Antonin Artaud - Escritos de um Louco

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Hannah BLUE

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Nov 11, 2007, 12:06:12 AM11/11/07
to Midiateca da HannaH
Antonin Artaud - Escritos de um Louco


Por Marco Antonio Jeronimo
cópia de um texto de Artaud, morto em 1948
retrata mais ou menos fielmente o que hoje vivemos (colonização
cultural e necessidade de levante popular)

Antonin Artaud


Escritos de um louco
Antonin Artaud

Nota Biográfica

Maldito, marginalizado e incompreendido enquanto viveu, encarnação
máxima do gênio romântico, da imagem do artista iluminado e louco,
Artaud passou a ser reconhecido depois da sua morte um dos mais
mercantes e inovadores criadores do nosso século. Tudo o que, aos
olhos dos seus contemporâneos pareceu mero delírio e sintoma de
loucura, agora é referência obrigatória para as mais avançadas
correntes de pensamento crítico e criação artística nas suas várias
manifestações: teatro, arte de vanguarda e criações experimentais,
manifestações coletivas e espontâneas, poesia, lingüística e
semiologia, psicanálise e antipsiquiatria, cultura e contracultura.
Antonin Marie-Joseph Artaud nasceu em Marselha a 4 de setembro de
1896, filho de um empresário de transportes marítimos e descendente de
gregos tanto pelo lado materno como paterno (a esposa do seu avô
paterno que também era tia da sua mãe). A influência familiar grega
também é cultural, refletindo-se na preferência de Artaud por nomes de
sonoridade greco-oriental, inclusive nas suas "glossolalias?, as
seqüências de palavras sem sentido dos seus últimos poemas. Outro tema
constante na sua obra, a fascinação pelo incesto, também teve a ver
com seu ambiente familiar, inclusive a trágica e prematura morte da
sua irmã, Germaine, e seu relacionamento com um pai autoritário. (O
incesto é tema da sua peça Cenci e está presente em outros textos,
como o elogio a Pity She Is a Whore, de Ford, transcrito na presente
edição, quanto ao relacionamento com o pai, é mencionado no texto
sobre Surrealismo e Revolução, também incluído nesta antologia).
Durante seu período de internamento mais prolongado (1937/46), Artaud
assinava cartas com o sobrenome materno (Nalpas) e afirmava que sua
irmã havia sido assassinada.
Desde criança, Artaud teve sérios problemas de saúde, inclusive
neurológicos. Consta que sofreu de meningite aos cinco anos. Teve
convulsões na adolescência e seu primeiro internamento em sanatório
ocorreu aos 19 anos, passando por sucessivos tratamentos e pelas mãos
de vários psiquiatras e psicanalistas enquanto viveu. Aos 24 anos,
começa a tomar láudano, uma tintura de ópio, para aliviar suas dores
de cabeça, tomando-se dependente.
Chegando a Paris em 1920, Artaud liga-se a setores avançados e
atuantes da vida cultural francesa, apresentado por seu tio que também
era produtor teatral e pelo Dr. Toulouse, seu psiquiatra e também um
intelectual bastante ativo. Consegue bons papéis como ator em
companhias como a de Charles Dullin, Georges Pitoëff e Lugné-Poe,
expoentes do melhor teatro de vanguarda da época. Entre outros papéis,
foi o Tirésias na Antigone de Cocteau, uma montagem com cenários de
Picasso, figurinos de Coco Chanel, na qual
contracena com Génica Athanasiou, com quem teve prolongada relação
amorosa.
Em 1924, passa a dedicar-se também ao cinema, trabalhando com alguns
dos principais diretores da época: Claude Autant-Lara, Abel Gance,
Marcel Herbier, Leon Poirier, Pabst e Fritz Lang. Seus papéis de maior
destaque foram o monge apaixonado pela Joana D?Arc de Dreyer (1928),
Danton, no Napoléon de Abel Gance (1927), e Savonarola na Lucrécia
Bórgia, também de Gance (1934). No entanto, encarava o trabalho em
cinema como ganha-pão, como meio de contornar suas constantes
dificuldades econômicas, e ele lhe tomava um tempo que preferiria
dedicar à encenação teatral. Mesmo assim, escreveu sinopses e
roteiros, inclusive o de La Coquille et le Clergyman, realizado (e
deturpado) por Germaine Dullac: seria uma obra cinematográfica
precursora e puramente surrealista, a ponto de Artaud que L?Âge D'Or e
outros trabalhos do gênero eram diluições na mesma trilha. Está claro,
todavia, que Artaud fazia restrições à mediação e ao conseqüente
distanciamento tanto no cinema como no rádio, preferindo o contato
direto propiciado pelo teatro.
Como escritor Artaud produziu uma obra imensa: são 16 volumes pela
edição da Gallimard, que ainda assim é incompleta, já que até hoje
continuam aparecendo inéditos seus. Aliás, a história da edição da sua
obra completa é caótica, com divergências entre a família do autor, os
organizadores da obra e outros detentores de textos, alguns empenhando-
se na divulgação do maior número possível de textos e outros
procurando retê-los. Tanto é assim que o plano editorial da Gallimard
foi refeito varias vezes, programando-se novos volumes e acrescentando-
se suplementos aos já editados. Contribui para isso a multiplicidade
da própria obra de Artaud: são poemas, cartas, textos de palestras,
ensaios, artigos, manifestos, narrativas, traduções e adaptações,
peças de teatro, entrevistas e depoimentos, roteiros, sinopses de
cinema, etc. Artaud considerava-se, em primeira instância, um poeta
(ver as Cartas de Rodez da presente edição). No entanto, uma das
coisas menos presentes na sua obra são poesias, entendidas como um
gênero literário diferenciado, semelhante produção é restrita,
basicamente, aos seus escritos de juventude.
A forma de expressão preferida de Artaud eram as cartas. Ele só
conseguia escrever apaixonadamente e dirigindo-se a algum
interlocutor. Tanto é que, em algumas das suas principais obras
(inclusive Le Thêatre et son Double e Les Tarahumaras), as cartas
constam da edição final ( não só dos volumes da obra, mas também das
edições avulsas e livros de bolso ), bem como apontamentos e versões
posteriores dos textos. Artaud contraria a noção tradicional de obra:
num romancista ou num poeta, por exemplo, temos o corpo da obra, o
principal, constituído pelos romances ou pelos poemas, e o restante, a
sua complementação: cartas, rascunhos, esboços, etc, de interesse para
o biógrafo ou o pesquisador especializado. Em Artaud, não, tudo é
obra, tudo tem literariedade e apresenta interesse, desde. os textos
mais acabados, mais próximos de algo com começo, meio e fim (como
Heliogábalo), até as cartas, os
fragmentos, as versões e até os apontamentos de cartas. Isso porque
Artaud não buscava uma transcendência dada pela permanência da obra,
pela sua inscrição e codificação nos anais da literatura, mas sim pela
sua efetividade, pela expressão das suas idéias e conseqüente
transformação em algo que as ultrapassasse e se inscrevesse, não na
história da literatura, mas sim no real, na História como totalidade.
Poeta de dicção baudelairiana simbolista no começo, Artaud queimou
seus escritos de juventude e renegou seu primeiro livro publicado, Le
Tric-Trac du Ciel, de 1923 (um opúsculo de tiragem reduzida e feita
artesanalmente, bem na linha, assim como várias outras publicações
suas, do que hoje se convencionou chamar de edições ?marginais? ou ?
independentes?). Segue-se a publicação da sua correspondência com
Jacques Rivière (1924), um episódio literariamente notável: Rivière,
então diretor da ?Nouvelle Revue Française?, recusara seus poemas para
publicação, passaram a corresponder-se e Rivière acabou recomendando a
publicação das cartas, nas quais Artaud fala do seu conflito com o
pensamento e da sua dificuldade para expressar-se, já no estilo
autoconfessional e de depoimento tão caracteristicamente seu. Depois
vieram L?Ombilic des Limbes e Le Pèse-Nerfs, de 1925 e L?Art et la
Mort, de 1929, coletâneas de textos do seu período surrealista,
reunindo cartas, manifestos, artigos e prosa poética.
Artaud participou do movimento surrealista de 1924 até 1926, ativa e
assiduamente. Editou o nº 3 do La Révolution Surréaliste (no qual
saíram as cartas-manifesto incluídas na presente edição) e dirigiu o
Bureau de Recherches Surréalistes. Rompe com os surrealistas no
primeiro grande ?racha? desse movimento, saindo junto com Desnos,
Soupault, Vitrac e outros, quando foi decidida a adesão do surrealismo
ao marxismo e ao PC. A ruptura foi polêmica, com trocas de insultos e
acusações, como pode ser visto em A La Grande Nuit ou Le Bluff
Surréaliste de Artaud (que é uma resposta ao manifesto surrealista Au
Grand Jour) e no Segundo Manifesto do Surrealismo de Breton. As
acusações e críticas foram posteriormente revistas (a propósito, ver a
palestra de Artaud sobre Surrealismo e Revolução, incluída na presente
edição) e, a partir de 1936, Artaud e Breton voltaram a corresponder-
se até o fim da vida de Artaud. Os surrealistas estavam, inclusive,
entre os intelectuais franceses que se mobilizaram para dar
assistência a Artaud no fim da sua vida.
Tudo indica que a divergência entre Artaud e Breton não girava apenas
em torno da transitória adesão do Surrealismo ao PC. Estava em questão
- e isso transparece inclusive no depoimento de Breton nos seus
Entretiens et Témoignages - a própria orientação a ser dada ao
movimento. Há um antagonismo, bem assinalado por Susan Sontag e outros
ensaístas, entre a critica radical, levada às últimas conseqüências,
de Artaud - implicando uma negatividade extremada, um determinado tipo
de niilismo - e uma tendência organizadora, voltada para a
positividade, presente no Surrealismo, manifesta nas tentativas desse
movimento de assumir uma identidade ou um perfil
político-partidário (quer fosse o comunismo ou, posteriormente, o
trotskismo e o anarquismo) e de criar algo como um código, uma poética
(por exemplo, a teoria de Breton do ?signo ascendente?, totalmente
inaplicável a qualquer escrito de Artaud) e uma visão estruturada do
mundo. Não deixa de ser curioso e digno de nota que o Surrealismo
seja, de um lado, radical demais para muitos gostos e criticado como
irracionalismo e ?assalto à razão? pelos intelectuais conservadores e
burgueses, pelos católicos (tradicionalistas ou socializantes), pelos
comunistas (ortodoxos ou dissidentes) e pelos existencialistas; de
outro, sob a ótica artausiana, é demasiado organizado e bem-
comportado.
Depois da ruptura com o Surrealismo, Artaud passa a dedicar-se ao
Théatre Alfred Jarry, grupo teatral de vanguarda que durou de 1926 até
1929 e que, em meio a grandes dificuldades financeiras, produziu
espetáculos polêmicos e inovadores. Também são desse período a sua
tradução-adaptação de The Monk de Lewis (1931), obra de horror gótico
apontada por Breton como precursora do Surrealismo, e o seu
Héliogabale ou L?Anarchiste Couronné, fruto de detalhada pesquisa
sobre o assunto (1931/33).
A partir de 1931 (quando assistiu aos espetáculos de teatro balinês na
Exposição Colonial de Vincennes), Artaud passou a elaborar e
desenvolver sistematicamente suas idéias sobre o Teatro da Crueldade,
dando palestras e redigindo artigos, cartas e manifestos, reunidos em
Le Theâtre et son Double, promovendo, ao mesmo tempo, leituras de
textos e reuniões para arrecadações de fundos, inclusive a leitura de
um texto de sua autoria, La Conquête du Mexique (1934). Finalmente,
encena Les Cencí, adaptação de uma história já narrada por Shelley e
Stendhal, sobre Beatrice Cenci, violada pelo pai e que o mata. Artaud
dirigia e também fazia o papel do pai Roger Blin estava no elenco e
Jean-Louis Barrault chegou a participar da preparação da montagem. Les
Cenci foi um fracasso de público e crítica e praticamente encerrou a
carreira especificamente teatral de Artaud. Aliás, na sua própria
opinião o espetáculo estava aquém do Teatro da Crueldade, prejudicado
pela falta de recursos e condições de trabalho.
Depois dessa sucessão de fracassos (incluindo palestras nas quais o
público abandonava a sala ou o vaiava) e que culmina com Les Cenci,
Artaud resolve mudar tudo, trocar o texto pela vida e vivenciar
pessoalmente a realidade mítica que tanto o fascinava e que era
tematizada na sua obra. Para tal, consegue uma subvenção que lhe
permite ir ao México pesquisas o ritual do peiote entre os índios
Taraumaras. A viagem tem várias finalidades: Artaud quer sair do
ambiente cultural europeu, em que não o entendiam e que o sufocava;
também busca unia cura, através da magia dos índios, para seus
problemas de saúde e sua dependência da droga. Acaba encontrando a
antevisão do seu calvário, conforme assinala num dos trechos da Viagem
ao País dos Taraumaras (publicado em 1945).
De volta a Paris, Artaud passa a expressar-se num tom profético e
delirante, vendo-se como o emissário de catástrofes que se
aproximavam: tanto
de uma catástrofe no plano mundial quanto no da sua vida pessoal. Os
fatos mostraram que não estava errado em nenhuma das duas antevisões.
Essa é a tônica de Les Nouvelles Révélatíons de L?Être (1937), obra
publicada sob pseudônimo, assinada apenas por O Iluminado, inspirada
em estudos do Tarot e da Cabala, na qual ele abole sua
individualidade, sua condição de autor, para ser mero veículo da
palavra profética.
Na mesma época, faz sucessivos tratamentos de desintoxicação em mais
uma paixão mal-sucedida, faz mais uma conferência escandalosa na
Bélgica (invariavelmente, Artaud abandonava o texto e passava a
encarnar o assunto do qual tratava, em vez de se limitar a discorrer
sobre ele) e, em fins de 1937, viaja para a Irlanda, munido do seu ?
bastão mágica?, uma bengala entalhada de São Patrício que levava como
se fosse um bruxo com seu talismã. Em Dublin, envolve-se numa confusão
até hoje mal esclarecida, na qual perde o bastão e é deportado. Chega
à França preso e em camisa-de-força.
Então começa a parte mais dolorosa e terrível da sua trajetória, seu
verdadeiro calvário. Ele, que sempre, abominara os psiquiatras e os
hospícios, passa os nove anos seguintes internado, de hospício em
hospício: Sainte-Anne, Quatre-Mares, Ville-Évrard, Chézal-Bénoit,
Rodez - durante a guerra, na França ocupada, em condições
particularmente difíceis. Por um período, Artaud desaparece nessas
clínicas não se sabendo exatamente pelo que passou e o quanto sofreu.
É certo que passou fome e esteve em risco de vida em Ville-Évrard,
hospício para o confinamento de loucos tidos, como irrecuperáveis. A
partir de 1943, é transferido para Rodez, graças à intervenção do
poeta Robert Desnos (que, dois anos depois, morreria de tifo num campo
de concentração) e de outros intelectuais. Artaud sai de Ville-Évrard
macilento e envelhecido. Em Rodez, é melhor tratado - seu psiquiatra,
Dr. Gaston Ferdière, o estimula a escrever e a desenhar; no entanto,
além de tratá-lo de maneira paternalista, aplica-lhe eletrochoques.
Em 1946, terminada a guerra, intelectuais de destaque mobilizam-se
para tirar Artaud de Rodez e garantir sua subsistência. Entre outros,
participaram dessa mobilização figuras do porte de André Breton (que
integrou um comitê pró-Artaud), Picasso, Albert Camus, Jean-Paul
Sartre, Simone de Beauvoir, Jean-Louis Barrault, François Mauriac e
Paul Éluard. Artaud passa a residir na clínica de Ivry, nos arredores
de Paris, como paciente voluntário e não mais como internado
compulsório. Morou e morreu no mesmo quarto onde morrera Gérard de
Nerval, poeta hiper-romântico, precursor de Artaud sob vários aspectos
(tanto é que Artaud escreveu um estudo belíssimo sobre ele, quase tão
intenso quanto a Van Gogh).
Nesta fase final de sua vida, Artaud escreve torrencialmente e os
livros vão sendo publicados à medida que ele os termina: Cí Gît,
Artaud le Momo, Van Gogh, La Culture Indienne, Pour en Finir Avec le
Jugement de Dieu, Suppôts et SupIiciations. Trabalha junto com Paule
Thévenin na edição da sua obra
completa. Aparece em leituras públicas de textos seus e são
organizadas exposições dos desenhos que fizera em Rodez e Ivry.
Em fins de 1947, grava Para acabar com o julgamento de deus para o
programa La Voix des Poètes da Radiodifusão Francesa. A transmissão é
proibida pelo diretor da rádio, provocando uma grande polêmica que
repercute na imprensa. Essa foi a última manifestação de Artaud em
vida: como todas as anteriores, marcada pelo escândalo, pela
incompreensão e pela derrota, encerrando uma trajetória de encenações
teatrais mal-entendidas e rejeitadas pela critica, de palestras que
escandalizavam o público e de textos que, enquanto viveu, foram
publicados em pequenas tiragens e lidos apenas por uma minoria de
intelectuais mais esclarecidos.
A 4 de março de 1948, Artaud é encontrado morto no seu quarto de Ivry,
caído aos pés da cama, agarrando um sapato. O diagnóstico é câncer no
reto. O Dr. Ferdière, que o tratara em Rodez, insinua que na verdade
ele morreu envenenado, intoxicado pelas quantidades de heroína e
morfina que tomava. Outros - como Teixeira Coelho no seu Artaud -
lembram a possibilidade de um suicídio. No entanto, a versão mais
plausível é mesmo a do câncer, endossada pela maioria dos seus
biógrafos e ensaístas, inclusive Susan Sontag. Esta lembra que,
segundo Paule Thévenin, o câncer já havia sido diagnosticado antes.
Artaud já sofria de problemas intestinais (mencionados nas suas
cartas) e sua saúde piorava visivelmente (basta ver suas últimas
fotos). Paule Thévenin afirma, inclusive, que Artaud já sabia que
estava morrendo, embora não lhe tivessem falado do câncer. As doses de
ópio, heroína e cloral tinham, portanto, a finalidade de mitigar suas
dores.
Depois de sua morte, a influência e a repercussão da obra e das idéias
de Artaud foram se ampliando de forma crescente. Hoje em dia, suas
propostas sobre teatro são práticas correntes: é difícil distinguir
quando a criação coletiva, a invenção e improvisação em cena, o
primado do gestual e da expressão corporal, bem como de todas as
formas de comunicação não-verbal e das várias tentativas de ruptura da
separação entre palco e platéia, correspondem a uma influência
especifica do pensamento de Artaud ou são apenas procedimentos comuns
a todo teatro de vanguarda. Outras manifestações especificamente
vanguardistas e hoje habituais, como o ?happening?, a ?performance? e
a ?body art? - quando o artista se põe no lugar da obra, encarnando-a
- têm em Artaud seu inventor.
Na área da assim chamada antipsiquiatria - ou seja, das correntes mais
críticas e inovadoras da psiquiatria e psicanálise - basta lembrar que
R. D. Laing testemunhou que a leitura do Van Gogh de Artaud teve um
papel decisivo no desenvolvimento e encaminhamento das suas idéias
revolucionárias. Artaud também comparece como referência fundamental
na História da Loucura de Michel Foucault (bem como em outras obras do
grande pensador, inclusive As Palavras e as Coisas, na crítica ao uso ?
transitivo? da linguagem do final do livro). Para Foucault, Artaud
virou pelo avesso, subverteu completamente as
noções tradicionalmente aceitas sobre a relação entre criação e
loucura: não são mais as obras dos loucos e malditos que precisam
justificar-se diante da psicologia, mas sim a psicologia que agora
deve tentar justificar-se diante de tais obras. Também no Anti-Édipo
de Deleuze e Guattari, Artaud comparece como paradigma (em companhia
de Beckett e Schreber), sendo freqüentemente citado para fundamentar a
noção de ?esquizo-análise?, de ?máquinas desejantes? e do antagonismo
entre a paranóia da nossa sociedade e o esquizoidismo que busca a
plena satisfação do desejo.
A bibliografia sobre Artaud- ensaios críticos, estudos, biografias - é
atualmente gigantesca. Basta dizer que uma das edições de revistas
inteiramente dedicadas a ele - La Tour du Feu n.º 63-64 de 1959 -
provocou uma polêmica que, por sua vez, gerou duzentos artigos
críticos. Há um pensamento sobre a linguagem e sua relação com o corpo
e a consciência que está presente em toda a produção de Artaud e que
se constitui em referência fundamental para os estudos mais avançados
no campo da lingüística estrutural, da semiologia e da semiótica.
Dentre os estudos mais sérios, é indispensável o denso trabalho de
Maurice Blanchot publicado em Le Livre a Venir (Gallimard, 1959).
Artaud chega a ser cultuado (junto com outro ?maldito? fundamental,
Lautréamont, por sua vez também objeto de um apaixonado e delirante
estudo por Artaud) pelos intelectuais que se agruparam ao redor da
revista Tel Quel (Julia Kristeva, Phillipe Sollers, Marcelin Pleynet e
outros). Dentro dessa bibliografia, tem especial importância o ensaio
de Jacques Derrida, A Palavra Soprada (incluído em A Escritura e a
Diferença).
No campo da discussão do alcance e das implicações das drogas tidas
como tóxicas ou alucinógenas, a experiência e o depoimento de Artaud
tiveram papel de destaque, tanto na fundamentação da critica à
repressão policial e às campanhas anti-droga, como no estímulo das
mais variadas modalidades de aventura psicodélica. Em termos mais
gerais, pode-se afirmar que todas as correntes de pensamento
genericamente denominadas de ?contracultura? devem alguma coisa a
Artaud e são, em maior ou menor grau, um legado seu, inclusive, é
claro, os movimentos que buscam uma transformação da sociedade através
de mudanças da vida e do comportamento, fora dos quadros político-
partidários convencionais. É significativo que, durante a rebelião de
maio de 68 na França, a Carta aos Reitores das Universidades
Européias, de 1925, tenha servido como panfleto revolucionário e sido
afixada na Sorbonne - a mesma Sorbonne onde suas conferências eram
vaiadas em 1931 e 33.
No entanto, assim como ainda existem textos inéditos de Artaud e
outros a serem acrescentados à edição da sua obra completa, também no
plano do estudo do seu trabalho, da sua divulgação e da ampliação da
sua influência, ainda há muita coisa a ser dita e a ser feita, apesar
da enorme bibliografia a respeito. A multiplicidade da sua obra
possibilita uma variedade incrível de leituras. Além disso, ela tem a
grande vantagem de não permitir a formação de seitas de discípulos e
seguidores, de não servir para a proliferação de escolas literárias.
Quem tenta escrever à moda de Artaud só consegue produzir cópias
empalidecidas, evidentemente epigonais. Artaud é único, irrepetível e
principalmente irrecuperável; qualquer estudo acadêmico a seu respeito
consegue apenas captar algum dos seus aspectos e facetas. O que ele
nos deixou, o que ele efetivamente transmitiu foi, não um conjunto de
ensinamentos ou de normas estéticas, mas sim uma atitude, uma postura
de rebelião radical, de inconformismo e de recusa a compactuar com a
nossa civilização. E sempre é bom lembrar que a trajetória de Artaud,
por maior que tenha sido sua consagração depois da morte, continua se
defrontando com a perspectiva da derrota e do fracasso. Afinal, por
mais que tenha contribuído para estimular o surgimento de tendências
vanguardistas e libertárias, isso continua acontecendo dentro de um
mundo e uma sociedade que, cada vez mais, se assemelham à imagem de
mundo e de sociedade retratados em obras como Para acabar com o
julgamento de deus e Artaud le Mômo.
Os dados para esta nota bibliográfica e para as notas subseqüentes
foram extraídos dos comentários da edição da sua Oeuvre Compléte pela
Gallimard, das notas adicionais de Susan Sontag para Antonin Artaud -
Selected Writings (Farrar, Strauss and Giroux, Nova York, 1976 - são
600 páginas de textos escolhidos e mais um estudo importante de
Sontag, também publicado separadamente como Livro; no entanto, Artaud
perde na tradução para o inglês, apesar da seriedade da pesquisa); da
biografia por Martin Esslin (Artaud, Editora Cultrix - EDUSP, 1978 -
que vale a pena ler, apesar de algumas opiniões e interpretações
discutíveis e superficiais); do Artaud - L?Aliénation et la Folie, de
Gérard Durozoi (Larousse, Paris, 1972, um dos melhores estudos
introdutórios sobre Artaud), do Antonin Artaud, de Teixeira Coelho,
para o Encanto Radical da Brasiliense (São Paulo, 1982), do Essai sur
Antonin Artaud, Georges Charbonnier (Píerre Seghers, Paris, 1959); de
Artaud and After, por Ronald Hayman (Oxford University Press, 1977,
com um belo material iconográfico); de Antonin Artaud e o Teatro, por
Alain Virmaux (Perspectiva, São Paulo 1978, interessante e com bom
material iconográfico). Para quem quiser aprofundar-se, recomendo a
coletânea de textos Artaud, organizada por Philippe Sollers, (Ed. UGE,
Paris, 1973), transcrevendo o colóquio de Cerisy-la-Salle, inclusive o
estudo de Julia Krísteva, também encontrável em edição argentina (El
Pensamiento de Antonin Artaud, ed. Calden, 1975); o número especial da
revista Oblïque nº 17, com a reprodução dos desenhos de Artaud; A
Escritura e a Diferença de Jacques Derrida (Ed. Perspectiva, 1978).
Várias obras de Artaud foram traduzidas para o espanhol e algumas
também para o português, editadas em Portugal. Das espanholas, as
melhores são as da Ed. Fundamentos, que incluem as notas da Gallimard;
das portuguesas, a tradução do Heliogábalo feita pelo grande poeta
Mario
Cesariny de Vasconcellos, uma recriação do texto, e a tradução do
Teatro e seu Duplo pela ed. Minotauro, pela excelente Poetisa Fiamna
Hesse Pais Brandão.
OS TARAUMARAS
A partir de 1936 Artaud passa a narrar sua viagem ao país dos
Taraumaras, refazendo essa narrativa até sua morte em 1948, como se
fosse um mesmo texto
constantemente reexaminado e acrescido. A série começa com A Montanha
dos Signos, escrito ainda no México, e A Dança do Peiote,
imediatamente após sua volta a Paris. O último é Tutuguri, escrito em
Rodez em 1943, novamente reescrito em 1946 e incorporado a Para acabar
com o julgamento de deus, de 1947. O conjunto dos textos, inclusive
cartas da época e cartas adicionais escritas durante seu confinamento
em Rodez, foram publicados em livro, inicialmente em 1945 e depois, em
versão ampliada, em 1947 em revistas e novamente em livro em 1955
(Editions L?Arbaléte), para serem incorporados ao vol. IX da Obra
Completa e também editados na coleção Idées (de bolso) em 1971. Os
dois primeiros textos da série, escolhidos para a presente coletânea,
dão um belo exemplo de narrativa poética de viagem e de antropologia
participante, registrando a tentativa de viver outra cultura e não
apenas observá-la. Em A Montanha dos Signos vemos novamente um exemplo
da semiologia de Artaud: agora não são mais os produtos da cultura que
formam um discurso, mas sim a própria natureza. Montanhas, pedras,
abismos, tudo é linguagem e tem sentido. A Dança do Peiote é, sem
dúvida, a melhor encenação de Teatro da Crueldade de que Artaud chegou
a participar, o acontecimento mais próximo da sua noção de como devia
ser um espetáculo teatral. Nesse seu relato de viagem, bem como nos
seus artigos e palestras do México, e também em textos anteriores,
subjaz uma questão fundamental: a do colonialismo e da descolonização
cultural. Lembremos que um dos projetos do Teatro da Crueldade era
encenar A Conquista do México; só que em vez de encená-la, Artaud foi
vivê-la. A intenção, nos dois planos, da obra e da vida, era aliar-se
à cultura dos dominados, a uma cultura subterrânea e reprimida, dotada
de um elevado potencial subversivo. Trata-se, portanto, do mesmo
processo relatado em Heliogábalo, que não era romano mas sírio e que
tentou derrubar os deuses, a religião e a ideologia da metrópole,
implantando as crenças e signos da sua terra natal, ou seja, de um
povo dominado. Em vários níveis, temos sempre o mesmo confronto do
dominado contra o dominador: os povos periféricos e colonizados contra
a metrópole; o indivíduo contra o poder opressor do Pai, da sociedade
patriarcal; o corpo, o lado sombrio da sexualidade, o inconsciente, os
instintos, contra o ?cogito? cartesiano (que Artaud acertadamente
denuncia como produto da Roma imperial); a poesia transformada em
realidade contra o discurso racional.
Esse projeto de Artaud é dialético: ele não era um conservador, não
estava interessado na restauração de alguma cultura tradicional. Tanto
na sua fascinação pelo hinduísmo, pela Cabala, pelas práticas
xamânicas, o que o interessa é o confronto com a nossa civilização, o
efeito que tudo isso possa ter para alterar nossa percepção e nossa
consciência. Os biógrafos de Artaud acham que sua ida ao México foi
mais uma derrota, já que ele não conseguiu se livrar da sua
dependência do ópio e foi obrigado a voltar à França. Na verdade, ele
