bem
provável que tal ilusão tenha surgido por acreditarmos que podemos
formular um número de sentenças infinito, e, com isto, tenhamos
passado a acreditar que este existe.
Mente, Cérebro e Consciência: João de Fernandes Teixeira é professor
no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Carlos.
Autor de diversos livros na área de filosofia da mente e ciência
cognitiva, dentre os quais destacam-se "Mente, Cérebro e
Cognição" (Vozes, 2000), "Filosofia e Ciência Cognitiva" (Vozes, 2004)
e "Filosofia da Mente: neurociência, cognição e
comportamento" (Claraluz, 2005).
Fonte:
http://www.redepsi.com.br/portal/modules/soapbox/article.php?articleID=57