não podia ter feito outra coisa. Participando de um ritual de
iniciação xamânica, o passo seguinte necessariamente seria trazer de
volta os resultados
dessa iniciação para a cultura européia, como forma de perturbá-la e
questioná-la. Foi o que ele fez, passando a comportar-se como iniciado
e profeta e não mais como escritor ou intelectual europeu: carregava o
tempo todo seus dois amuletos, a espada com gravações que ganhara de
um feiticeiro em Cuba e a bengala entalhada de São Patrício que
recebera de um amigo, passando a publicar seus textos seguintes, a
primeira edição da Voyage au Pays des Tarahumaras e o cabalístico Les
Nouvelles Revelations de L?Etre sob pseudônimo, assim como boa parte
da sua correspondência da época, como se ele não fosse mais o autor
mas apenas mas o mero porta-voz de mensagens apocalípticas. Loucura ou
dramatização das suas idéias? Está aí uma questão que não pode ser
colocada, que é falsa sob a ótica artausiana. Pouco importa se o
delírio místico de Artaud era a manifestação de um quadro clínico ou
uma escolha consciente. Para o próprio Artaud, a diferença entre
sintoma e ato consciente é inaceitável, já que ele queria, justamente,
abolir e transpor a barreira entre a razão e o inconsciente.
A Montanha dos Signos
O país dos Taraumaras é cheio de signos, formas, efígies naturais que
não parecem nascidas do acaso, como se os deuses, cuja presença aqui é
notada o tempo todo, quisessem fazer seus poderes significar por meio
dessas estranhas assinaturas nas quais a figura do homem é perseguida
por todos os meios.
Certo, não faltam lugares nos quais a Natureza, movida por uma espécie
de capricho inteligente, esculpiu formas humanas. Mas aqui o caso é
diferente, pois foi sobre toda a extensão geográfica de uma raça que a
Natureza quis falar.
O mais estranho é como aqueles que passam por aqui, parecendo atacados
por uma paralisia inconsciente, fecham seus sentidos e ignoram tudo
isso. Que a Natureza, por um estranho capricho, mostre repentinamente
o corpo de um homem sendo torturado sobre o rochedo, pode-se achar
inicialmente que é um capricho e que semelhante capricho nada
significa. Mas quando, após dias e dias a cavalo, o mesmo encantamento
inteligente se repete e a Natureza, obstinadamente, manifesta a mesma
idéia; quando voltam as mesmas patetices formas; quando cabeças de
deuses conhecidos aparecem nos rochedos e delas emana um tema de
morte, tema ao qual o homem terá que prestar tributo - e ao vulto
desmembrado de um homem respondem outros tornados menos obscuros, mais
desprendidos da matéria petrificaste, dos deuses que sempre o
torturaram -: quando toda uma região da terra desenvolve uma filosofia
paralela à dos homens; quando se sabe que a linguagem de sinais
utilizada pelos primeiros homens agora se encontra formidavelmente
ampliada sobre os rochedos; então
certamente não se pode achar que se trata apenas de um capricho e que
tal capricho nada significa.
Se a maior parte da raça Taraumara é autóctone e se, como eles
pretendem, caíram do céu na Sierra, então pode-se afirmar que caíram
numa Natureza já preparada. E que esta natureza quis pensar como se
fosse humana. Assim como fez evoluírem homens, também fez evoluírem
rochedos.
O homem nu e torturado, vi-o pregado num rochedo, as formas acima dele
volatilizadas pelo sol; mas, não sei por qual milagre ótico, o homem
na parte de baixo permanecia inteiro, mesmo estando sob a mesma luz.
Não saberia dizer quem estava enfeitiçado, se a montanha ou eu, porém
milagres óticos análogos, eu os vi durante o périplo pela montanha,
aparecendo pelo menos uma vez por dia, todos os dias.
Pode ser que eu tenha nascido com um corpo atormentado, ilusório como
a imensa montanha; mas é um corpo cujas obsessões servem para alguma
coisa; e percebi, na montanha, para que serve a obsessão de contar.
Não houve sombra que eu deixasse de contar ao vê-la dando voltas ao
redor de alguma coisa; e multas vezes foi somando sombras que cheguei
até estranhos lugares.
Vi, na montanha, um homem nu debruçado numa grande janela. Sua cabeça
era apenas um buraco, uma espécie de cavidade circular na qual,
conforme a hora, aparecia o sol ou a lua. Seu braço direito estendia-
se como uma barra, o esquerdo também era uma barra, mas mergulhado em-
sombras e dobrado.
Era possível contar suas costelas, sete de cada lado. No lugar do
umbigo brilhava um triângulo luminoso, feito de quê? Não saberia
dizer. Como se a natureza tivesse escolhido esta parte da montanha
para expor seus minerais enterrados.
Ora, embora a cabeça fosse vazia, o recorte da rocha ao seu redor dava-
lhe uma expressão precisa que a luz de cada hora tornava mais sutil.
Esse braço direito estendido para a frente, delimitado por um raio de
luz, não indicava uma direção qualquer... E eu procurei o que ele
apontava!
Ainda não era meio-dia quando me deparei com a visão; estava a cavalo
e avançava rapidamente. Mesmo assim, foi possível perceber que não
estava diante de formas esculpidas, mas sim de um jogo determinado de
luzes que se acrescentava ao relevo dos rochedos.
A figura era conhecida pelos índios; pareceu-me, pela sua composição,
pela sua estrutura, obedecer ao mesmo princípio ao qual toda essa
montanha truncada obedecia. Na linha do seu braço havia um povoado
rodeado por uma cintura de rochedos.
E vi que todos os rochedos tinham a forma de um peito feminino com os
seios perfeitamente desenhados.
Vi repetir-se oito vezes o mesmo rochedo que dirigia duas sombras para
o chão; vi duas vezes a mesma cabeça de animal carregando nas presas
sua efígie e devorando-a; vi, dominando o povoado, uma espécie de
enorme dente fálico
com três pedras no cume e quatro buracos na face externa; e vi, desde
o começo, todas essas formas passarem aos poucos para a realidade.
Tinha a impressão de ler em todo lugar uma história de parto na
guerra, uma história de gênese e caos, com todos esses corpos de
deuses talhados como homens e essas estátuas humanas truncadas.
Nenhuma forma intacta, nenhum corpo que não parecesse saído de um
massacre recente, nenhum grupo onde eu não lesse o combate que o
dividia.
Descobri homens afogados, semidevorados pela pedra e, nos rochedos de
cima, outros homens que lutavam para afundá-los.
Na Cabala existe uma música dos números e esta música, que reduz o
caos material a seus princípios, explica, por uma espécie de
matemática grandiosa, como a natureza se organiza e dirige o
nascimento das formas retiradas ao caos. E tudo que eu via parecia
obedecer a uma cifra. As estátuas, as formas, as sombras sempre davam
um número 3, 4, 7, 8 que voltava. Os bustos de mulheres truncadas eram
em número de 8; o dente fálico, já disse, tinha três pedras e quatro
furos; as formas volatilizadas eram 12, etc. Repito: podem dizer que
essas formas são naturais; mas sua repetição, esta não e natural.
Menos natural ainda é como essas formas da sua terra são repetidas
pelos Taraumaras nos seus ritos e danças. E tais danças não nascem do
acaso, mas obedecem à mesma matemática secreta, à mesma preocupação
com o jogo sutil dos números ao qual obedece a Sierra toda.
Ora, essa Sierra habitada e que exala um pensamento metafísico, os
Taraumaras a semearam de signos, signos perfeitamente conscientes,
inteligentes e determinados.
Em todas as curvas do caminho, vê-se árvores voluntariamente queimadas
em forma de cruz ou de seres e, freqüentemente, tais seres são duplos
e estão frente à frente, como para manifestar a dualidade essencial
das coisas; e essa dualidade, a vi reduzida a seu princípio por um
signo em forma de encerrado num círculo que me pareceu marcado a ferro
em brasa sobre um grande pinheiro,, outras árvores carregavam lanças,
trevos, folhas de acanto rodeadas de cruzes; aqui e ali, em lugares
estreitos, apertados corredores de rocha nos quais linhas de cruzes
egípcias com braçadeiras desdobravam-se em teorias; e as portas das
casas taraumaras exibiam o signo do mundo dos Maias: dois triângulos
opostos com as pontas ligadas por uma barra; e essa barra é a Árvore
da Vida que passa pelo centro da Realidade.
Assim, caminhando através da montanha, essas lanças, cruzes, trevos,
corações folhudos, cruzes com postas, triângulos, seres que se
defrontam e que se opõem para assinalar a guerra eterna, sua divisão,
sua dualidade, despertam em mim estranhas lembranças. Lembro-me
imediatamente que houve, na História, seitas que incrustaram esses
mesmos signos nos rochedos; cujos homens usavam esses signos,
esculpidos em jade, batidos no ferro ou cinzelados. E ponho-me pensar
que esse simbolismo dissimula uma Ciência. E me parece estranho que o
primitivo povo dos Taraumaras, cujos ritos e cujo
pensamento são mais antigos que o Dilúvio, já possuísse uma tal
Ciência, muito antes do aparecimento da lenda do Graal, muito antes da
formação da Seita dos Rosacruzes.
A Dança do Peiote
A possessão física continuava aí. Este cataclisma que era meu corpo..
Após vinte e oito dias de espera, ainda não tinha voltado a mim - ou
melhor dizendo, saído até mim. Até mim, esta montagem deslocada, este
pedaço de geologia avariada.
Inerte como a terra com suas rochas - e todas essas fendas que correm
pelos estratos sedimentares empilhados. Quebradiço, é claro, eu
estava, não em certos lugares mas por completo. Desde meu primeiro
contato com essa terrível montanha que certamente levantou barreiras
contra mim para impedir-me de entrar. E o sobrenatural, depois que
estive lá, não me parece mais ser uma coisa tão extraordinária a ponto
de eu não poder dizer, no sentido literal do termo, que fui
enfeitiçado.
Dar um passo não era mais dar um passo; era, para mim, sentir onde
levava minha cabeça. É possível compreender isso? Membros que me
obedecem um depois do outro, que avançam um depois do outro; e a
posição vertical sobre a terra, que é preciso manter. Pois a cabeça,
transbordando de ondas, sem conseguir dominar seus vagalhões, a cabeça
sente todos os vagalhões da terra debaixo dela, enlouquecendo-a e
impedindo-a de permanecer ereta.
Vinte e oito dias dessa possessão pesada, desse montão de órgãos
desarrumados que era eu, aos quais tinha a impressão de assistir como
se fosse uma imensa paisagem de gelo a ponto de deslocar-se.
A possessão continuava, tão terrível que para ir da casa do índio até
uma árvore a alguns passos de distância, era preciso mais que coragem,
era preciso apelar para reservas de uma vontade verdadeiramente
desesperada. E ter chegado tão longe, encontrar-me finalmente no
limiar de um encontro e neste lugar do qual esperava tantas revelações
e sentir-me perdido, tão deserto, tão deposto. Tivesse eu jamais
conhecido o prazer, tivesse eu )amais tido sobre a terra sensação
alguma que não fosse a angústia e o desespero irremediável; então não
estaria num estado diferente dessa dor fissurante que me perseguia
todas as noites. Houvesse para mim qualquer outra coisa que não
estivesse na soleira da agonia e seria possível encontrar ao menos um
corpo, um só corpo humano que escapasse à minha crucificação
perpétua.
Precisava, é claro, de vontade para acreditar que algo fosse
acontecer. E tudo isso, por quê? Por uma dança. Por um rito de índios
perdidos que nem sabem mais quem são e de onde vêm e que, quando
interrogados, nos respondem com histórias cuja ligação e cujo segredo
já perderam.
Depois de fadigas tão cruéis que, repito, é-me impossível deixar de
acreditar que não tinha sido enfeitiçado, que as barreiras de
desagregação e cataclisma que senti erguerem-se em mim não tenham sido
resultado de uma premeditação inteligente e calculada, consegui chegar
a um dos últimos lugares da terra onde a dança da cura pelo Peiote
ainda existe e, mais ainda, lá onde foi inventada. Mas que foi isso?
Que falso pressentimento, que intuição ilusória e fabricada fazendo-me
esperar uma liberação qualquer para meu corpo e também - e
principalmente - uma força, uma iluminação em toda a amplidão da minha
paisagem interna a qual sentia nesse preciso instante como fora de
qualquer dimensão?
Faz vinte e oito dias que semelhante suplício inexplicável começou.
Faz doze dias que me encontro nesse canto isolado do mundo, na
clausura da imensa montanha, esperando a boa-vontade dos meus
feiticeiros.
Por que toda vez que sentia estar tocando uma etapa capital da minha
existência, como nesse instante, não chegava lá como um ser completo?
Por que essa terrível sensação de perda, de falta a ser preenchida, de
evento frustrado? Sim, verei os feiticeiros executando seu rito - mas
em que esse rito me beneficiará? Eu os verei. Receberei a recompensa
por minha paciência que nada, até agora, conseguiu fazer esmorecer.
Nada; nem o caminho terrível, nem a viagem com um corpo consciente
porém desacordado, que foi preciso arrastar, que foi preciso quase
matar para impedir que se rebelasse; nem a natureza com suas bruscas
tempestades rodeando-nos com seus novelos de trovoada; nem a noite
atravessada por espasmos quando vi em sonhos um jovem índio coçando-se
num frenesi hostil exatamente nos lugares percorridos por espasmos - e
dizia, ele que mal me conhecia desde a véspera: ?Ah, quero que todo o
mal lhe aconteça?.
O Peiote, já o sabia, não fora feito para os brancos. Tentavam impedir-
me a todo custo de chegar à cura através desse rito instituído para
atingir a própria natureza dos espíritos. E um branco, para esses
índios, é um homem que abandonou os espíritos. Sendo eu o beneficiário
dos ritos, isto seria uma perda para eles, com seu inteligente
camuflar do espírito.
Uma perda para os espíritos; outros tantos espíritos que não chegariam
a se beneficiar.
Além disso há a questão do Tesguino, o álcool que leva oito dias sendo
macerado nas jarras; - e não há tantas jarras, tantos braços
preparados para pilar o milho.
Bebido o álcool, os feiticeiros do Peiote ficam imprestáveis e se
torna necessária uma nova preparação. Aconteceu que um homem da tribo
acabara de morrer quando cheguei ao povoado e importava que os ritos,
os sacerdotes, o álcool, as cruzes, os espelhos, os raladores, as
jarras e toda essa extraordinária tralha para a dança do Peiote fosse
utilizada em benefício do morto. Pois, morto, seu espírito precisava
que os maus espíritos fossem imediatamente afastados.
E depois de vinte e oito dias de espera ainda tive que suportar,
durante uma prolongada semana, uma inverossímil comédia. Havia por
toda a montanha uma desatinada movimentação de mensageiros sendo
enviados aos feiticeiros. Mas assim que os mensageiros partiam,
apareciam os feiticeiros em pessoa, espantando-se por nada estar
pronto. E eu descobria que estavam brincando comigo.
?Os do Ciguri (dança do Peiote) não bons, diziam-me. Não servem. Tome
esses?. E me empurravam velhos que imediatamente se partiam em dois,
enquanto seus amuletos tilintavam estranhamente. E vi que estava
diante de mágicos e não de feiticeiros. Fiquei sabendo depois que os
falsos sacerdotes eram íntimos amigos do morto.
Até que um dia a agitação se acalmou, sem gritos, sem debates, sem
novas promessas dirigidas a mim. Como se tudo isso fizesse parte do
rito e a brincadeira tivesse durado o bastante.
Afinal, eu não viera a esse fundo de montanha dos índios Taraumaras
para buscar lembranças e pinturas. já sofrera o bastante, parece-me,
para ganhar em troca um pouco de realidade.
E assim, à medida que o sol se punha, uma visão foi se impondo aos
meus olhos.
Tinha diante de mim a Natividade de Hyeronimus Bosch, disposta em
ordem e orientada, com o velho alpendre, as tábuas deslocadas diante
do estábulo, a luz do Infante brilhando à esquerda entre os animais,
as granjas espalhadas, os pastores; no primeiro plano, animais
balindo; à direita, os reis-dançarinos. Os reis, com suas coroas de
espelhos na cabeça e seus mantos retangulares de púrpura nas costas, à
minha direita na cena, como os reis magos do quadro de Bosch. E,
repentinamente, quando me virei, duvidando até o último momento que
meus feiticeiros aparecessem, eu os vi descendo a montanha, apoiados
em compridos bastões, as mulheres com grandes cestos, servos armados
de feixes de cruzes como árvores, espelhos brilhando como nesgas de
céu no meio daquele aparato de cruzes, chuços, pás, troncos de árvores
desbastadas. E essa gente dobrava-se toda sob o peso de um insólito
aparelhamento, as mulheres dos feiticeiros, assim como seus homens,
apoiados em enormes bastões que os ultrapassavam de uma cabeça.
Fogueiras cresciam na direção do céu. Embaixo, as danças já haviam
começado, diante dessa beleza finalmente concretizada, dessa beleza de
imagens fulgurantes como vozes num subterrâneo iluminado, senti que
meus esforços não haviam sido vãos.
Lá em cima, no alto das montanhas cujas escarpas desciam na direção
dos povoados como degraus, haviam traçado um círculo de terra. já as
mulheres, ajoelhadas diante dos seus metates (tigelas de pedra)
debulhavam o Peiote com uma espécie de brutalidade escrupulosa. Os
oficiantes se puseram a pisotear o círculo. Pisotearam rigorosamente e
em todas as direções; e acenderam uma fogueira que o vento aspirava
para cima em turbilhões.
Durante o dia, tinham matado dois cabritos. E agora os via sobre um
tronco desbastado de árvore, cortado em forma de cruz, os pulmões e o
coração dos animais tremendo ao vento noturno.
Havia um outro tronco desbastado de árvore ao lado, o fogo aceso no
meio do círculo provocando inumeráveis reflexos, qualquer coisa como
um incêndio visto por vidros grossos e empilhados. Cheguei perto para
ver o que era e distingui um incrível emaranhado de sininhos, alguns
de prata, outros de chifre, presos em correias de couro, esperando o
momento de começar o culto.
Plantaram dez cruzes, de tamanho desigual, do lado que nasce o sol -
todas simetricamente enfileiradas; prenderam um espelho em cada cruz.
Os vinte e oito dias de uma horrível espera, depois da perigosa
supressão da droga, finalmente culminavam num círculo povoado de
Seres, aqui representados por dez cruzes.
Dez, em número de dez, como os Mestres invisíveis do Peiote na
Sierra.
E entre esses dez: o Princípio Masculino da Natureza, chamado pelos
índios de San Ignacio e sua fêmea San Nicolas!
Em volta do círculo uma zona moralmente deserta onde nenhum índio se
aventuraria: contam que nesse círculo até mesmo os pássaros
extraviados caem e as mulheres grávidas sentem seus embriões se
decomporem.
No círculo dessa dança existe uma história do mundo, encerrada entre
dois sóis, o que desce e o que sobe. E é na descida do sol que os
feiticeiros entram no círculo e o dançarino dos seiscentos sininhos
(trezentos de chifre e trezentos de prata) solta seu grito de coiote
na floresta.
O dançarino entra e sai e, no entanto, não deixa o círculo. Ele avança
deliberadamente para o mal, mergulha nele com uma espécie de horrenda
coragem, num ritmo que parece representar a Doença, mais que a dança.
E tem-se a impressão de vê-lo subitamente emergir e desaparecer, num
movimento que evoca não sei que obscuras tantalizações. Ele entra e
sai: "Sair para o dia, no primeiro capítulo?, como diz do Duplo do
Homem o Livro dos Mortos Egípcio. Pois esse avanço na doença é uma
viagem, uma descida PARA SAIR DE NOVO NO DIA. - Ele dá voltas no
sentido da Suástica, sempre da direita para a esquerda e pelo alto.
Ele pula com seu exército de campainhas, como uma aglomeração de
abelhas enlouquecidas e aglutinadas numa crepitante e tempestuosa
desordem.
Dez cruzes no círculo e dez espelhos. Uma viga com três feiticeiros
nela. Quatro coadjuvantes (dois homens e duas mulheres). O dançarino
epiléptico e eu, para quem estava sendo feito o rito.
Ao pé de cada feiticeiro um buraco em cujo fundo o Masculino e o
Feminino da Natureza, representados pelas raízes hermafroditas do
Peiote (sabe-se que o Peiote tem forma de sexo de homem e de mulher,
misturados) dormem na matéria, ou seja, no Concreto.
E o buraco, com um vasilhame de madeira ou barro emborcado nele,
representa bastante bem o Globo do Mundo. Sobre a vasilha, os
feiticeiros
ralam a mistura ou deslocamento dos dois princípios, e o ralam no
abstrato, ou seja, no seu Princípio. Enquanto isso, os dois princípios
encarnados repousam na matéria, ou seja, no Concreto.
E é durante a noite toda que os feiticeiros restabelecem as ligações
perdidas, com gestos triangulares que cortam estranhamente as
perspectivas do ar.
Entre os dois sóis, doze tempos em doze fases. E a marcha ao redor de
tudo que se remexe ao redor do fogaréu, nos limites sagrados do
círculo: o dançarino, os raladores, os feiticeiros.
Entre cada fase, os dançarinos oferecem a prova física do rito, da
eficácia da operação. Hieráticos, rituais, sacerdotais, lá estão eles
alinhados sobre sua viga, embalando seus raladores como bebês. De qual
idéia perdida de etiqueta vêm o sentido dessas inclinações, dessas
mesuras, dessa caminhada em círculos na qual se contam os passos e
todos se persignam diante do fogo, saudando-se mutuamente e saindo?
Então eles se levantam, procedem às mesuras que descrevi, uns como se
estivessem montados em andaimes, outros como autômatos truncados. Eles
atravessam o círculo. Mas eis que, ultrapassado o círculo, um metro
além dele, esses sacerdotes, que andam entre dois sóis, repentinamente
se transformam em homens, ou seja, organismos abjetos que devem ser
lavados, pois o rito é feito para lavá-los. Comportam-se como
Posseiros, esses sacerdotes, como uma espécie de trabalhadores das
trevas criados para mijar e cagar. Eles mijam, peidam e cagam com um
extraordinário tonitruar; e se acredita, ao escutá-los, que estejam
tentando nivelar a verdadeira trovoada, reduzindo-a à sua necessidade
de abjeção.
Dos três feiticeiros que lá estavam, dois deles, os dois maiores e m
ais baixos, tinham ganho havia três anos o direito de manejar o
ralador (pois o direito de manejar o ralador é adquirido e é nesse
direito que repousa toda a nobreza da casta dos feiticeiros do Peiote
entre os índios Taraumaras); e o terceiro, havia dez anos. E o mais
velho no rito, devo dizer, era quem mijava melhor e peidava com mais
ênfase e força.
E foi ele que, orgulhoso por essa espécie de purgação grosseira, logo
em seguida se pôs a escarrar. Ele cuspiu após ter tomado o Peiote,
assim como todos nós. Pois encerradas as doze fases da dança, como a
aurora ia despontar, passaram-nos o Peiote ralado que parecia uma
espécie de calda lamacenta e à nossa frente foram cavados novos
buracos para receber nossos escarros, das nossas bocas tornadas
sagradas pela passagem do Peiote.
"Cospe, disse-me o dançarino, o mais fundo na terra que puder, pois
nenhuma parcela do Ciguri jamais poderá emergir".
E o feiticeiro, mais envelhecido ainda sob seus paramentos, foi quem
cuspiu mais abundantemente, com os escarros mais compactos e grossos.
E os demais feiticeiros, bem como os dançarinos, em círculo ao redor
do buraco, vieram admirá-lo.
Depois de cuspir, caí de sono. O dançarino à minha frente não parava
de passar e repassar, dando voltas e gritando por ostentação, pois
havia descoberto que seu grito me agradava.
"Levante-se homem, levante-se", gritava a cada volta, sempre mais
inútil, que ele dava.
Desperto e titubeante, fui levado até as cruzes para a cura final
quando os feiticeiros fazem o ralador vibrar sobre a cabeça do
paciente.
Tomei parte, então, no rito da água, das pancadas na cabeça, dessa
espécie de cura mútua entre os participantes e das abluções
desmedidas.
Eles pronunciaram estranhas palavras em cima de mim e. me aspergiram
com água; depois se aspergiram uns aos outros, nervosamente, pois a
mistura de álcool de milho e Peiote começava a enlouquecê-los.
E foi com esses derradeiros passos que a dança do Peiote se encerrou.
A dança do Peiote está no ralador, nessa madeira impregnada de tempo
que conserva os sais secretos da terra. É nessa vareta estendida e
recolhida que repousa a ação curativa do rito, tão complexo, tão
recuado no tempo, que é preciso rastreá-lo como a um animal na
floresta.
Parece que existe um lugar na alta Sierra mexicana onde esses
raladores abundam. Lá eles dormem, esperando que o Homem Predestinado
os descubra e os faça sair à luz do dia.
Cada bruxo Taraumara, ao morrer, deixa seu ralador com uma dor maior
que seu próprio corpo; seus descendentes, sua família, o levam embora
e o enterram num rincão sagrado da floresta.
Quando um índio Taraumara sente o chamado para manejar o ralador e
distribuir a cura, faz retiros durante três anos consecutivos, de uma
semana cada, na época da Páscoa.
É lá, dizem, que o Senhor Invisível do Peiote fala com ele, junto com
seus nove assistentes, e lhe passa o segredo. E então ele volta com o
ralador devidamente preparado.
Talhado numa madeira de terras quentes, cinzento como minério de
ferro, todo gravado, com signos nas extremidades: quatro triângulos
com um ponto para o Macho-Princípio e dois pontos para a Fêmea da
Natureza, divinizada.
O número de entalhes gravados é o mesmo do número de anos que o
feiticeiro tinha ao adquirir o direito de ralar e aplicar os
exorcismos que afastam os Elementos.
E esse é o aspecto dessa tradição misteriosa que ainda não consegui
entender. Pois os feiticeiros do Peiote parecem ter efetivamente ganho
alguma coisa ao término dos seus três anos de retiro na floresta.
Há um mistério até hoje ciosamente guardado pelos feiticeiros
Taraumaras. O que eles ganharam a mais, o que eles, por assim dizer,
recuperaram, são coisas das quais o índio Taraumara estranho à
aristocracia da seita não tem a mínima idéia. E os próprios
feiticeiros permanecem decididamente mudos a respeito desse assunto.
Qual palavra singular, qual palavra perdida lhes é passada pelo Senhor
do Peiote? Porque três anos para aprender a mexer com o ralador, com o
qual os feiticeiros efetuam, convêm assinalar, curiosas auscultações?
O que arrancaram eles da floresta, o que a floresta lhes passa tão
lentamente?
O que, enfim, lhes foi transmitido sem estar contido no aparato
exterior do rito, sem ser explicável pelos gritos penetrantes do
dançarino, nem pela dança que vai e volta como uma espécie de pêndulo
epiléptico, nem pelo circulo, pela fogueira, pelas cruzes com seus
espelhos onde as cabeças deformadas dos feiticeiros alternadamente se
incham e desaparecem entre as chamas da fogueira, nem pelo vento da
noite que fala e sopra nos espelhos, nem pelo canto dos feiticeiros
que embalam seu ralador, canto esse extraordinariamente vulnerável e
íntimo?
Eles me haviam deitado no chão, ao pé da enorme viga na qual sentavam-
se os feiticeiros entre uma dança e outra.
Deitado no chão, para que o rito baixasse em mim, para que o fogo, os
cantares, os gritos, a dança e a própria noite, como uma abóbada
animada e humana, dessem voltas ao meu redor como se estivessem vivos.
Havia pois uma cúpula giratória, uma organização física de gritos,
tons, passos, cantos. E por cima de tudo a impressão, que vinha e
voltava outra vez, de que por trás disso tudo e acima de tudo,
dissimulava-se ainda outra coisa: o Principal.
Ainda não renunciei de todo a essas perigosas dissociações provocadas
pelo Peiote, que faz vinte anos procurava por outros meios; não subi a
cavalo com meu corpo arrancado a si próprio, privado dos seus reflexos
essenciais pela suspensão da droga; não fui esse homem de pedra que
precisava de mais dois homens para torná-lo um homem montado no
cavala, e que era montado e desmontado como um autômato desamparado, -
e a cavalo punham minhas mãos nas rédeas e era preciso cerrar meus
dedos em volta das rédeas, pois era tão evidente que eu tinha perdido
minha liberdade; não venci pela força do meu espírito a invencível
hostilidade orgânica onde era eu quem não queria mais andar, apenas
para trazer de volta uma coleção de imagens caducadas, das quais a,
Época, fiel nisso a todo um sistema, extrairia apenas idéias para
cartazes e para os modelos dos seus costureiras. Era preciso doravante
que qualquer coisa de fugidio por trás dessa pesada trituração, que
equipara a aurora a noite, que essa coisa qualquer fosse extraída para
fora e que servisse, que servisse justamente pela minha crucificação.
Sabia que meu destino físico estaria irremediavelmente ligado a isso.
Estava preparado para todas as queimaduras, esperava os primeiros
frutos da queimadura com vistas a uma combustão logo generalizada.

VAN GOGH: O SUICIDADO PELA SOCIEDADE
Em fevereiro de 1947 Artaud foi ver a mostra de Van Gogh no museu de l?
Orangerie, no qual estavam expostas 173 obras do grande pintor
holandês. Pouco antes saíra no jornal Arts um artigo de um psiquiatra
focalizando Van Gogh sob um sob um ponto de vista clínico intitulando-
o inclusive de degenerado. De volta da exposição Artaud pôs-se a
escrever imediatamente seu texto. Consta que o teria escrito em dois
dias. Na verdade, a maior parte foi feita em uma semana. Foi publicado
em setembro de 1947 e logo em seguida recebeu o prêmio Sainte-Beuve;
na época, o principal prêmio literário para ensaios na França. Não
deixa de ser uma ironia o fato do marginalizado Artaud receber um
prêmio dessa importância e de viver uma espécie de consagração - seus
textos eram publicados logo depois que terminava de escrevê-los e as
Cartas de Rodez já estavam na segunda edição - no fim da vida, quando
já definhava às vésperas da morte.
Van Gogh é um dos textos mais bonitos, de maior intensidade poética de
Artaud. Há uma espécie de síntese, de junção do texto corrido das
Cartas e da batida mais compassada, mais ritmada do Momo e de Ci-Gît.
Quando o assunto era algum outro ?maldito? hiper-romântico, Artaud
escrevia apaixonadamente. Isso pode ser visto também na sua carta
sobre Lautréamont, de 1946, e no seu texto sobre Gérard de Nerval.
Van Gogh: o Suicidado Pela Sociedade
(trechos)
Pode-se falar da boa saúde mental de van Gogh, que em toda sua vida
apenas assou uma das mãos e, fora disso, limitou-se a cortar a orelha
esquerda numa ocasião.
num mundo no qual diariamente comem vagina assada com molho verde ou
sexo de recém-nascido flagelado e triturado,
assim que sai do sexo materno.
E isso não é uma imagem, mas sim um fato abundante e cotidianamente
repetido e praticado no mundo todo.
E assim é que a vida atual, por mais delirante que possa parecer esta
afirmação, mantém sua velha atmosfera de depravação, anarquia,
desordem,
delírio, perturbação, loucura crônica, inércia burguesa, anomalia
psíquica (pois não é o homem, mas sim o mundo que se tornou anormal),
proposital desonestidade e notória hipocrisia, absoluto desprezo por
tudo que tem uma linhagem
e reivindicação de uma ordem inteiramente baseada no cumprimento de
uma primitiva injustiça;
em suma, de crime organizado.
Isso vai mal porque a consciência enferma mostra o máximo interesse,
nesse momento, em não recuperar-se da sua enfermidade.
Por isso, uma sociedade infecta inventou a psiquiatria, para defender-
se das investigações feitas por algumas inteligências
extraordinariamente lúcidas, cujas faculdades de adivinhação a
incomodavam.
Gérard de Nerval não estava louco, mas o acusaram de estar louco para
desacreditar certas revelações fundamentais que estava em vias de
fazer;
e, além de acusá-lo, certa noite golpearam sua cabeça, golpearam-no
fisicamente para que esquecesse os fatos monstruosos que ia revelar e
que, por causa deste golpe, passaram do plano mental para o plano
supranatural, pois a sociedade toda, conjurada contra sua consciência,
mostrou-se naquele momento suficientemente forte para obrigá-lo a
esquecer sua verdade.
Não, van Gogh não estava louco, mas suas telas eram jorros de
substância incendiária, bombas atômicas cujo ângulo de visão, ao
contrário de toda a pintura com prestígio na sua época, teria sido
capaz de perturbar seriamente o conformismo espectral da burguesia do
Segundo Império e dos esbirros de Thiers, Gambetta, Félix Faure, assim
como os de Napoleão III.
Pois a pintura de van Gogh ataca, não um determinado conformismo dos
costumes, mas das instituições. E até a natureza exterior, com seus
climas, suas marés e suas tormentas equinociais não pode mais manter a
mesma gravitação depois da passagem de van Gogh pela Terra.
Tanto mais razão para, no plano social, as instituições se decomporem
e a medicina parecer um hediondo e imprestável cadáver que declara
louco a van Gogh.
Diante da lucidez ativa de van Gogh, a psiquiatria nada mais é que um
antro de gorilas obcecados e perseguidos que só dispõem de uma
ridícula terminologia para aplacar os mais espantosos estados de
angústia e asfixia humana,
uma terminologia digna dos seus cérebros tarados.
Com efeito, não existe psiquiatra que não seja um erotômano
declarado.
E não creio em exceções à regra da inveterada erotomania dos
psiquiatras.
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E o que é um autêntico louco?
É um homem que preferiu ficar louco, no sentido socialmente aceito, em
vez de trair uma determinada idéia superior de honra humana.
Assim, a sociedade mandou estrangular nos seus manicômios todos
aqueles dos quais queria desembaraçar-se ou defender-se porque se
recusavam a ser seus cúmplices em algumas imensas sujeiras.
Pois o louco é o homem que a sociedade não quer ouvir e que é impedido
de enunciar certas verdades intoleráveis.
Nesse caso, a reclusão não é sua única arma e a conspiração dos homens
tem outros meios para triunfar sobre as vontades que deseja esmagar.
Além dos feitiços menores dos bruxos de aldeia, há as grandes sessões
de enfeitiçamento global das quais participa, periodicamente, a
consciência em pânico.
Assim, por ocasião de uma guerra, de uma revolução, de um transtorno
social ainda latente, a consciência coletiva é interrogada e se
questiona para emitir um julgamento.
Essa consciência também pode ser provocada e despertada por certos
casos individuais particularmente flagrantes.
Assim foi que houve feitiços coletivos nos casos de Baudelaire, Edgar
Poe, Gérard de Nerval, Nietzsche, Kierkegaard, Hölderlin, Coleridge,
e também no caso de van Gogh.
Podem ser feitos durante o dia, mas geralmente são realizados à
noite.
Então, estranhas forças são despertadas e levadas à abóbada celeste; a
essa espécie de cúpula sombria que, sobre a respiração da humanidade,
constitui a venenosa hostilidade do espírito maligno da maioria das
pessoas.
É assim que as poucas pessoas lúcidas e de boa vontade que se debatem
sobre a terra já se viram, em certas horas da noite ou do dia,
tragadas pela profundeza de autênticos pesadelos em vigília e rodeadas
por uma poderosa sucção, pela poderosa opressão tentacular de uma
espécie de magia cívica que logo será vista aparecendo nos costumes de
modo mais manifesto.
Diante dessa sordidez unânime que de um lado se baseia no sexo e de
outro na missa e. outros ritos psíquicos, não há delírio em passear à
noite com um chapéu coroado por doze velas para pintar uma paisagem
natural;
pois como faria o pobre van Gogh para iluminar-se, como tão bem
assinalou outro dia nosso amigo, o ator Roger Blin?
Quanto à mão assada, trata-se de heroísmo puro e simples;
quanto à orelha cortada, pura lógica direta,
e repito,
um mundo que, cada vez mais, noite e dia, come o
incomível para fazer sua maléfica vontade alcançar seus objetivos
não tem outra alternativa nessa questão
a não ser calar a boca.

POST-SCRIPTUM

Van Gogh não morreu num estado propriamente de delírio,
mas por ter sido corporalmente o campo de batalha de um problema em
tomo do qual o espírito iníquo desta humanidade se debate desde as
origens.
O problema do predomínio da carne sobre o espírito, do corpo sobre a
carne ou do espírito sobre ambos.
E nesse delírio, onde está o lugar do eu humano?
Van Gogh o buscou durante toda sua vida com uma singular energia e
determinação,
e ele não se suicidou num acesso de loucura, de desespero por não
conseguir encontrá-lo,
mas, pelo contrário, ele havia conseguido, tinha descoberto o que era
e quem era quando a consciência coletiva da sociedade, para puni-lo
por ter rompido as amarras,
o suicidou.
E aconteceu com van Gogh como poderia ter acontecido com qualquer um
de nós, por meio de uma bacanal, de uma missa, de uma absolvição ou
qualquer outro rito de consagração, possessão, sucubação ou
incubação.
Assim a sociedade inoculou-se no seu corpo, esta sociedade
absolvida,
consagrada,
santificada
e possuída,
apagou nele a consciência sobrenatural que acabara de adquirir e, como
uma inundação de corvos negros nas fibras da sua árvore interna,
submergiu-o num último vagalhão
e, tomando seu lugar,
o matou.
Pois está na lógica anatômica do homem moderno nunca ter podido viver,
nunca ter podido pensar em viver, a não ser como possuído.


O SUICIDADO PELA SOCIEDADE
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Os corvos pintados por ele, dois dias antes da sua morte, não lhe
abriram as portas de certa glória póstuma, como tampouco o fizeram
suas demais telas, mas abrem para a pintura pintada, ou melhor, para a
natureza não-pintada, a porta oculta de um mais-além possível, de uma
permanente realidade possível através da porta aberta por van Gogh
para um enigmático e sinistro mais-além.
Não é comum ver um homem, com o balaço que o matou já no seu ventre,
povoar uma tela de corvos negros sobre uma espécie de campo talvez
lívido, em
todo caso vazio, no qual a cor de borra de vinho da terra se confronta
violentamente com o amarelo sujo do trigo.
Mas nenhum outro pintor além de van Gogh teria achado, como ele o fez
para pintar seus corvos, esse negro de trufa, esse negro de ?banquete
faustoso? e, ao mesmo, tempo, como que excremencial das asas dos
corvos surpreendidos pelo resplendor declinante do crepúsculo.
E do que se queixa a terra sob as asas dos faustosos corvos, sem
dúvida faustosos só para van Gogh, suntuosos augúrios de um mal que já
não o afetará?
Pois ninguém, até então, havia conseguido converter a terra nesse
trapo sujo empapado de vinho e sangue.
O céu do quadro é muito baixo, aplastrado,
violáceo como as margens do raio.
A insólita franja tenebrosa do vazio que se ergue atrás do relâmpago.
Van Gogh soltou seus corvos, como se fossem os micróbios negros do seu
baço de suicida, a poucos centímetros do alto e como se viessem por
baíxo da tela,
seguindo o negro talho da linha onde o bater da sua soberba plumagem
acrescenta ao turbilhão da tormenta terrestre as ameaças de uma
sufocação vinda do alto.
E contudo o quadro é soberbo.
Soberbo, suntuoso e sereno quadro.
Digno acompanhamento para a morte daquele que em vida fez girarem
tantos sóis ébrios sobre tantos montões de feno rebeldes e que,
desesperado, com um balaço no ventre, não poderia deixar de inundar
com sangue e vinho uma paisagem, empapando a terra com uma última
emulsão, radiante e tenebrosa, com sabor de vinho azedo e vinagre
talhado.
Pois esse é o tom da última tela pintada por van Gogh, que nunca
ultrapassou os limites da pintura e evoca os acordes bárbaros e
abruptos do mais patético, passional e apaixonado drama isabelino.
É isso o que mais me surpreende em van Gogh, o mais pintor de todos os
pintores e aquele que, sem afastar-se do que chamamos de pintura, sem
sair dos limites do tubo, do pincel, do enquadramento do tema e da
tela, sem recorrer à anedota, ao relato, ao drama, à profusa ação de
imagens, à beleza intrínseca do assunto, conseguiu imbuir a natureza e
os objetos de tamanha paixão que qualquer conto fabuloso de Edgar Poe,
Herman Melville, Nathanael Haworthone, Gérard de Nerval, Achim von
Arnim ou Hoffmann em nada superam, no plano psicológico e dramático,
suas modestas telas,
telas que, por outro lado, são quase todas de reduzidas dimensões,
como se respondessem a um propósito deliberado.
Uma lamparina sobre uma cadeira, um sofá de palha verde trançada,
um livro no sofá
e está revelado o drama.
Quem vai entrar?
Será Gaughin ou algum outro fantasma?
A lamparina acesa sobre a cadeira de palha verde indica, ao que
parece, a linha de demarcação luminosa que separa as duas
individualidades antagônicas de van Gogh e Gaughin.
Relatado, o motivo estético da sua divergência talvez não ofereça um
grande interesse, mas serve para indicar a profunda divisão humana
entre os temperamentos de van Gogh e Gauguin.
Penso que Gauguin achava que o artista deveria buscar o símbolo, o
mito, ampliar as coisas da vida até o mito,
enquanto van Gogh achava que é preciso deduzir o mito das coisas mais
modestas da vida.
De minha parte, penso que tinha absoluta razão.
Pois a realidade é tremendamente superior a qualquer história, a
qualquer fábula, a qualquer divindade, a qualquer super-realidade.
Basta ter o gênio para saber interpretá-la.
O que nenhum pintor havia feito antes do pobre van Gogh,
o que nenhum pintor voltará a fazer depois dele,
pois acredito que desta vez,
hoje mesmo,
agora,
neste mês de fevereiro de 1947,
é a própria realidade,
o mito da própria realidade, da própria realidade mítica, que
está se encamando.
Assim, depois de van Gogh ninguém mais soube mover o grande címbalo, o
acorde sobre-humano, perpetuamente sobre-humano pelo qual ressoam os
objetos da vida real
quando se sabe aguçar suficientemente os ouvidos para escutar as ondas
da sua maré crescente.
Assim ressoa a luz da lamparina, a luz da lamparina acesa sobre a
cadeira de palha verde ressoa como a respiração de um corpo amante na
presença de um corpo de enfermo adormecido.
Soa como uma estranha critica, um julgamento profundo e surpreendente
cuja sentença van Gogh pode nos deixar adivinhar mais tarde, bem mais
tarde, no dia em que a luz violeta da cadeira de palha tiver acabado
de submergir o quadro.
E não se pode deixar de reparar nessa incisão de luz arroteada que
morde as barras da grande cadeira turva, do velho sofá cambaio de
palha verde, embora não seja percebida à primeira vista.
Pois o foco de luz está dirigido para outro lugar e sua fonte é
estranhamente obscura, como um segredo do qual só van Gogh tivesse
conservado a chave.
E se van Gogh não tivesse morrido com trinta e sete anos? Não chamo a
Grande Carpideira para me dizer com quantas supremas obras-primas a
pintura teria se enriquecido,
pois não consigo acreditar que depois dos Corvos van Gogh
viesse a pintar mais alguma coisa.
Penso que ele morreu com trinta e sete anos porque já havia,
desgraçadamente, chegado ao término da sua fúnebre e revoltante
história de indivíduo sufocado por um espírito maléfico.
Pois não foi por sua própria causa, por causa da doença da sua própria
loucura, que van Gogh abandonou a vida.
Foi sob a pressão do espírito maléfico que, dois dias antes da sua
morre, passou a chamar-se doutor Gachet, psiquiatra improvisado e
causa direta, eficiente e suficiente da sua morte.
Quando releio as canas de van Gogh para seu irmão, convenço-me
firmemente que o doutor Gachet, ?psiquiatra?, na verdade detestava van
Gogh, pintor; e que o detestava como pintor e acima de tudo como
gênio.
É quase impossível sr ao mesmo tempo médico e uma pessoa honesta, mas
é escandalosamente impossível ser psiquiatra sem estar ao mesmo tempo
marcado pela mais indiscutível loucura: a de ser incapaz de resistir
ao velho reflexo atávico da multidão que converte qualquer homem da
ciência aprisionado na turba numa espécie de inimigo nato e inato de
todo gênio.
A medicina nasceu do mal, se é que não nasceu da doença e não
provocou, pelo contrário, a doença para assim ter uma razão de ser;
mas a psiquiatria nasceu da multidão vulgar de pessoas que quiseram
preservar o mal como fonte da doença e que assim produziram do seu
próprio nada uma espécie de Guarda Suíça para extirpar na raiz o
espírito de rebelião reivindicatória que está na origem do gênio.
Em todo demente há um gênio incompreendido cujas idéias, brilhando na
sua cabeça, apavoram as pessoas e que só no delírio consegue encontrar
uma saída para o cerceamento que a vida lhe preparou.
O doutor Gachet não chegou a dizer a van Gogh que estava ali para
endireitar sua pintura (como ouvi o doutor Gaston Ferdiére, médico-
chefe do manicômio de Rodez, dizer que estava ali para endireitar
minha poesia), porém mandava-o pintar a natureza, sepultar-se na
paisagem pra evitar a tortura de pensar.
No entanto, assim que van Gogh voltava as costas, o doutor Gachet lhe
fechava o interruptor do pensamento.
Como quem não quer nada, mas com esse franzir a cara aparentemente
inocente e depreciativo no qual todo o inconsciente burguês da terra
inscreveu a antiga força mágica de um pensamento cem vezes reprimido.
Fazendo assim, o doutor Gachet não só proibia os malefícios do
problema,
mas também a inseminação sulfurosa,
o tormento da punção que gira na garganta da única passagem
com a qual van Gogh
tetanizado,
van Gogh suspenso sobre o abismo da respiração,
pintava.
Pois van Gogh era uma sensibilidade terrível.
Para convencer-se basta dar uma olhada no seu rosto, sempre ofegante
e, sob alguns aspectos, também um enfeitiçador rosto de açougueiro.
Como o de um antigo açougueiro, agora tranqüilo e aposentado dos
negócios, este rosto em sombras me persegue.
Van Gogh se auto-retratou em várias telas que, por melhor iluminadas
que estivessem, sempre me deram a penosa impressão de que havia uma
mentira ao redor da luz, que haviam retirado de van Gogh uma luz
indispensável para abrir e franquear seu caminho dentro de si.
E esse caminho, certamente, não era o doutor Gachet o mais capacitado
para indicá-lo.
Pois, como já disse, em todo psiquiatra vivente há um sórdido e
repugnante atavismo que lhe faz ver em todo artista e todo gênio à sua
frente um inimigo.
E sei que o doutor Gachet deixou para a história, com relação a van
Gogh, atendido por ele e que terminou por suicidar-se na sua casa, a
impressão de ter sido seu último amigo na terra, uma espécie de
consolador providencial.
No entanto, estou cada vez mais convencido que é ao doutor Gachet de
Auvers-sur-Oise que van Gogh ficou devendo aquele dia, o dia em que se
suicidou em Auvers-sur-Oise;
ficou devendo, repito, ter deixado a vida,
pois van Gogh era uma dessas naturezas dotadas de lucidez superior, o
que lhes permite, em qualquer circunstância, ver mais além, infinita e
perigosamente mais além que o real imediato e aparente dos fatos.
Quero dizer mais além da consciência que a consciência habitualmente
guarda dos fatos.
No fundo desses seus olhos sem pestanas de açougueiro, van Gogh
dedicava-se incansavelmente a uma dessas operações de alquimia sombria
que tomam a natureza como objeto e o corpo humano como vasilhame ou
crisol.
E sei que o doutor Gachet sempre achou que isso cansava van Gogh.
O que no doutor não era o resultado de uma simples preocupação
médica,
mas a manifestação de uma inveja tão consciente quanto inconfessada.
Pois van Gogh tinha chegado a esse estágio de iluminismo no qual o
pensamento em desordem reflui diante das descargas invasoras da
matéria
e no qual pensar já não é consumir-se
e nem sequer é
e no qual nada mais resta senão juntar pedaços do corpo, ou seja
ACUMULAR CORPOS
Já não é mais o mundo do astral, é o mundo da criação direta que é
recuperado desse modo, mais além da consciência e do cérebro.
E nunca vi um corpo sem cérebro fatigar-se por causa de telas
inertes.
Suportes do inerte - essas pontes, esses girassóis, esses teixos,
esses olivais, essas pilhas de feno. já não se movem.
Estão congelados.
Porém, quem poderia sonhá-los mais duros sob o traço seco que põe a
descoberto seu impenetrável estremecimento?
Não, doutor Gachet, uma tela nunca fatigou ninguém. São as forças de
um louco em repouso, não transtornado.
Eu também estou como o pobre van Gogh: parei de pensar, mas a cada dia
dirijo mais de perto formidáveis ebulições internas e gostaria de ver
algum terapeuta qualquer vir repreender-me porque me fatigo.
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No momento de escrever essas linhas vejo o rosto vermelho
ensangüentado do pintor vir na minha direção, numa muralha de
girassóis eviscerados,
numa formidável combustão de fagulhas de jacinto opaco e relvas de
lápis-lázuli.
Tudo isso no meio de qualquer coisa como um bombardeio meteórico de
átomos em que cada partícula se destaca,
prova que van Gogh concebeu suas telas como pintor, apenas
e unicamente como pintor, mas um pintor que era
exatamente por isso
um formidável músico.
Organista de uma tempestade suspensa que ri na límpida natureza, uma
natureza pacificada entre duas tempestades ainda que, como o próprio
van Gogh, mostre claramente o que está para acontecer.
Depois de termos visto isso, podemos dar as costas a qualquer tela
pintada que já não terá mais o que nos dizer. A tempestuosa luz das
telas de van Gogh começa seu sombrio recitativo no momento exato em
que deixamos de contemplá-la.
Exclusivamente pintor, van Gogh, e nada mais,
nada de filosofia, nada de mística, nada de rito, nada de psicurgia
nem de liturgia,
nada de história, nada de literatura nem de poesia,
esses girassóis de ouro bronzeado são pintados; estão pintados como
girassóis e nada mais, mas para entender agora um girassol natural, é
obrigatório passar por van Gogh, assim como para entender uma
tempestade natural,
um céu tempestuoso,
uma planície da natureza,
de agora em diante é impossível não voltar a van Gogh.
Uma tempestade como essa caía sobre o Egito ou sobre as planícies da
Judéia semita;
talvez houvesse trevas semelhantes na Caldéia, Mongólia ou nas
montanhas do Tibet, as quais, pelo que sei, continuam no mesmo lugar.
E, no entanto, quando contemplo essa planície de trigo ou pedra,
branca como um ossário enterrado, sobre a qual pesa aquele velho céu
violáceo,não consigo mais acreditar nas rnontanhas do Tibet.
Pintor, não mais que pintor, van Gogh adotou meios de pintura pura e
nunca os degradou,
quero dizer que, para pintar, limitou-se a usar os recursos que a
pintura lhe oferecia.
Um céu tormentoso,
uma planície branca como cal,
telas, pincéis, seus cabelos ruivos, tubos, sua mão amarela, seu
cavalete,
ainda que todos os lamas do Tibet sacudam sob suas roupas o apocalipse
que prepararam,
van Gogh nos terá feito sentir antecipadamente o cheiro do seu
peróxido de nitrogênio numa tela que contém uma dose suficiente de
catástrofe para obrigar-nos a nos orientar.
Um dia ele decidiu não degradar o tema;
mas, quando se vê um van Gogh, já não se pode acreditar que haja algo
menos degradável que o tema do quadro.
Na mão de van Gogh, o tema de uma lamparina acesa num sofá de palha
com uma armação violácea diz muito mais que toda a série das tragédias
gregas ou dos dramas de Cyril Turner, de Webster ou de Ford que, além
disso, até hoje não foram encenados.
Sem querer fazer literatura, é verdade que vi o rosto de van Gogh,
vermelho de sangue na explosão das suas paisagens, vir a mim,
kohan
taver
tensur
purtan
num incêndio,
num bombardeio,
numa explosão
para vingar a pedra de moinho que o pobre van Gogh, o louco, teve que
carregar durante toda sua vida.
O fardo de pintar sem saber por quê ou para quê.
Pois não é para este mundo,
nunca é para esta terra onde todos, desde sempre, trabalhamos,
lutamos,
uivando de horror, de fome, miséria, ódio, escândalo e nojo e onde
fomos todos envenenados, embora com tudo isso tenhamos sido
enfeitiçados
e finalmente nos suicidamos
como se não fôssemos todos, como o pobre van Gogh, suicidados pela
sociedade!
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PARA ACABAR COM O JULGAMENTO DE DEUS
Este texto deve ser lido pensando-se na sua finalidade original: como
suporte para uma transmissão radiofônica, uma leitura a quatro vozes
entremeada de gritos, uivos, efeitos sonoros com tambores, gongos e
xilofone. Talvez seja, de tudo que Artaud produziu, a realização mais
próxima da sua concepção de Teatro da Crueldade. O próprio Artaud
participou da gravação, dizendo parte dos textos - junto com Roger
Blin, Marie Casarès e Paule Thévenin - e cuidando dos efeitos sonoros,
com enorme dificuldade, pois mal se sustentava em pé (ele teve que
ditar deitado seus últimos textos, Suppôts et Supliciations). Segundo
todas as testemunhas e o depoimento daqueles que ouviram a gravação,
sua ?performance? foi qualquer coisa arrepiante. Na véspera da data
marcada para a transmissão - 2 de fevereiro de 1948 - Wladimir Porché,
diretor da Radiodifusão Francesa, a proibiu. Fernand Pouey, diretor da
programação literária da rádio e responsável pelo programa La Voix des
Poètes, demitiu-se imediatamente. Foram feitas duas transmissões em
circuito fechado, para intelectuais convidados que pediram sua
liberação. O episódio teve uma enorme repercussão, gerando uma
polêmica na imprensa: jornais conservadores, tipo Figaro, justificando
a proibição; os setores mais avançados, contestando-a.
O texto incluído na presente seleção corresponde ao programa
propriamente dito e ao que foi publicado em 1948. Nas edições
seguintes são acrescentados um texto sobre O Teatro da Crueldade, além
de versões e variantes dos demais trechos, bem como um posfácio, canas
e um ?dossier? relatando a polêmica e transcrevendo alguns dos
artigos. Há também um ?Post-Scriptum? que é uma espécie de despedida
de Artaud: Quem sou eu? / De onde venho? / Sou Antonin Artaud / e
basta eu dizê-lo / como só eu o sei dizer e imediatamente / verão meu
corpo atual / voar em pedaços /.e se juntar / sob dez mil aspectos /
notórios / um novo corpo / no qual nunca mais /poderão / me esquecer.
Este corpo novo e inesquecível é a própria obra de Artaud, já que sua
intenção declarada era refazer-se, construir um novo corpo ao escrever
sua obra e ao vivê-la de forma tão intensa e radical.
A 25 de fevereiro de 1948 Artaud escreve para Paule Thévenin dizendo.
Paule, estou triste e desesperado / meu corpo dói de alto a baixo /
tenho a impressão que as pessoas se decepcionaram com a minha
transmissão de rádio. / Onde estiver a máquina / estará sempre o
abismo e o nada / há uma interposição técnica que deforma e aniquila o
que fazemos ... / é por isso que nunca mais mexerei com o rádio / e de
agora em diante me dedicarei novamente / ao teatro / tal como o
imagino / um teatro de sangue / um teatro em que cada representação
terá feito algo / corporalmente / para aqueles que representam e
também para aqueles que vêm ver os outros representarem Eu tive uma
visão esta tarde - eu vi aqueles que me seguirão e que ainda não estão
completamente encarnados porque os porcos, como aquele do restaurante
de ontem i noite, comem demais Alguns comem demais - outros, como eu,
não conseguem comer sem cuspir. / Todo seu / Antonin Artaud.
Poucos dias depois, a 4 de março, o jardineiro que trazia o café da
manhã para Artaud o encontrou morto ao pé da cama.
Para Acabar com o julgamento de Deus
kré Tudo isso deverá puc te
kré ser arranjado puk te
pek muito precisamente li le
kre numa sucessão pec ti le
e fulminante kruk
pte
Fiquei sabendo ontem
(devo estar desatualizado ou então é apenas um boato, uma dessas
intrigas divulgadas entre a pia e a privada, quando as refeições
ingurgitadas são mais uma vez devidamente expulsas para a latrina)
fiquei sabendo ontem
de uma das mais sensacionais dentre essas práticas das escolas
públicas americanas
sem dúvida daquelas responsáveis por esse país considerar-se na
vanguarda do progresso.
Parece que, entre os exames e testes requeridos a uma criança que
ingressa na escola pública, há o assim chamado teste do líquido
seminal ou do esperma,
que consiste em recolher um pouco do esperma da criança recém-chegada
para ser colocado numa proveta
e ficar à disposição para experimentos de inseminação artificial que
posteriormente venham a ser feitos.
Pois cada vez mais os americanos sentem falta de braços e crianças ou
seja, não de operários
mas de soldados
e eles querem a todo custo e por todos os meios possíveis fazer e
produzir soldados
com vista a todas as guerras planetárias que poderão travar-se a
seguir
e que pretendem demonstrar pela esmagadora virtude da força
a superioridade dos produtos americanos
e dos frutos do suor americano em todos os campos de atividade e
da superioridade do possível dinamismo da força.
Pois é necessário produzir,
é necessário, por todos os meios de atividade humana, substituir a
natureza onde esta possa ser substituída,
é necessário abrir mais espaço para a inércia humana,
é necessário ocupar os operários
é necessário criar novos campos de atividade
onde finalmente será instaurado o reino de todos os falsos produtos
manufaturados
todos os ignóbeis sucedâneos sintéticos
onde a maravilhosa natureza real não tem mais lugar
cedendo finalmente e vergonhosamente diante dos triunfantes produtos
artificiais
onde o esperma de todas as usinas de fecundação artificial
operará milagres na produção de exércitos e navios de guerra.
Não haverá mais frutos, não haverá mais árvores, não haverá
mais plantas, farmacológicas ou não, e conseqüentemente não haverá
mais alimentos,
só produtos sintéticos até dizer chega,
entre os vapores,
entre os humores especiais da atmosfera, em eixos especiais de
atmosferas extraídas violentamente e sinteticamente da resistência de
uma natureza que da guerra só conheceu o medo.
E viva a guerra, não é assim?
Pois é assim - não é? - que os americanos vão se preparando passo a
passo para a guerra.
Para defender essa insensata manufatura da concorrência que não pode
deixar de aparecer por todos os lados,
é preciso ter soldados, exércitos, aviões, encouraçados,
daí o esperma
no qual os governos americanos tiveram o descaramento de pensar.
Pois temos mais de um inimigo
que nos espreita, meu filho,
a nós, os capitalistas natos
e entre esses inimigos
a Rússia de Stalin
à qual também não faltam homens em armas.
Tudo isso está muito bem
mas eu não sabia que os americanos eram um povo tão belicoso.
Para guerrear é preciso, levar tiros
e embora tenha visto muitos americanos na guerra
eles sempre tiveram enormes exércitos de tanques, aviões,
encouraçados, que lhes serviam de escudo.
Vi as máquinas combatendo muito
mas só infinitamente longe
lá atrás
vi os homens que as conduziam.
Diante desse povo que dá de comer aos seus cavalos, gado e burros as
últimas toneladas de morfina autêntica que ainda restam, substituindo-
a por produtos sintéticos feitos de fumaça,
prefiro o povo que come da própria terra o delírio do qual nasceram,
refiro-me aos Taraumaras
comendo o Peiote rente ao chão
à medida que nasce,
que matam o sol para instaurar o reino da noite negra
e que esmagam a cruz pra que os espaços do espaço nunca mais possam
encontrar-se e cruzar-se.
E assim vocês irão ouvir a dança de TUTUGURI.
TUTUGURI
O Rito do Sol Negro
E lá embaixo, no pé da encosta amarga,
cruelmente desesperada do coração,
abre-se o círculo das seis cruzes
bem lá embaixo
como se incrustada na terra amarga,
desincrustada do imundo abraço da mãe
que baba.
A terra do carvão negro
é o único lugar úmido
nessa fenda de rocha.
O Rito é o novo sol passar através de sete pontos antes de explodir no
orifício da terra.
Há seis homens,
um para cada sol
e um sétimo homem
que é o sol
cru
vestido de negro e carne viva.
Mas este sétimo homem
é um cavalo,
um cavalo com um homem conduzindo-o.
Mas é o cavalo
que é o sol
e não o homem.
No dilaceramento de um tambor e de uma trombeta longa,
estranha,
os seis homens
que estavam deitados
tombados no rés-do-chão,
brotaram um a um como girassóis,
não sóis
porém solos que giram,
lótus d'água,
e a cada um que brota
corresponde, cada vez mais sombria
e refreada
a batida do tambor
até que de repente chega a galope, a toda velocidade
o último sol,
o primeiro homem,
o cavalo negro com um
homem nu,
absolutamente nu
e virgem
em cima.
Depois de saltar, eles avançam em círculos crescentes
e o cavalo em carne viva empina-se
e corcoveia sem parar
na crista da rocha
até os seis homens
terem cercado
completamente
as seis cruzes.
Ora, o tom maior do Rito é precisamente
A ABOLIÇÃO DA CRUZ
Quando terminam de girar
arrancam
as cruzes do chão
e o homem nu
a cavalo
ergue
uma enorme ferradura
banhada no sangue de uma punhalada.

A BUSCA DA FECALIDADE

Onde cheira a merda
cheira a ser.
O homem podia muito bem não cagar,
não abrir a bolsa anal
mas preferiu cagar
assim como preferiu viver
em vez de aceitar viver morto.
Pois para não fazer cocô
teria que consentir em
não ser,
mas ele não foi capaz de se decidir a perder o ser,
ou seja, a morrer vivo.
Existe no ser
algo particularmente tentador para o homem
algo que vem a ser justamente
O COCÔ
(aqui rugido)
Para existir basta abandonar-se ao ser
mas para viver
é preciso ser alguém
e para ser alguém
é preciso ter um OSSO,
é preciso não ter medo de mostrar o osso
e arriscar-se a perder a carne.
O homem sempre preferiu a carne
à terra dos ossos.
Como só havia terra e madeira de ossos
ele viu-se obrigado a ganhar sua carne,
só havia ferro e fogo
e nenhuma merda
e o homem teve medo de perder a merda
ou antes desejou a merda
e para ela sacrificou o sangue.
Para ter merda,
ou seja, carne
onde só havia sangue
e um terreno baldio de ossos
onde não havia mais nada para ganhar
mas apenas algo para perder, a vida.
o reche modo
to edire
de za
tau dari
do padera coco
Então o homem recuou e fugiu.
E então os animais o devoraram.
Não foi uma violação,
ele prestou-se ao obsceno repasto.
Ele gostou disso
e também aprendeu
a agir como animal
e a comer seu rato
delicadamente.
E de onde vem essa sórdida abjeção?
Do fato de o mundo ainda não estar formado
ou de o homem ter apenas uma vaga idéia do que seja o mundo
querendo conservá-la eternamente?
Deve-se ao fato de o homem
ter um belo dia
detido
idéia do mundo.
Dois caminhos estavam diante dele:
o do infinito de fora,
o do ínfimo de dentro.
E ele escolheu o ínfimo de dentro
onde basta espremer o pâncreas,
a língua,
o ânus
ou a glande.
E deus, o próprio deus espremeu o movimento.
É deus um ser?
Se o for, é merda.
Se não o for,
não é.
Ora, ele não existe
a não ser como vazio que avança com todas as suas formas
cuja mais perfeita imagem
é o avanço de um incalculável número de piolhos.
?O Sr. está louco, Sr. Artaud? E então a missa??
Eu renego o batismo e a missa.
Não existe ato humano
no plano erótico interno
que seja mais pernicioso que a descida
do pretenso jesus-cristo
nos altares.
Ninguém me acredita
e posso ver o público dando de ombros
mas esse tal cristo é aquele que
diante do percevejo deus
aceitou viver sem corpo
quando uma multidão
descendo da cruz
à qual deus pensou tê-los pregado há muito tempo,
se rebelava
e armada com ferros,
sangue,
fogo e ossos
avançava desafiando o Invisível
para acabar com o JULGAMENTO DE DEUS.

http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2007/08/391738.shtml

CONCLUSÃO
- E para que serviu essa emissão radiofônica, Sr. Artaud?
- Em primeiro lugar para denunciar um certo número de sujeiras sociais
oficialmente sacramentadas e aceitas:
1º essa emissão do esperma infantil doado por crianças para a
fecundação artificial de fetos ainda por nascer e que virão ao mundo
dentro de um ou mais séculos.
2° para denunciar este mesmo povo americano que ocupou completamente
todo o continente dos índios e que faz renascer o imperialismo
guerreiro da antiga América, o qual fez com que o povo indígena
anterior a Colombo fosse execrado por toda a humanidade precedente.
3° Sr. Artaud, que coisas estranhas o Sr. está dizendo!
4° Sim, estou dizendo coisas estranhas, pois contrariamente ao que
todos foram levados a crer, os povos anteriores a Colombo eram
estranhamente civilizados e isso pelo fato de conhecerem uma forma de
civilização baseada exclusivamente no princípio da crueldade.
5° E o que, exatamente, vem a ser isso de crueldade?
6° Isso eu não sei responder.
7° Crueldade significa extirpar pelo sangue e através do sangue a
deus, o acidente bestial da anormalidade humana inconsciente, onde
quer que se encontre.
8° O homem, quando não é reprimido, é um animal erótico, há nele um
frêmito inspirado, uma espécie de pulsação que produz inumeráveis
animais os quais são formas que os antigos povos terrestres
universalmente atribuíam a deus.
Daí surgiu o que chamaram de espírito.
Ora, esse espírito originário dos índios americanos reaparece hoje em
dia sob aspectos científicos que meramente acentuam seu mórbido poder
infeccioso, seu grave estado de vício, um vício no qual pululam
doenças
pois, riam-se à vontade,
isso que chamam de micróbios
é deus,
e sabe o que os americanos e os russos usam para fazer seus átomos?
Usam os micróbios de deus.
- O Sr. está louco, Sr. Artaud.
Está delirando.
- Não estou delirando.
Não estou louco.
Afirmo que reinventaram os micróbios para impor uma nova idéia de
deus.
Descobriram um novo meio de fazer deus aparecer em toda sua nocividade
microbiana:
Inoculando-o no coração
onde é mais querido pelos homens
sob a forma de uma sexualidade doentia
nessa aparência sinistra de crueldade mórbida que ostenta sempre que
se compraz em tetanizar e enlouquecer a humanidade como agora.
Ele usa o espírito de pureza de uma consciência que continuou cândida
como a minha para asfixiá-la com todas as falsas aparências que
espalha universalmente pelos espaços e é por isso que Artaud, o Momo,
pode ser confundido com alguém que sofre de alucinações.
- O que o Sr. Artaud quer dizer com isso?
- Quero dizer que descobri a maneira de acabar com esse macaco de uma
vez por todas
e já que ninguém acredita mais em deus, todos acreditam cada vez mais
no homem.
Assim, agora e preciso emascular o homem.
- Como?
Como assim?
Sob qualquer ângulo o Sr. não passa de um maluco, um doido varrido.
- Colocando-o de novo, pela última vez, na mesa de autópsia para
refazer sua anatomia.
O homem é enfermo porque é mal construído.
Temos que nos decidir a desnudá-lo para raspar esse animalúculo que o
corrói mortalmente,
deus
e juntamente com deus
os seus órgãos
Se quiserem, podem meter-me numa camisa de força
mas não existe coisa mais inútil que um órgão.
Quando tiverem conseguido um corpo sem órgãos,
então o terão libertado dos seus automatismos
e devolvido sua verdadeira liberdade.
Então poderão ensiná-lo a dançar às avessas
como no delírio dos bailes populares
e esse avesso será
seu verdadeiro lugar.
MANIFESTOS E CARTAS DO PERÍODO SURREALISTA
(1924-27)
Os textos a seguir estão no Volume I da Obra Completa e são
posteriores à correspondência com Jacques Riviére, ou seja, à decisão
tomada por Artaud de escrever de forma mais livre e menos ?literária?.
Toda escrita é porcaria... faz parte do Le Pèse Nerfs, coletânea de
textos contemporânea de L?Ombilic des Limbes e de L?Art et La Mort,
obras nas quais Artaud junta cartas, manifestos, artigos, depoimentos
e poemas em prosa. Dentre estes deve-se destacar seus textos sobre
Abelardo e Heloisa, nos quais é abordada a complexa e contraditória
relação entre amor, linguagem, corpo e sexo, bem como os belos poemas
em prosa sobre Paolo Ucello (a pintura sempre inspirou Artaud, e são
muitos os seus textos voltados para a obra de algum artista plástico)
e a antológica Lettre à la Voyante, carta que é também um poema
lírico. Dentre os depoimentos, o mais importante é o Fragments d'un
Journal d?Enfer, no qual fala da ?paralisia? que o ameaça, da sua dor,
do ?nó de asfixia central?, proclamando que: Acredito em conjurações
espontâneas. Nos caminhos por onde meu sangue me arrasta, é impossível
que um dia eu não encontre uma verdade... Escolhi o domínio da dor e
da sombra assim como outros escolheram o do brilho e da acumulação da
matéria. Não trabalho na extensão de um domínio qualquer. Trabalho
unicamente na duração.
As cartas-manifesto são do número 3 de La Rèvolution Surréaliste.
Artaud afirmou, no fim da vida, que elas não eram integralmente da sua
autoria e que Robert Desnos teria redigido o manifesto contra os
psiquiatras. Ao serem publicados, saíram efetivamente como texto
coletivo, subscrito pelo grupo surrealista. No entanto, esses textos -
como todos os demais que ele escreveu nesse período - são muito mais
Artaud que Surrealismo. Na verdade, apresentam uma antevisão, um
programa, expondo os temas que Artaud desenvolveria - e viveria - ao
longo da sua obra e da sua vida. A Carta ao Papa antecipa o Para
Acabar com o julgamento de Deus e todos as suas demais diátribes
contra o Cristianismo; o manifesto anti-manicômios, a sua passagem
pelos hospícios entre 1937 e 1946; o manifesto contra a proibição do
ópio é retomado nas Cartas de Rodez; a resposta à ?enquête? sobre o
suicídio levanta a questão dos suicidados pela sociedade, desenvolvida
no Van Gogh.
No mesmo número do La Révolution Surréaliste é publicado o relatório
das atividades do Bureau de Recherches Surréalistes, que termina com a
seguinte afirmação. Aqui se instala uma certa fé, mas que os
coprolálicos me ouçam, os afásicos e em geral todos os descrentes das
palavras e do verbo, os párias do pensamento. Novamente, uma
declaração de princípios muito mais do próprio Artaud que do movimento
surrealista.
O Pesa-Nervos
(trecho)
Toda escrita é porcaria.
Todos aqueles que saem de um lugar qualquer, para tentar explicar seja
lá o que lhes passa no pensamento, são porcos.
Toda gente literária é porca, especialmente essa do nosso tempo.
Todos os que possuem pontos de referência no espírito, quero dizer, de
um lado certo da cabeça, sobre lugares bem demarcados do cérebro;
todos aqueles que são mestres da língua; todos aqueles para quem as
palavras têm sentido; todos aqueles para quem existem elevações da
alma e correntes do pensamento, aqueles que são o espírito da sua
época e que nomeiam essas correntes do pensamentos; penso nas suas
mesquinhas atividades precisas e nesse ranger de autômatos vomitado
para todos os lados por seu espírito;
- são porcos.
Aqueles para os quais certas palavras têm sentido e certas maneiras de
ser; aqueles que têm tão boas maneiras; aqueles para quem os
sentimentos podem ser classificados e que discutem um grau qualquer
das suas hilariantes classificações, aqueles que ainda acreditam em ?
termos?; os que mexem com as ideologias de destaque na época; aqueles
cujas mulheres falam tão bem, e suas mulheres também, que falam tão
bem, e falam das tendências da sua época; os
que ainda acreditam numa orientação do espírito; os que seguem
caminhos, que acenam com nomes, que fazem gritar as páginas dos
livros;
- esses são os piores porcos.
Moço, como você está sendo gratuito!
Não; penso nos críticos barbudos.
Já falei: nada de obras, nada de língua, nada de palavras, nada de
espírito, nada.
Nada a não ser um belo Pesa-Nervos.
Uma espécie de parada incompreensível e bem levantada no meio de tudo
no espírito.
E não esperem que eu nomeie esse tudo, diga em quantas partes ele se
divide, qual é seu peso, que eu entre nessa, que me ponha a discutir
esse todo, e que discutindo me perca e assim comece, sem saber, a
PENSAR - e que se esclareça, que viva, que se atavie com uma multidão
de palavras, todas bem untadas de sentido, todas diferentes, capazes
de expor todas a atitudes, todas as sutilezas de um pensamento tão
sensível e penetrante.
Ah, esses estados nunca nomeados, essas situações eminentes da alma;
ah, esses intervalos do espírito; ah, essas minúsculas falhas que são
o pão cotidiano das minhas horas; ah, essa formigante população de
dados - são sempre as mesmas palavras que eu uso e na verdade pareço
não avançar muito no meu pensamento, mas na realidade avanço muito
mais que vocês, burros barbados, porcos pertinentes, mestres do falso
verbo, masturbadores com fotografias, folhetinistas, rés-do-chão,
engordadores de gado, entomologistas, chaga da minha língua.
Já disse, eu perdi a fala, isso não é motivo para que persistam, para
que insistam na fala.
Chega, serei compreendido daqui a dez anos pelas pessoas que então
estiverem fazendo o que vocês fazem agora. Então conhecerão meus
mananciais de água fervente, verão minhas geleiras, aprenderão a
neutralizar meus venenos, entenderão os jogos da minha alma.
Então todos os meus cabelos estarão grudados na cal da vala comum,
todas as minhas velas mentais; então enxergarão meu bestiário e minha
mística terá se transformado em bandeira. Então verão as juntas das
pedras fumegarem, arborescentes ramalhetes de olhos mentais se
cristalizarão em glossários; então verão tombarem aerólitos de pedra;
então verão cordas; então compreenderão a geometria sem espaço;
entenderão a configuração do espírito, e saberão como perdi meu
espírito.
Então compreenderão por que meu espírito não está mais aí; então verão
todas as línguas se paralisarem, todos os espíritos ressecarem, todas
as línguas se encarquilharem, os vultos humanos se achatarem e
desinflarem como se aspirados por ventosas sugadoras; e esta
lubrificante membrana continuará flutuando no ar, esta membrana
lubrificante e cáustica, esta membrana com dupla espessura, inúmeros
níveis, uma infinidade de fendas, esta melancólica e
vítrea membrana, porém tão sensível, tão pertinente, tão capaz de se
desdobrar, se multiplicar, de dar voltas com sua reverberação de
fendas, sentidos, estupefacientes, irrigações penetrantes e
contagiosas;
então acharão que está tudo muito bem,
e não precisarei mais falar.
O Suicídio É Uma Solução?
(resposta a uma enquête surrealista)
Não, o suicídio ainda é uma hipótese. Quero ter o direito de duvidar
do suicídio assim como de todo o restante da realidade. É preciso, por
enquanto e até segunda ordem, duvidar atrozmente, não propriamente da
existência, que está ao alcance de qualquer um, mas da agitação
interior e da profunda sensibilidade das coisas, dos atos, da
realidade. Não acredito em coisa alguma à qual eu não esteja ligado
pela sensibilidade de um cordão pensante, como que meteórico e ainda
assim sinto falta de mais meteoros em ação. A existência construída e
sensível de qualquer homem me aflige e decididamente abomino toda
realidade. O suicídio nada mais é que a conquista fabulosa e remota
dos homens bem-pensantes, mas o estado propriamente dito do suicídio
me é incompreensível. O suicídio de um neurastênico não tem qualquer
valor de representação, mas sim o estado de espírito de um homem que
efetivamente tiver determinado seu suicídio, suas circunstâncias
materiais e o momento do seu desfecho maravilhoso. Desconheço o que
sejam as coisas, ignoro todo estado humano, nada no mundo se volta
para mim, dá voltas em mim. Tolero terrivelmente mal a vida. Não
existe estado que eu possa atingir. E certamente já morri faz tempo,
já me suicidei. Me suicidaram, quero dizer. Mas que achariam de um
suicídio anterior, de um suicídio que nos fizesse dar a volta, porém
para o outro lado da existência não para o lado da morte? Só este
teria valor para mim. Não sinto o apetite da morte, sinto o apetite de
não ser, de jamais ter caído neste torvelinho de imbecilidades, de
abdicações, de renúncias e de encontros obtusos que é o eu de Antonin
Artaud, bem mais frágil que ele. O eu deste enfermo errante que de vez
em quando vem oferecer sua sombra sobre a qual ele já cuspiu e faz
muito tempo, este eu capenga, apoiado em muletas, que se arrasta; este
eu virtual, impossível e que todavia se encontra na realidade. Ninguém
como ele sentiu a fraqueza que é a fraqueza principal, essencial da
humanidade. A ser destruída, a não existir.
Segurança Pública
A LIQUIDAÇÃO DO ÓPIO
Tenho a intenção declarada de encerrar o assunto de uma vez por todas,
para que não venham mais nos encher a paciência com os assim chamados
perigos da droga.
Meu ponto de vista é nitidamente anti-social.
Só há uma razão para atacar o ópio. Aquela do perigo que seu uso
acarreta ao conjunto da sociedade.
Acontece que este perigo é falso.
Nascemos podres de corpo e alma, somos congenitamente inadaptados;
suprimam o ópio não suprimirão a necessidade do crime, os cânceres do
corpo e da alma, a inclinação para o desespero, o cretinismo inato, a
sífilis hereditária, a fragilidade dos instintos; não impedirão que
haja almas destinadas a seja qual for o veneno, veneno da morfina,
veneno da leitura, veneno do isolamento, veneno do onanismo, veneno
dos coitos repetidos, veneno da arraigada fraqueza da alma, veneno do
álcool, veneno do tabaco, veneno da anti-sociabilidade. Há almas
incuráveis e perdidas para o restante da sociedade. Suprimam-lhes um
dos meios para chegar à loucura: inventarão dez mil outros. Criarão
meios mais sutis, mais selvagens; meios absolutamente desesperados. A
própria natureza é antisocial na sua essência - só por uma usurpação
de poderes que o corpo da sociedade consegue reagir contra a tendência
natural da humanidade.
Deixemos que os perdidos se percam: temos mais o que fazer que tentar
uma recuperação impossível e ademais inútil, odiosa e prejudicial.
Enquanto não conseguirmos suprimir qualquer uma das causas do
desespero humano, não teremos o direito de tentar a supressão dos
meios pelos quais o homem tenta se livrar do desespero.
Pois seria preciso, inicialmente, suprimir esse impulso natural e
oculto, essa tendência ilusória do homem que o leva a buscar um meio,
que lhe dá a idéia de buscar um meio para fugir às suas dores.
Além do mais, os perdidos são perdidos por sua própria natureza; todas
as idéias de regeneração moral de nada servem; há um determinismo
inato, há uma incurabilidade definitiva no suicídio, no crime, na
idiotia na loucura; há uma invencível corneação entre os homens; há
uma fragilidade do caráter; há uma castração do espírito.
A afasia existe; a tabes dorsalis existe; a meningite sifilítica, o
roubo, a usurpação. O inferno já é deste mundo e há homens que são
desgraçados, fugitivos do inferno, foragidos destinados a recomeçar
eternamente sua fuga. E por aí afora.
O homem é miserável, a carne é fraca, há homens que sempre se
perderão. Pouco importam os meios para perder-se: a sociedade nada tem
a ver com isso.
Demonstramos - não é? - que ela nada pode, que ela perde seu tempo,
que ela apenas insiste em arraigar-se na sua estupidez.
Aqueles que ousam encarar os fatos de frente sabem - não é verdade? -
os resultados na proibição no álcool nos Estados Unidos.
Uma superprodução da loucura: cerveja com éter, álcool carregado com
cocaína vendido clandestinamente, o pileque multiplicado, uma espécie
de porre coletivo. Em suma, a lei do fruto proibido.
A mesma coisa com o ópio.
A proibição, que multiplica a curiosidade, só serviu aos rufiões da
medicina, do jornalismo, da literatura. Há pessoas que construíram
fecais e industriosas reputações sobre sua pretensa indignação contra
a inofensiva e ínfima seita dos amaldiçoados da droga (inofensiva
porque ínfima e porque sempre uma exceção), essa minoria de
amaldiçoados em espírito, alma e doença.
Ah! Como o cordão umbilical da moralidade está bem atado neles! Desde
a salda do ventre materno - não é? - jamais pecaram. São apóstolos,
descendentes de sacerdotes: só falta saber como se abastecem da sua
indignação, quanto levam nessa, o que ganham comi isso.
E, de qualquer forma, essa não é a questão.
Na verdade, o furor contra o tóxico e as estúpidas leis que vêm daí:
1º É inoperante contra a necessidade do tóxico que, saciada ou
insaciada, é inata à alma e induziria a gestos decididamente anti-
sociais mesmo se o tóxico não existisse.
2º Exaspera a necessidade social do tóxico e o transforma em vício
secreto.
3º Agrava a doença real e esta é a verdadeira questão, o nó vital, o
ponto crucial:
Desgraçadamente para a doença, a medicina existe.
Todas as leis, todas as restrições, todas as campanhas contra os
estupefacientes somente conseguirão subtrair a todos os necessitados
da dor humana, que têm direitos imprescritíveis no plano social, o
lenitivo dos seus sofrimentos, um alimento que para eles é mais
maravilhoso que o pão, e o meio, enfim, de reingressar na vida. Antes
a peste que a morfina, uiva a medicina oficial; antes o inferno que a
vida. Só imbecis como J. P. Liausu (que além disso é um monstrengo
ignorante)* para querer que os doentes se macerem na sua doença.
E é aqui que a canalhice do personagem abre o jogo e diz a que vem: em
nome, pretende ele, do bem coletivo.
Suicidem-se, desesperados, e vocês, torturados de corpo e alma, percam
a esperança. Não há mais salvação no mundo. O mundo vive dos seus
matadouros.
E vocês, loucos lúcidos, sifilíticos, cancerosos, meningíticos
crônicos, vocês são incompreendidos. Há um ponto em vocês que médico
algum jamais entenderá e é este ponto, a meu ver, que os salva e torna
augustos, puros e maravilhosos: vocês estão além da vida, seus males
são desconhecidos pelo
* J.P. Liausu: intelectual conservador que chefiou uma campanha anti-
cocaína na época.
homem comum, vocês ultrapassaram o plano da normalidade e daí a
severidade demonstrada pelos homens, vocês envenenam sua
tranqüilidade, corroem sua estabilidade. Suas dores irreprimíveis são,
em essência, impossíveis de serem enquadradas em qualquer estado
conhecido, indescritíveis com palavras. Suas dores repetidas e
fugidias, dores insolúveis, dores fora do pensamento, dores que não
estão no corpo nem na alma mas que têm a ver com ambos. E eu, que
participo dessas dores, pergunto, quem ousaria dosar nosso calmante?
Em nome de que clareza superior, almas nossas, nós que estamos na
verdadeira raiz da clareza e do conhecimento? E isso, pela nossa
postura, pela nossa insistência em sofrer. Nós, a quem a dor fez
viajar por nossas almas em busca de um lugar mais tranqüilo ao qual
pudéssemos nos agarrar, em busca da estabilidade no sofrimento como os
outros no bem-estar. Não somos loucos, somos médicos maravilhosos,
conhecemos a dosagem da alma, da sensibilidade, da medula, do
pensamento. Que nos deixem em paz, que deixem os doentes em paz, nada
pedimos aos homens, só queremos o alívio das nossas dores. Avaliamos
nossas vidas, sabemos que elas admitem restrições da parte dos demais
e, principalmente, da nossa parte. Sabemos a que concessões, a que
renúncias a nós mesmos, a que paralisias da sutileza nosso mal nos
obriga a cada dia. Por enquanto, não nos suicidaremos. Esperando que
nos deixem em paz.
À Mesa
Abandonem as cavernas do ser. Venham. O espírito respira para fora do
espírito. É tempo de deixarem suas moradas. Cedam ao Todo-Pensamento.
O Maravilhoso está na raiz do espírito.
Nós estamos por dentro do espírito, no interior da cabeça. Idéia,
lógica, ordem, Verdade (com V maiúsculo), Razão, deixamos tudo isso ao
nada da morte. Cuidado com suas lógicas, Senhores, cuidado com suas
lógicas, não sabem até onde pode nos levar nosso ódio à lógica.
E só por um desvio da vida, por uma parada imposta ao espírito, que se
pode fixar a vida na sua fisionomia dita real, mas a realidade não
está aí. Por isso é desnecessário, a nós que aspiramos a uma certa
eternidade surreal, que faz muito tempo já não nos consideramos mais
no presente e que nos assemelhamos a nossas sombras reais, é
desnecessário virem nos aborrecer em espírito.
Quem nos julga não nasceu para o espírito, para esse espírito que
desejamos expressar e que está, para nós, fora do que vocês chamam de
espírito. Não precisam chamar nossa atenção para as cadeias que nos
prendem à petrificante imbecilidade do espírito. Descobrimos um bicho
novo. Os céus respondem à nossa atitude de insensato absurdo. Esse seu
hábito de voltar as costas às questões não impedirá que, no dia certo,
os céus se abram e uma nova língua se instale no meio das suas
elucubrações imbecis, quero dizer, das elucubrações imbecis dos seus
pensamentos.
Há signos no Pensamento. Nossa atitude de absurdo e morte é a da maior
boa-vontade. Através das fendas de uma realidade doravante inviável,
fala um mundo voluntariamente sibilino.
Sim, eis agora o único uso ao qual poderá prestar-se a linguagem, como
instrumento para a loucura, para a eliminação do pensamento, para a
ruptura, dédalo dos desregramentos e não como um DICIONÁRIO para o
qual certos patifes das imediações do Seria canalizam suas
contradições espirituais.
Carta aos Reitores das Universidades Européias
Senhores Reitores,
Na estreita cisterna que os Srs. chamam de ?Pensamento?, os raios
espirituais apodrecem como palha.
Chega de jogos da linguagem, de artifícios da sintaxe, de
prestidigitações com fórmulas, agora é preciso encontrar a grande Lei
do coração, a Lei que não seja uma lei, uma prisão, mas um guia para o
Espírito perdido no seu próprio labirinto. Além daquilo que a ciência
jamais conseguirá alcançar, lá onde os feixes da razão se partem
contra as nuvens, existe esse labirinto, núcleo central para o qual
convergem todas as forças do ser, as nervuras últimas do Espírito.
Nesse dédalo de muralhas móveis e sempre removidas, fora de todas as
formas conhecidas do pensamento, nosso Espírito se agita, espreitando
seus movimentos mais secretos e espontâneos, aqueles com um caráter de
revelação, essa ária vinda de longe, caída do céu.
Mas a raça dos profetas extinguiu-se. A Europa cristaliza-se, mumifica-
se lentamente sob as ataduras das suas fronteiras, das suas fábricas,
dos seus tribunais, das suas universidades. O Espírito congelado racha
entre lâminas minerais que se estreitam ao seu redor. A culpa é dos
vossos sistemas embolorados, vossa lógica de 2 mais 2 fazem 4; a culpa
é vossa, Reitores presos no laço dos silogismos. Os Srs. fabricam
engenheiros, magistrados, médicos aos quais escapam os verdadeiros
mistérios do corpo, as leis cósmicas do ser, falsos sábios, cegos para
o além-terra, filósofos com a pretensão de reconstituir o Espírito. O
menor ato de criação espontânea e um mundo mais complexo e revelador
que qualquer metafísica.
Deixem-nos pois, os Senhores nada mais são que usurpadores. Com que
direito pretendem canalizar a inteligência, dar diplomas ao Espírito?
Os Senhores nada sabem do Espírito, ignoram suas ramificações mais
ocultas e essenciais, essas pegadas fósseis tão próximas das nossas
próprias origens, rastros que às vezes conseguimos reconstituir sobre
as mais obscuras jazidas dos nossos cérebros.
Em nome da vossa própria lógica, voz dizemos: a vida fede, Senhores.
Olhem para seus rostos, considerem seus produtos. Pelo crivo dos
vossos diplomas passa uma juventude abatida, perdida. Os Senhores são
a chaga do mundo e tanto melhor para o mundo, mas que ele se acredite
um pouco menos à frente da humanidade.
Carta ao Papa
O Confessionário não é você, oh Papa, somos nós; entenda-nos e que os
católicos nos entendam.
Em nome da Pátria, em nome da Família, você promove a venda das almas,
a livre trituração dos corpos.
Temos, entre nós e nossas almas, suficientes caminhos para percorrer,
suficientes distâncias para que neles se interponham os teus
sacerdotes vacilantes e esse amontoado de doutrinas aforras das quais
se nutrem todos os castrados do liberalismo mundial.
Teu Deus católico e cristão que, como todos os demais deuses, concebeu
todo o mal:
1º Você o enfiou no bolso.
2º Nada temos a fazer com teus cânones, índex, pecado, confessionário,
padralhada, nós pensamos em outra guerra, guerra contra você, Papa,
cachorro.
Aqui o espírito se confessa para o espírito.
De ponta a ponta do teu carnaval romano, o que triunfa é o ódio sobre
as verdades imediatas da alma, sobre essas chamas que chegam a
consumir o espírito. Não existem Deus, Bíblia, Evangelho, não existem
palavras que possam deter o espírito.
Nós não estamos no mundo, oh Papa confinado no mundo, nem a terra nem
Deus falam de você.
O mundo é o abismo da alma, Papa caquético, Papa alheio à alma, deixe-
nos nadar em nossos corpos, deixe nossas almas em nossas almas, não
precisamos do teu facão de claridades.
Carta ao Dalai Lama
Somos teus mui fiéis servidores, ó Grande Lama, concede-nos, envia-nos
tuas luzes numa linguagem que nossos contaminados espartos de europeus
possam entender e, se necessário, transforma nosso Espírito, dá-nos um
espírito voltado para esses cumes perfeitos onde o Espírito do Homem
já não sofre mais.
Dá-nos um Espírito sem hábitos, um espírito verdadeiramente congelado
dentro do Espírito, ou então um Espírito com hábitos mais puros, os
teus, se forem bons para a liberdade.
Estamos rodeados de papas decrépitos, literatos, críticos, cachorros;
nosso Espírito está entre cães que pensam imediatamente ao nível da
terra, que pensam irremediavelmente com o presente.
Ensina-nos, Lama, a levitação material dos corpos e como poderíamos
deixar de estar presos à terra.
Pois bem sabes a que libertação transparente das almas, a que
liberdade do Espírito no Espírito, oh Papa aceitável, oh Papa em
espírito verdadeiro, nós nos referimos.
É com o olho interior que te contemplo, oh Papa no ápice do interior.
É a partir do interior que me assemelho a ti, eu ímpeto, idéia,
língua, levitação, sonho, grito, renuncia à idéia, suspenso entre as
formas, só esperando o vento.
Carta aos Médicos-chefes dos Manicômios
Senhores,
As leis e os costumes vos concedem o direito de medir o espírito. Essa
jurisdição soberana e temível é exercida com vossa razão. Deixai-nos
rir. A credulidade dos povos civilizados, dos sábios, dos governos,
adorna a psiquiatria de não sei que luzes sobrenaturais. O processo da
vossa profissão já recebeu seu veredito. Não pretendemos discutir aqui
o valor da vossa ciência nem a duvidosa existência das doenças
mentais. Mas para cada cem supostas patogenias nas quais se
desencadeia a confusão da matéria e do espírito, para cada cem
classificações das quais as mais vagas ainda são as mais
aproveitáveis, quantas são as tentativas nobres de chegar ao mundo
cerebral onde vivem tantos dos vossos prisioneiros? Quantos, por
exemplo, acham que o sonho do demente precoce, as imagens pelas quais
ele é possuído, são algo mais que uma salada de palavras?
Não nos surpreendemos com vosso despreparo diante de uma tarefa para a
qual só existem uns poucos predestinados. No entanto nos rebelamos
contra o direito concedido a homens - limitados ou não - de
sacramentar com o encarceramento perpétuo suas investigações no
domínio do espírito.
E que encarceramento! Sabe-se - não se sabe o suficiente - que os
hospícios, longe de serem asilos, são pavorosos cárceres onde os
detentos fornecem uma mão-de-obra gratuita e cômoda, onde os suplícios
são a regra, e isso é tolerado pelos senhores. O hospício de
alienados, sob o manto da ciência e da justiça, é comparável à
caserna, à prisão, à masmorra.
Não levantaremos aqui a questão das internações arbitrárias, para vos
poupar o trabalho dos desmentidos fáceis. Afirmamos que uma grande
parte dos vossos pensionistas, perfeitamente loucos segundo a
definição oficial, estão, eles também, arbitrariamente internados. Não
admitimos que se freie o livre desenvolvimento de um delírio, tão
legítimo e lógico quanto qualquer outra
seqüência de idéias e atos humanos. A repressão dos atos anti-sociais
é tão ilusória quanto inaceitável no seu fundamento. Todos os atos
individuais são anti-sociais. Os loucos são as vítimas individuais por
excelência da ditadura social; em nome dessa individualidade
intrínseca ao homem, exigimos que sejam soltos esses encarcerados da
sensibilidade, pois não está ao alcance das leis prender todos os
homens que pensam e agem.
Sem insistir no caráter perfeitamente genial das manifestações de
certos loucos, na medida da nossa capacidade de avaliá-las, afirmamos
a legitimidade absoluta da sua concepção de realidade e de todos os
atos que dela decorrem.
Que tudo isso seja lembrado amanhã pela manhã, na hora da visita,
quando tentarem conversar sem dicionário com esses homens sobre os
quais, reconheçam, os senhores só têm a superioridade da força.
HELIOGÁBALO OU O ANARQUISTA COROADO
Publicado em 1934, escrito em 1932/33 - paralelamente ao trabalho
sobre o Teatro da Crueldade - este livro foi patrocinado pelo editor
Denoël, permitindo que Artaud pesquisasse minuciosamente o assunto,
recorrendo a uma bibliografia de aproximadamente 50 títulos sobre
História da Antiguidade e temas correlatos. O período de preparação da
obra coincide com a paixão de Artaud por Anaïs Nin. Nas suas cartas
para Anaïs Nin, Artaud refere-se às suas pesquisas e ao seu interesse
pelo assunto. Ela, por sua vez, nos relata que Artaud se identificava
com o personagem a ponto de achar que era o próprio Heliogábalo e o
mundo ao seu redor, a Roma decadente. Aliás, esta é uma característica
de Artaud: ele só conseguia escrever ou produzir apaixonadamente,
entregando-se totalmente ao tema, assumindo-o plenamente.
O trecho selecionado corresponde à maior parte do Capítulo III do
livro, que narra o breve reinado do imperador-adolescente. Os
capítulos precedentes tratam dos antecedentes históricos e do contexto
religioso e social. Há também três apêndices incluídos na edição,
sobre o Cisma de Irshu (baseado em Fabre D'Oliver, historiador-
esoterista), a religião solar da Síria e o Zodíaco de Ram. Artaud abre
o texto tratando da linhagem matriarcal: Heliogábalo nasceu numa época
em que todo mundo dormia com todo mundo, nunca se saberá por quem sua
mãe foi realmente fecundada. Para um príncipe sírio como ele, a
filiação se faz através das mães. A ascendência materna na linhagem
dos Bassânidas - potentados sírios que chegaram ao trono romano pelo
casamento de Julia Domna, filha de Bassianus, com o romano Sétimo
Severo - remete ao matriarcado e aos cultos femininos e esotéricos,
como o de Istar, descrito de forma poética e apaixonada nos dois
primeiros capítulos. Um dos temas centrais
do livro é o confronto entre o principio masculino e feminino e a
tentativa de fundi-los, feita por Heliogábalo de modo anárquico e
pederástico, reproduzindo teatralmente a própria criação. Portanto,
uma tentativa de transformar o mundo voltando as origens, algo
semelhante aquilo que, para Artaud, seria a função do Teatro da
Crueldade.
A linhagem dos Bassânidas destaca-se, mesmo dentro da rica e
tumultuada crônica dos césares romanos, por apresentar personagens
que, além de debochados, eram incestuosos (Heliogábalo teria sido
filho ilegítimo de Julia Soemia com seu tio, o imperador Caracalla),
fratricidas (Caracalla, para subir ao trono, matou seu irmão Geta) e
patricidas (Bassianus, o iniciador da estirpe). Ou seja, uma dinastia
sob o signo da transgressão, da crueldade e do incesto, temas que
fascinavam Artaud. Há, claramente presente no trecho escolhido, outro
tema fundamental em Artaud: a questão da identidade entre linguagem e
vida, entre o signo e o seu significado. Para ele, a vida de
Heliogábalo já é um texto, daí chamá-la de poética e compará-la ao
teatro. Repare-se nas descrições dos banquetes e festins no final do
trecho escolhido: as comidas, roupas, enfeites, paramentos, etc.,
claramente compõem um discurso algo análogo a um texto dotado de
sentido. Pode-se afirmar que, nestas descrições de rituais, festins e
banquetes, Artaud é precursor da semiologia de Roland Barthes, ao
apresentá-los como linguagem. Artaud também se entusiasma com todas as
situações nas quais há uma inversão das relações entre significante e
significado, como quando Heliogábalo desposa uma sacerdotiza e ao
mesmo tempo providencia um casamento para a Pedra Negra, símbolo
fálico da sua religião solar. Temos, portanto, exemplos do projeto que
norteia toda a obra de Artaud, Principalmente o Teatro da Crueldade: a
substituição do texto pela realidade, pela própria vida, e, ao mesmo
tempo, a transformação da vida e da realidade em obra, em algo que é
criado e transformado pelo autor.
Heliogábalo aparece no período anárquico da alta religião solar e
aparece, historicamente, num período de anarquia.
Isto não impede sua identificação ritual, seu esforço de identificação
com deus. Isto não impede que, no seu ataque levado às últimas
conseqüências contra a anarquia politeísta romana, não tivesse deixado
de comportar-se como autêntico sacerdote de um culto unitário, como
personificação de um deus único, o sol.
Pois se, para Julia Moesa, Elagabalus não é mais que um membro, um
espécie de estátua pintada para alucinar os soldados; para
Heliogábalo, Elagabalus é o membro erétil, ao mesmo tempo humano e
divino. Membro erétil e membro forte. Membro-força que se reparte e é
compartilhado, que só é usado quando partilhado.
O membro erétil é o sol, o cone da reprodução na terra, assim como
Elagabalus, sol da terra, é o cone da reprodução no céu.
É preciso, pois, tornar-se sol, passar pelo próprio Elagabalus, mudar
a maneira de ser.
No que se refere à identificação de Heliogábalo com seu deus, ora os
arqueólogos nos ensinam que Heliogábalo se confunde com seu deus, ora
que se oculta por trás do deus, distinguindo-se dele.
Mas um homem não é um deus e se o cristo é um deus feito homem, foi
como homem que morreu, dizem-nos, e não como deus. E porque não se
julgaria Elagabalus um deus feito homem; e porque iriam impedir o
imperador Heliogábalo de pôr seu deus à frente do homem e de esmagar o
homem sob o deus?
Toda sua vida Heliogábalo é presa dessa imantação de contrários, dessa
dupla cisão.
De um lado
O DEUS
do outro lado
O HOMEM
E no homem, o rei humano e o rei solar.
E no rei humano, o homem coroado e descoroado.
Se Heliogábalo leva a anarquia a Roma, se aparece como fermento que
precipita um estado latente de anarquia, a primeira anarquia está nele
e assola seu organismo, lança seu espírito numa espécie de loucura
precoce que tem um nome na medicina moderna.
Heliogábalo é o homem e a mulher.
E a religião do sol é a religião do homem, que nada pode sem a mulher,
seu duplo no qual se reflete.
A religião do UM que se parte em DOIS para agir.
Para SER.
A religião da separação inicial do UM.
UM e DOIS reunidos no primeiro andrógino.
Que é ELE, o homem.
E é ELE, a mulher.
Ao mesmo tempo.
Reunidos em UM.
Há em Heliogábalo um duplo combate:
1º Do UM que se divide permanecendo UM. Do homem que se toma mulher e
continua perpetuamente homem.
2º Do rei solar, ou seja, do homem que não aceita a condição humana.
Que escarra no homem e acaba por lançá-lo no esgoto.
Pois um homem não é um rei e para ele, como rei, rei solitário, deus
encarnado, viver neste mundo é uma estranha destituição.
Heliogábalo absorve seu deus; come seu deus assim como o cristão come
o dele; separa seus princípios dentro do organismo, desencadeia este
combate de princípios dentro das duplas cavidades da carne.
É o que Lamprido, historiador da época, não entendeu.
?Ele desposou uma mulher, a tímida Cornelia Paula, e consumou o
casamento.?
O historiador estranha que Heliogábalo possa dormir com uma mulher,
penetrar normalmente uma mulher; estranha incoerência num pederasta
nato, espécie de traição orgânica sob o ponto de vista da pederastia,
comprovando em Heliogábalo que esse pederasta religioso e precoce é
coerente nas suas idéias.
Muito mais que o Andrógino, o que transparece nessa imagem móvel,
nessa natureza fascinante e dupla que descende de Vênus encamada, na
sua prodigiosa inconseqüência sexual, é a idéia de ANARQUIA.
Heliogábalo é um anarquista nato, carregando com dificuldade sua
coroa; os atos reais são atos de um anarquista nato, inimigo público
da ordem, inimigo da ordem pública. Ele pratica a anarquia em primeiro
lugar contra si próprio e sobre si próprio e, quanto à anarquia para a
qual arrastou o governo de Roma, pode-se dizer que a exemplificou,
pagando o devido preço por isso.
Quando um Galo se castra, quando o cobrem com o manto feminino, vejo
em semelhante rito o desejo de eliminar uma contradição, de juntar de
vez o homem e a mulher, de combiná-los, fundi-los numa coisa só
fundindo-os no masculino e pelo masculino. O masculino sendo o
Iniciador.
Pouco faltou, dizem os historiadores, para que Heliogábalo também
cortasse fora seu membro.
Se verdade, teria sido um grave erro de Heliogábalo; acho que os
historiadores da época, que nada entendiam de poesia e muito menos
ainda de metafísica, confundiram o falso com o verdadeiro, a simulação
ritual do fato com o gesto real.
Que homens perdidos aqui e acolá, sacerdotes, Galos sem importância,
se entreguem a um gesto que os extermina, cometam um ato que os
elimina isso é a mera expressão de um rito, mas Elagabalus, o sol
sobre a terra, não pode perder seu signo solar: ele só pode operar no
plano do abstrato.
O Sol contém Marte, a guerra; o Sol é um deus guerreiro; o rito do
Galo é um rito guerreiro; o homem e a mulher fundidos no sangue, a
preço de sangue.
Na guerra abstrata de Heliogábalo, na sua luta de princípios, na sua
guerra de virtualidades, há sangue humano, não sangue abstrato, sangue
ir real e imaginado, mas sangue verdadeiro, sangue jorrado e que pode
voltar a jorrar; e Heliogábalo, mesmo não o tendo derramado na defesa
do seu território, pagou com ele por sua poesia e suas idéias.
A vida toda de Heliogábalo é anarquia em ação, pois Elagabalus, deus
unitário que religa o homem e a mulher, pólos hostis, o UM e o DOIS, é
o fim das contradições, a eliminação da guerra e da anarquia, mas por
meio da guerra; e é, também, nessa terra de contradição e desordem, a
prática da anarquia. E a anarquia, no ponto onde Heliogábalo a faz
chegar, é poesia realizada.
Em toda poesia há uma contradição essencial. A poesia é multiplicidade
pulverizada e em chamas. E a poesia, que restabelece a ordem, suscita
inicialmente a desordem, a desordem de aspectos inflamados; faz
entrechocarem-se aspectos levados a um ponto único: fogo, gesto,
sangue, grito.
Levar a poesia e a ordem a um mundo cuja existência é um desafio à
ordem é trazer a guerra e a perpetuação da guerra, é levar a um estado
de crueldade aplicada, é suscitar uma anarquia inominável, a anarquia
das coisas e dos aspectos que se erguem antes de soçobrar novamente
para se fundir na unidade. Aquele que desperta essa perigosa anarquia
é sempre sua primeira vitima. E Heliogábalo é um anarquista aplicado
que começa devorando-se e acaba devorando seus excrementos.
Numa vida cuja cronologia é impossível, mas na qual os historiadores
que narram detalhadamente suas crueldades, que não têm data, vêem um
monstro, vejo uma natureza de uma plasticidade prodigiosa, que sente a
anarquia dos fatos e se insurge contra os fatos.
Vejo em Heliogábalo uma inteligência frenética que extrai uma idéia de
cada objeto e de cada encontro de objetos.
O homem que lança objetos rituais sobre a fornalha acesa nos degraus
do templo de Hércules em Roma, gritando:
?Isto sim, só isto é digno de um imperador?,
e que dilapida assim parte de um tesouro não só real, mas também
sacerdotal; que entra em Roma estreitando nos braços a pedra cônica, o
grande falo reprodutor; o homem que procura colocar como princípio
superior esta pedra; o homem que acredita na unidade de tudo e que
arrasta para Roma não uma pedra, mas um signo, um símbolo desta
unidade; o homem que tenta unificar os deuses, que abate a manejadas
diante do seu deus as estátuas dos falsos deuses; para mim este homem
não é um idólatra, mas sim um mago que, nascido no meio dos ritos,
partilha seus poderes.
.....................................................................................................................
Finda a batalha, conquistado o trono, trata-se de entrar em Roma, de
penetrá-la espetacularmente. Não somos Sétimo Severo, com soldados
armados em pé de guerra, mas à maneira de um verdadeiro rei solar, de
um monarca que recebeu do alto sua efêmera supremacia, que a
conquistou pela guerra, mas deve fazer que esqueçam a guerra.
E os historiadores da época não economizam adjetivos para falar das
suas festas de coroação, do seu caráter decorativo e pacífico. Do seu
luxo super-abundante. É preciso registrar que a coroação de
Heliogábalo começa em Antióquia pelo fim de verão de 217 e termina em
Roma na primavera do ano seguinte, após um inverno passado em
Nicomédia na Ásia.
Nicomédia é a Riviera, a Deauville da época e é a propósito dessa
estadia de Heliogábalo em Nicomédia que os historiadores começam a se
enfurecer.
Eis o que diz Lamprido, que parece ter sido o Joinville deste São Luís
da Cruzada do Sexo, que carrega um membro masculino no lugar de cruz,
lança ou espada:
?Durante um inverno que o Imperador passou em Nicomédia, como se
comportasse da maneira mais nojenta, admitindo homens para um comércio
recíproco de torpezas, os soldados logo se arrependeram do que haviam
feito e lamentaram amargamente terem conspirado contra Macrinos para
entronizar o novo príncipe; assim, passaram a pensar em aderir a
Alexandre, primo de Heliogábalo, ao qual o Senado havia conferido o
título de César depois da morte de Macrinos. Pois quem iria tolerar um
príncipe que entregava à luxúria todas as cavidades do corpo quando
não se aceita isto nem dos animais? Enfim, chegou ao ponto de em Roma
só querer saber de mandar emissários incumbidos de encontrar homens
que fossem exatamente conformados para seus abjetos prazeres e de levá-
los ao palácio para que gozasse com eles.?
?Também entretinha-se representando a fábula de Páris: representava o
papel de Vênus e, deixando cair suas vestes, completamente nu, uma das
mãos no peito e outra sobre as partes genitais, apresentava-as aos
companheiros de depravação. Maquiava o rosto à semelhança das pinturas
de Vênus e depilava o corpo, considerando a melhor coisa na vida ser
capaz de satisfazer o gosto libidinoso do maior número de pessoas.?
Chegaram a Roma por etapas. Diante da passagem da escolta imperial, da
imensa escolta que parecia arrastar consigo os povos que atravessava,
manifestavam-se os falsos imperadores.
Os mascates, operários, escravos, diante da anarquia dominante e vendo
subvertidas todas as regras da sucessão, acreditaram que também
poderiam ser reis.
?Aí está - parece dizer Lamprido - é a anarquia!?
Não satisfeito por transformar o trono em tablado, dando ao país que
atravessa o exemplo de indolência, desordem e depravação, eis que ele
transforma o território do império em palco e suscita falsos reis.
jamais tão belo exemplo de anarquia fora dado ao mundo. Pois aquilo
que para Lamprido era um exemplo da mais perigosa anarquia - a
representação ao vivo, diante de cem mil pessoas, da fábula de Vênus e
Paris, com o estado febril que ela cria, com as miragens que provoca -
é a poesia mais o teatro projetados no plano da mais verídica
realidade.
Mas, examinadas com atenção, as censuras de Lamprido, não se
sustentam. Afinal, o que fez Heliogábalo? Talvez tenha transformado o
trono romano em palco, mas assim introduziu o teatro, e pelo teatro a
poesia no trono de Roma, no palácio de um imperador romana, e a
poesia, quando é real, merece o sangue, justifica o derramamento de
sangue.
De fato, pode-se pensar que, tão íntimos dos antigos mistérios e na
linha de aspersão dos Tauróbolos1 os personagens assim postos,
encenados, não deviam se comportar como frias alegorias, mas
significar forças da natureza - quero dizer, da segunda natureza, a
que corresponde ao círculo interior do sol, o segundo sol de acordo
com Juliano, o que fica entre a periferia e o centro - e sabe-se que
apenas o terceiro é visível - elas deviam conservar uma força de puro
elemento.
Afora isso, Heliogábalo podia submeter os hábitos e costumes romanos
às violências que bem entendesse, jogar a toga romana às favas,
assumir a púrpura fenícia, dar o exemplo de anarquia que consiste em
um imperador romano adotar as roupagens de outro país, em um homem
trajar-se com roupas de mulher, recobrir-se de pérolas, pedrarias,
plumas, corais, talismãs - tudo que é anárquico sob o ponto de vista
romano, para Heliogábalo é fidelidade a uma ordem e isto significa que
este cenário caldo do céu deve voltar para lá por todos os meios.
*
Nada de gratuito na magnificência de Heliogábalo, sequer este
maravilhoso fervor na desordem que nada mais é que aplicação de uma
idéia metafísica e superior de ordem, ou seja, de unidade.
Ele pratica sua idéia religiosa de ordem na forma de afronta ao mundo
latino, e a aplica com o maior rigor, com um rigoroso sentido de
perfeição no qual há uma idéia oculta de unidade e perfeição. Nenhum
paradoxo em considerar essa idéia de ordem como, acima de tudo,
poética.
Heliogábalo empreendeu uma sistemática e alegre desmoralização do
espírito e da consciência latina; e teria levado tal subversão do
mundo às últimas conseqüências se vivesse o bastante para desenvolvê-
la.
De qualquer forma, não se pode negar a coerência nas idéias de
Heliogábalo. Nem no rigor com que as pôs em prática. Esse imperador,
coroado aos quatorze anos, é um mitômano no sentido mais concreto e
literal da palavra. É aquele que vê os mitos como tal e os põe em
prática. Ele impõe por uma vez - talvez a única na História - mitos
verdadeiros. Ele lança uma idéia metafísica no turbilhão das pobres e
terrenas efígies latinas nas quais ninguém Mais crê, muito menos o
próprio mundo latino.
Ele castiga o mundo latino por não acreditar mais nos seus mitos nem
em qualquer outro mito, não deixando de manifestar seu desprezo diante
dessa raça da agricultores natos, cara voltada para o chão, jamais
sabendo fazer outra coisa senão espreitar o que irá sair da terra.
1 Aspersão dos Tauróbolos: ritual de purificação em voga na Roma do
século I e II DC, consistindo no iniciado ficar num poço sobre o qual
era derramado o sangue de um touro.
*
O anarquista diz:
Nem Deus nem senhor, eu só.
Heliogábalo, uma vez entronizado, não aceita lei alguma: ele é o
senhor. Sua lei pessoal será, portanto, a lei de todos. Ele impõe sua
tirania. Todo tirano no fundo não passa de um anarquista coroado que
faz o mundo andar no seu compasso.
Há, no entanto, outra idéia na anarquia de Heliogábalo. Acreditando-se
deus, identificando-se com seu deus, nunca comete o erro de inventar
uma lei humana, uma absurda e ridícula lei humana pela qual ele, deus,
falaria. Enquadra-se na lei divina na qual foi iniciado e, à parte
alguns eventuais excessos, algumas brincadeiras sem importância, deve-
se reconhecer que Heliogábalo jamais abandonou o ponto de vista
místico de um deus, encarnado, mas mesmo assim obedecendo ao rito
milenar de deus.
Heliogábalo, uma vez chegado em Roma, expulsa os homens do Senado e os
substitui por mulheres. Para os romanos é anarquia porém, para a
religião menstrual fundadora da púrpura tíria e para Heliogábalo que a
aplica, trata-se apenas de restabelecer o equilíbrio, uma restauração
calculada da lei, pois é à mulher, primogênita na ordem cósmica, que
cabe fazer as leis.
*
Heliogábalo conseguiu chegar a Roma na primavera de 218, depois de uma
estranha marcha do sexo, um desencadear fulgurante de festas através
dos Balcãs. Ora correndo a toda velocidade com sua carruagem receberia
de dosséis, atrás o Falo de dez toneladas acompanhando o cortejo numa
espécie de jaula monumental aparentemente feita para uma baleia ou um
mamute; ora parando, mostrando suas riquezas, mostrando do que é capaz
em matéria de suntuosidade, gestos de desprendimento e também bizarros
desfies diante de populações estupefatas e temerosas. Arrastado por
trezentos touros enraivecidos, atiçados por matilhas de hienas
uivantes mantidas acorrentadas, o Falo em cima de uma carruagem
abobadada, as rodas grandes como quadris de elefantes, atravessa a
Turquia européia, a Macedônia, a Grécia, os Balcãs, a Áustria atual,
numa corrida de zebra.
Uma vez ou outra, a música recomeça. Todos param. Os dosséis são
retirados. O Falo é montado no seu pedestal, puxado por cordas, a
ponta para cima. E sal o bando de pederastas e também atores,
dançarinas, Galos castrados e mumificados.
Pois existe um ritual dos mortos, um ritual de triagem dos sexos, dos
objetos transformados em membros masculinos eretos, curtidos,
enegrecidos na
ponta como bastões endurecidos no fogo. Os membros - fixos na ponta de
uma vara como lampiões presos nos seus pregos, como as pontas de uma
massa de armas; pendurados como sininhos em arcos recurvos de ouro;
pregados em placas enormes como os pregos de um escudo - rodopiam nas
fogueiras entre as danças dos Galos, homens trepados em andaimes
fazendo-os dançar como se estivessem vivos.
Sempre no paroxismo, no frenesi, no momento em que as vozes se abrem e
atingem um agudo genésico e feminino, então Heliogábalo, com uma
espécie de aranha de ferro no púbis, as patas esfolando sua pele,
vertendo sangue a cada movimento excessivo das suas coxas polvilhadas
de açafrão; com seu membro afogado no ouro, recoberto de ouro, imóvel,
rígido, inútil, inofensivo, aparece envergando a tiara solar, seu
manto abarrotado de pedras, lambido pelos fogos.
Sua aparição tem o valor de uma dança, seus passos combinam
maravilhosamente com a dança apesar de Heliogábalo nada ter de
dançarino. Silêncio, em seguida as chamas se elevam, a orgia recomeça,
uma orgia seca. Heliogábalo organiza os gritos, dirige o ardor
genésico e calcinado, o ardor da morte, o rito inútil.
Acontece que esses instrumentos, essas pedradas, esses calçados, essas
vestes e tecidos, essas somas desatinadas de instrumentos de corda e
percussão, os chocalhos, címbalos, tamborins egípcios, liras gregas,
sistros, flautas, etc., as orquestras de flautins, cítaras, harpas e
nébeis; e também as bandeiras, animais, peles, plumagens de pássaros
que preenchem a crônica da época, toda essa suntuosidade monstruosa
guardada por cinqüenta mil cavaleiros armados que se imaginam
carreteiros do sol, toda essa suntuosidade religiosa tem um sentido.
Um poderoso sentido ritual, da mesma forma como todos os atos de
Heliogábalo imperador têm sentido, contrariamente ao que a História
afirma.
Heliogábalo entra em Roma ao amanhecer de um dia de março de 218, no
romper da aurora, no período que corresponde aproximadamente aos idos
de março. E ele entra de costas. À sua frente o Falo, arrastado por
trezentas - jovens de selos nus que precedem trezentos touros, agora
entorpecidos e mansos, aos quais havia sido administrado poucas horas
antes um soporífero bem dosado.
Ele entra numa girândola de plumas que tremulam ao vento como
bandeiras. Atrás dele, a cidade dourada, vagamente espectral. À sua
frente, o perfumado cortejo de mulher, os touros sonolentos, o Falo
sobre o carro recoberto de ouro que brilha sob um imenso guarda-sol. E
nas margens a dupla fileira de batedores de chocalhos, sopradores de
flautas, dedilhadores de alaúdes, tocadores de címbalos assírios. No
fim, as liteiras das três mães: Julia Moesa, Julia Soemia, Julia
Mammoea, a sonolenta cristã que nada percebe.
Isso de Heliogábalo entrar em Roma na aurora, no primeiro dia dos idos
de março, é, não sob o ponto de vista romano, mas sob o ponto de vista
do sacerdócio siríaco, a aplicação deslocada de um princípio
transformado em poderoso rito. Há, principalmente, um rito que, do
ponto de vista religioso,
significa aquilo que é, mas do ponto de vista romano, significa que
Heliogábalo entra em Roma como dominador, porém de costas, e que ele
quer fazer-se enrabar pelo império romano.
Encerrada a festa de coroação marcada por essa profissão de fé
pederástica, Heliogábalo instala-se com a avó, a mãe e a irmã desta, a
pérfida Julia Mammoea, no palácio de Caracalla.
*
Heliogábalo não esperou chegar a Roma para proclamar a anarquia
aberta, para estender a mão à anarquia quando a expõe travestida de
teatro, trazendo consigo a poesia.
É certo que foi preciso decapitar uns cinco obscuros rebeldes que, em
nome das suas pequenas individualidades democráticas, suas
individualidades de coisa alguma, ousam reivindicar a coroa romana. No
entanto, favorece a proeza desse ator, desse insurreto genial que, ora
fazendo-se passar por Apolonio de Tiana, ora por Alexandre o Grande,
se exibe vestido de branco aos povos das margens do Danúbio, sobre a
cabeça a coroa do Scander2 que talvez tivesse furtado da bagagem do
imperador. Em vez de persegui-lo Heliogábalo confia-lhe parte das suas
tropas e empresta a frota para que vá subjugar os Marcomanos.
Mas nessa frota os barcos foram sabotados e um incêndio ateado por
ordem sua no meio do mar Tirreno o livra, através de um naufrágio
teatral, da tentativa de usurpação.
*
Heliogábalo imperador comporta-se como um vagabundo e um libertário
irreverente Na primeira reunião mais solene, pergunta abruptamente aos
grandes do Estado, aos nobres, senadores em disponibilidade,
legisladores de toda ordem, se também haviam conhecido a pederastia na
juventude, se já haviam praticado a sodomia, o vampirismo, o sucubato,
a fornicação com animais, colocando-lhe a questão, diz Lamprido, nos
termos mais crus.
Pode-se imaginar Heliogábalo, paramentado, passando no meio dos
veneráveis barbudos, escoltado por seus garotos e suas mulheres, dando-
lhes tapinhas na barriga e perguntando se não tinham sido enrabados na
juventude; e os velhos, pálidos de vergonha, baixando a cabeça diante
da ofensa, remoendo a humilhação.
Melhor ainda, ele imita publicamente, com gestos, o ato da
fornicação.
2 Coroa do Scander: coroa que teria pertencido a Alexandre o Grande
(Iscandar ou Scander na Ásia Menor), símbolo da monarquia.
?Chegando - diz Lamprido - até a representar obscenidades com os
dedos, habituado que estava a afrontar qualquer pudor nas assembléias
e na presença do povo?.
Mais que criancice, há nisso um desejo de manifestar sua
individualidade com violência e seu gosto pelas coisas primarias: a
natureza como ela é.
É fácil atribuir à loucura e à juventude tudo que em Heliogábalo é na
verdade um rebaixamento sistemático da ordem e corresponde a um
deliberado desígnio de desmoralização.
Vejo em Heliogábalo não um louco, mas um insurreto:
1º Contra a anarquia politeísta romana.
2º Contra a monarquia romana que ele faz enrabar na sua pessoa.
Mas nele juntam-se as duas revoltas, as duas rebeliões que dirigem
toda sua conduta, que comandam todos seus atos, até os mais
insignificantes, durante os quatro anos do seu reinado.
Sua insurreição é sagaz e sistemática, dirigida em primeiro lugar
contra sua própria pessoa.
Quando Heliogábalo se veste de prostituta e se vende por quarenta
cêntimos na porta das igrejas cristãs e dos templos dos deuses
romanos, ele não busca apenas a satisfação de um vício, ele procura
humilhar o monarca romano.
Quando promove um dançarino a chefe da guarda pretoriana, instaura uma
espécie de anarquia incontestável e perigosa. Ele escarnece a covardia
dos seus predecessores, os Antonino e Marco Aurelio, ao achar que
basta um dançarino para comandar uma tropa de policiais. Ele chama a
fraqueza de força e o teatro de realidade. Ele abala a ordem
estabelecida, as idéias, as noções convencionais das coisas. Pratica
uma anarquia minuciosa e perigosa, expondo-se diante de todos. Arrisca
sua pele, por assim dizer. E isso é coisa de anarquista corajoso.
Seu projeto de destruição dos valores, de monstruosa desorganização
moral, continua com a escolha dos seus ministros pela enormidade do
membro de cada um.
?Ele colocou à frente dos guardas da noite - diz Lamprido - o cocheiro
Gordius e nomeou seu merceeiro um certo Claudius, antes censor de
costumes; os demais cargos foram distribuídos em função da enormidade
do membro, o que qualificava os candidatos. Nomeou procuradores do
vigésimo sobre as sucessões um almocreve, um atleta, um cozinheiro, um
serralheiro?.
O que não impede que se aproveite dessa desordem, desse afrontoso
relaxamento dos costumes, para transformar a obscenidade em hábito,
expondo publicamente, o . que normalmente se esconde.
?Durante os festins - ainda segundo Lamprido - ficava de preferência
junto dos homens prostituídos, comprazia-se em apalpá-los e recebia
com o maior prazer a taça das suas mãos, após dela terem bebido?.
Todas as organizações políticas, todas as formas de governo procuram
sempre, antes de mais nada, ter a juventude nas mãos. E Heliogábalo
também
queria ter a juventude nas mãos, mas, ao contrário dos demais, para
pervertê-la sistematicamente.
?Havia formulado o projeto - diz Lamprido - de colocar em cada idade,
como prefeitos, indivíduos cuja ocupação fosse corromper a juventude.
Roma teria quatorze; e o teria feito se vivesse o suficiente, pois
estava decidido a cobrir de honrarias tudo que fosse mais abjeto, bem
como os homens das mais baixas profissões.?
Não se pode duvidar, de resto, do profundo desprezo de Heliogábalo
pelo mundo romano da sua época.
?Mais de uma vez ele demonstrou - diz Lamprido - um desprezo tamanho
pelos senadores que os chamou de escravos de toga; o povo romano era
para ele um bando de chacareiros de fundo de quintal e não dava a
mínima atenção à ordem dos cavaleiros.?
Seu gosto pelo teatro e pela poesia em liberdade manifestam-se
por ocasião do seu primeiro casamento:
Põe a seu lado, durante toda a duração do rito romano, uma dezena de
energúmenos embriagados que não paravam de gritar: ?Mete, enfia?, para
grande escândalo dos cronistas da época, que omitem a descrição das
reações da noiva.
Heliogábalo casou-se três vezes. A primeira com Cornelia Paula, uma
segunda com a primeira vestal, uma terceira com uma mulher que tinha a
cara de Cornelia Paula; em seguida divorcia-se para retomar sua vestal
e finalmente voltar a Cornelia Paula. É preciso assinalar aqui que
Heliogábalo tomou a primeira vestal, não como um marajá de antes da
guerra tomando como esposa a primeira dançarina da ópera, mas sim com
a intenção blasfematória e sacrílega que superexcita a fúria de outro
historiador da época, Dion Cassius:
?Este homem - diz ele - que devia ter sido vergastado, encarcerado,
exposto nas gemônias, levou para sua cama a guardiã do fogo sagrado e
a deflorou no meio do silêncio geral.?
Assinalo que Heliogábalo foi o primeiro imperador romano que ousou
desafiar este rito guerreiro, a guarda do fogo sagrado, e que poluiu
devidamente o Palladium.
Heliogábalo erige um templo a seu deus, bem no lugar central da
devoção romana, substituindo o pequeno e insípido templo consagrado a
Júpiter Palatino. Derrubado este, manda erguer, uma reprodução menor
porém mais rica do templo de Emesa3.
3 Emesa é a atual Homs, terra natal de Heliogábalo, lugar de origem
dos Bassânidas e do culto solar de Elagabalus.
Mas o zelo de Heliogábalo por seu deus, seu amor pelo rito e pelo
teatro, nunca transpareceram tão claramente como no casamento da Pedra
Negra4 com uma esposa digna dele. Foi preciso procurar essa esposa por
todo império. Assim, completaria o rito sagrado até a pedra,
demonstrando a eficácia do símbolo. Toda a história considera mais uma
loucura e um ato de inútil puerilidade o que para mim é a prova
material e rigorosa da sua religiosidade poética.
Mas Heliogábalo, que detestava a guerra e cujo reinado não chegou a
ser assolado por guerras, não daria para esposa de Elagabalus o
Palladium que lhe ofereciam, esse Palladium sanguinário que embala,
nas mãos de Pallas - que antes devia chamar-se Hécate, como a noite da
qual saiu - o nascimento dos futuros guerreiros; mas sim a Tanit-
Astarté de Cartago cujo leite tépido corre distante dos sacrifícios
para Moloch.
Que importa se o Falos, a Pedra Negra, traz na base uma espécie de
sexo feminino cinzelado pelos deuses. Heliogábalo indica, por este
acasalamento efetivamente realizado, que o membro é ativo e funciona,
pouco importando se em efígie e no abstrato.
*
Um estranho ritmo manifesta-se na crueldade de Heliogábalo; este
iniciado faz tudo com capricho e em duplicata. Nos dois planos, quero
dizer. Cada gesto seu tem dois gumes.
Ordem, Desordem,
Unidade, Anarquia,
Poesia, Dissonância,
Ritmo, Discordância,
Grandeza, Puerilidade,
Generosidade, Crueldade.
Do alto das torres recém-erigidas do seu templo do deus pítio, ele
joga trigo e membros masculinos.
Ele alimenta um povo castrado.
Certo, não há alaúdes nem tubas, não há orquestras de cítaras no meio
das castrações impostas, mas impostas sempre como outras tantas
castrações pessoais, como se ele próprio, Elagabalus, fosse o
castrado. Sacos de sexos são
4 Pedra Negra: pedra cônica, supostamente caída do céu (um meteoro?),
representação do deus solar Elagabalus de Emesa. Heliogábalo tentou
fundir este culto com as devoções romanas, simbolizando a união ao
casar-se com uma Vestal, sacerdotiza do fogo que deveria permanecer
virgem.
jogados do alto das torres com a mais cruel abundância no dia da festa
do deus pítio.
Não garanto que uma orquestra de citaras ou harpas, cordas gemebundas
e madeiras duras, não ficasse escondida no subterrâneo da torre
espraiada, para abafar os. gritos dos parasitas castrados; mas aos
gritos dos castrados responde quase simultaneamente a aclamação de um
povo exultante pela distribuição do valor correspondente a inúmeros
campos de trigo.
O bem, o mal, o sangue, o esperma, os vinhos rosados, os óleos
balsâmicos, os mais caros perfumes, inumeráveis irrigações rodeando a
generosidade de Heliogábalo.
Trata-se de uma música que atravessa os ouvidos para chegar até o
espírito, sem instrumentos e sem orquestra. Digo que os acordes e
evoluções de débeis orquestras nada são perto do fluxo e refluxo, da
maré que sobe e desce com suas estranhas dissonâncias, indo da
generosidade à crueldade, do gosto pela desordem à busca de uma ordem
inaplicável ao mundo latino.
Repito também que além do assassinato de Gannys, único crime que lhe
pode ser imputado, Heliogábalo limitou-se a mandar matar as criaturas
de Macrino, também traidor e assassino, e, sempre que possível, foi
parcimonioso no derramamento de sangue humano. Há, ao longo do seu
reinado, uma flagrante desproporção entre o sangue derramado e os
homens efetivamente mortos.
Desconhece-se a data exata da sua coroação, mas sabe-se o preço que
sua prodigalidade custou aos cofres do tesouro imperial. Foi tamanho
que chegou a comprometer sua segurança material e obrigou o empenho
das finanças durante todo seu reinado.
Ele não pára de querer equiparar a munificência da sua prodigalidade à
imagem que se faz de um rei.
Substitui um burro por um elefante, um cão por um cavalo, onde não se
colocaria mais que um gato ele coloca um leão, onde estava previsto um
corte o de crianças, o elenco completo das dançarinas sacerdotais.
É sempre a amplidão, o excesso, a abundância, o descomedimento. A mais
pura generosidade e piedade para contrabalançar uma espasmódica
crueldade.
Chora ao percorrer as ruas, vendo a miséria da população.
Ao mesmo tempo manda procurar pelo império os marinheiros com os
membros mais bem dotados, os quais intitula Aristocratas:
prisioneiros, antigos assassinos para corresponderem ao curso dos seus
acessos genésicos e coroarem com suas horrendas grosserias a
turbulência dos festins.
Com Zoticus, inaugura o nepotismo da vara!
?Um certo Zoticus tinha tamanha ascendência que os demais oficiais o
tratavam como marido do seu chefe. Esse Zoticus, abusando do seu
titulo de
familiaridade, exagerava a importância de todas as palavras e atos de
Heliogábalo. Ambicionando as maiores riquezas, ameaçando uns, fazendo
promessas para outros, enganava a todos e, quando saía de perto do
príncipe, procurava-os um a um para dizer-lhes: ?Falei tal coisa de
você, eis o que ouvi a seu respeito. tal coisa deve lhe acontecer?,
como o fazem as pessoas dessa laia quando são admitidas junto aos
príncipes com um grau excessivo de familiaridade e vendem a reputação
do seu senhor, quer seja ela boa ou má; e graças à tolice e
inexperiência dos imperadores que nada percebem, dedicam-se à tarefa
de disseminar intrigas.?
Chora como o garoto que é, diante da traição de Hieroclés; e em vez de
exercer sua crueldade contra esse cocheiro de baixa extração, é contra
si que a volta, fazendo-se flagelar até o sangue correr por ter sido
traído por seu cocheiro.
Ele dá ao povo aquilo que interessa:
PÃO E JOGOS
E mesmo quando alimenta o povo, o faz com lirismo, com o fermento de
exaltação que está na base de toda magnificência. O povo nunca é
tocado, nunca é ferido pela sua tirania sanguinária que não erra o
alvo.
Todos que Heliogábalo levou às galeras, os castrados, os açoitados,
foram escolhidos entre os nobres, os aristocratas, os pederastas do
séquito, os parasitas palacianos.
Como eu dizia, ele prossegue sistematicamente na perversão e
destruição de qualquer valor e qualquer ordem, mas o admirável, que
prova a decadência do mundo latino, é como conseguiu, nos quatro anos
do seu reinado, continuar esse trabalho de destruição à vista de
todos, sem que ninguém protestasse; e sua queda não ultrapassa a
importância de uma simples revolta palaciana.
*
Mas se Heliogábalo vai de mulher em mulher como de cocheiro em
cocheiro, também vai trocando pedraria por pedraria, roupagem por
roupagem, uma festa pela outra, ornamento por ornamento.
Pelas cores e sentidos das pedradas, formas das roupagens, organização
do cerimonial, jóias que o recobrem, seu espírito faz estranhas
viagens. Então é visto empalidecendo, tremendo, buscando um brilha,
uma aspereza à qual agarrar-se diante da pavorosa fuga de tudo.
E manifesta-se uma espécie de anarquia superior, na qual sua profunda
inquietação pega fogo: corre de pedra em pedra, de claridade em
claridade, de forma em forma e de fogo em fogo como se corresse de
alma em alma, numa misteriosa odisséia pessoal que depois dele ninguém
mais refez.
Vejo uma monomania perigosa, para ele e para os outros, em trocar de
roupa todo dia e sobre cada roupagem colocar uma pedra, nunca a mesma,
que corresponda aos signos do céu. E mais que gosto pelo luxo
dispendioso, propensão ao desperdício inútil - trata-se do testemunho
de uma imensa, insaciável febre do espírito, de uma alma sedenta de
emoções, movimentos, deslocamentos, dominada por um amor pela
metamorfose, a qualquer preço e qualquer risco.
E no fato de convidar estropiados para sua mesa e cada dia trocar o
tipo de deformidade, noto um gosto inquietante pela doença e pelo
sofrimento, que irá aumentando até a busca da doença no plano mais
amplo possível, algo como um contágio perpétuo com a amplidão de uma
epidemia. E isto também é anarquia, mas espiritual e enganadora, tanto
mais cruel e mais perigosa quanto mais sutil e dissimulada.
Que uma refeição tome um dia inteiro, isto significa que o espaço foi
introduzido na sua digestão alimentar, o banquete começado na aurora
terminando ao anoitecer, depois de percorrer os quatro pontos
cardeais.
Pois de hora em hora, de prato em prato, de mansão em mansão e de
orientação em orientação, Heliogábalo deslocasse. O fim do banquete
mostra que ele fechou o círculo no espaço e manteve os pólos de sua
digestão dentro desse círculo.
Heliogábalo levou a busca da arte ao paroxismo, a busca do rito e da
poesia no meio das mais absurda magnificência.
?Os peixes que servia sempre eram cozidos num molho azulado como o
mar, conservando assim sua cor natural. Durante um tempo, tomou banhos
de vinho rosado, com rosas. Ele e os demais o bebiam - e também
perfumou com nardo as estufas. Substituiu o óleo das lamparinas por
bálsamos. Mulher alguma, exceto sua esposa, recebeu duas vezes suas
carícias. Instalou lupanares na sua residência para os amigos,
criadagem e serviçais. Para a ceia, jamais gastava menos de cem
sestércios. No gênero, ultrapassou Vittelius e Apicius. Usava bois
para tirar os peixes dos viveiros. Um dia chegou a chorar pela miséria
pública ao atravessar o mercado. Gostava de amarrar seus parasitas a
uma roda de moinho que, por um movimento de rotação, alternadamente os
fazia mergulhar e voltar à superfície; chamava-os, então, seus
queridos Ixions.?
Não só o mundo romano, mas também a terra romana e a paisagem romana
foram transtornadas por ele.
?Contam - ainda segundo Lamprido - que promoveu representações de
batalhas navais em lagos escavados pela mão humana e cheios de vinho;
os mantos dos combatentes eram perfumados com essência de enanto;
conduziu até o Vaticano seus carros atrelados a quatro elefantes,
depois de arrasar os túmulos que atrapalhavam sua passagem; no circo,
para seu espetáculo pessoal, fez atrelarem camelos aos carros?.
Sua morte é o coroamento da sua vida Se é justa do ponto de vista
romano, também o é sob o ponto de vista de Heliogábalo. Ele teve a
morte ignominiosa de um rebelde, mas morreu por suas idéias.
Diante da irritação geral provocada por seus extravasamentos de
anarquia poética, insuflada principalmente pela pérfida Julia Mammoea,
Heliogábalo deixou que o duplicassem. Aceitou seu lado, como
coadjutor, uma pálida efígie sua, uma espécie de segundo imperador, o
pequeno Alexandre Severo, filho de Julia Mammoea.
Mas se Elagabalus é homem e mulher, não pode ser dois ao mesmo tempo.
Há aí uma dualidade material que para Heliogábalo é um insulto ao
princípio e não pode ser aceita.
Ele se insurge uma primeira vez porém, em vez de amotinar o povo que o
ama contra o imperador garoto -. o povo que se beneficiou da sua
prodigalidade, sobre cuja miséria o viram chorar - tenta fazer que
seja assassinado pela guarda pretoriana, ainda dirigida por um
dançarino e cuja rebelião declarada não percebe. É contra ele, então,
que sua própria polícia faz menção de voltar às armas; e Julia Mammoea
a insufla, mas Julia Moesa intervém. Heliogábalo consegue escapar em
tempo.
Tudo se acalma. Heliogábalo podia ter aceito o fato consumado,
admitido a seu lado o pálido imperador do qual tem ciúmes e que, se
não conta com o amor do povo, pelo menos conta com o amor dos
militares, da polícia e dos grandes.
Mas, pelo contrário, aqui Heliogábalo mostra quem é: um espírito
indisciplinado e fanático, um verdadeiro rei, um rebelde, um
individualista desvairado.
Aceitar, submeter-se, seria ganhar tempo e sancionar sua derrota sem
garantir sua tranqüilidade, pois Julia Mammoea trabalha e, bem sabe
ele,. não desistirá. Entre a monarquia absoluta e seu filho só há um
peito, um grande coração pelo qual essa pretensa cristã sente apenas
ódio e desprezo.
Vida por vida, então será vida por vida! A de Alexandre Severo ou a
sua. Eis, em todo caso, o que Heliogábalo percebeu muito bem. Para
decidir que seria a vida de Alexandre Severo.
Depois do primeiro alarme, os pretorianos tinham se acalmado; tudo
voltou à ordem, mas Heliogábalo incumbe-se de reativar o incêndio e a
desordem, provando assim que permanece fiei a seus princípios!
Sublevados por emissários, gente do povo, cocheiros, histriões,
mendigos e farsantes tentam invadir a ala do palácio onde repousa
Alexandre Severo, certa noite de fevereiro de 222, bem ao lado do
quarto onde descansa Julia Mammoea. Mas o palácio está cheio de
guardas armados. O fragor das espadas sendo desembainhadas, dos
escudos golpeados, dos címbalos guerreiros convocando as tropas
espalhadas por todas as peças do palácio, bastam para pôr em fuga a
multidão quase desarmada.
É então que a guarda armada se volta contra Heliogábalo e o procura
por todo o palácio. Julia Soemia vê o movimento; ela acorre. Encontra
Heliogábalo numa espécie de corredor lateral. Grita-lhe que fuja. E o
acompanha na fuga. De todos os lados ecoam gritos de perseguidores,
uma correria pesada fazendo as paredes tremerem, um pânico sem nome
apoderando-se de Heliogábalo e da sua mãe. Sentem a morte aproximar-se
por todos os lados. Desembocam nos jardins em declive que vão dar na
direção do Tibre, à sombra dos grandes pinheiros. Num canto afastado,
depois de uma espessa fileira de carvalhos e buxos odoríferos,
estendem-se as latrinas ao ar livre da tropa, com seus escoadouros
atravessando a terra como sulcos. O Tibre está longe demais. Os
soldados, perto demais. Heliogábalo, louco de pavor, joga-se nas
latrinas, mergulha nos excrementos. É o fim.
A tropa, que já o viu, cerca-o; seus próprios pretorianos o agarram
pelos cabelos. Esta é uma cena de matadouro, uma autêntica
carnificina, uma imagem de magarefe.
Os excrementos misturados ao sangue, escorrendo com o sangue sobre os
gládios que despedaçam as carnes de Heliogábalo e da sua mãe.
Depois içam os corpos, arrastam-nos à luz de tochas, conduzem-nos pela
cidade diante do povo estupefato, diante das mansões dos patrícios que
abrem as janelas para aplaudir. Uma imensa multidão marcha na direção
do cais, rumo ao Tibre, no rastro dessas lamentáveis postas de carne,
exangues e lambuzadas.
?Ao esgoto?, uiva o populacho que se aproveitou da prodigalidade de
Heliogábalo e que a digeriu depressa demais.
?Ao esgoto os dois cadáveres, o cadáver de Heliogábalo, ao esgoto!?
Enfastiados de sangue e da visão obscena destes dois corpos desnudos,
devastados, todos os órgãos à mostra, mesmo os mais secretos, a tropa
tenta enfiar o corpo de Heliogábalo na primeira boca de esgoto que
encontra. Mas, por menor que seja, ainda é grande demais. É preciso
deliberar.
Já acrescentaram a Elagabalus Bassianus Avitus, dito Heliogábalo, o
cognome de Varius, por ter sido constituído por múltiplos sêmens,
nascido de uma prostituta; deram-lhe ainda os nomes de Tiberiano e de
Arrastado, por terem-no arrastado e jogado no Tibre, depois de
tentarem enfiá-lo num esgoto; no entanto, diante do esgoto, por ter
ombros demasiado largos, tentaram limá-lo. Assim abriram sua pele,
procurando deixar intacto o esqueleto; então poderiam lhe acrescentar
os nomes de Limado e Aplainado. Mas, uma vez limado, continua largo
demais, e jogam seu corpo no Tibre que o carrega até o mar, seguido,
alguns redemoinhos depois, pelo cadáver de Julia Soemia.
Assim finda Heliogábalo, mas em rebelião declarada. Semelhante vida,
coroada por semelhante morte dispensa, parece-me, uma conclusão.
A Viagem ao México:
MENSAGENS
REVOLUCIONÁRIAS
O México é um lugar mítico para a literatura do século XX. Pais de
contradições, de contrastes entre a civilização pré-colombiana, a
colonização espanhola e o capitalismo moderno, atraiu, em diferentes
momentos, inúmeros grandes escritores: D.H. Lawrence, Aldous Huxley,
B. Traven, Malcolm Lowry, Artaud, Péret, Breton, Burroughs, entre
outros. Alguns encontraram lá uma iluminação, uma ampliação da
percepção; outros, a morte.
A intenção declarada de Artaud é afastar-se da cultura européia: Eu
vim para o México fugido da civilização européia, produto de sete ou
oito séculos de cultura burguesa, movido pelo ódio contra essa
civilização e essa cultura. Esperava encontrar aqui uma forma vital de
cultura e só encontre o cadáver da cultura da Europa, do qual a
própria Europa já começa a se desembaraçar. Seu objetivo é libertar-
se: Não acredito na cultura dos livros, não acredito na cultura das
coisas escritas pois encaro a vida como homem livre, livre, ou seja,
que jamais se deixou acorrentar. Ao buscar a retomada de contato com
uma cultura mítica, Artaud tem plena consciência de estar fazendo um
gesto político: Vim ao México em busca de homens políticos, não de
artistas. Até agora, fui um artista, ou seja, fui um homem conduzido.
Não há dúvida que do ponto de vista social os artistas são escravos.
Estas declarações fazem parte das Mensagens Revolucionárias, coletânea
de palestras e artigos produzidos durante a estadia de Artaud no
México, graças a uma bolsa obtida junto à embaixada desse país,
completada por subscrições
entre intelectuais e doações de amigos. Este conjunto de textos só foi
reunido em 1962 e muitos tiveram que ser retraduzidos do espanhol,
pois o original francês se perdera. Um deles só foi redescoberto em
1975.
Surrealismo e Revolução é a primeira de uma série de três palestras na
Universidade do México e apresenta especial interesse pela diversidade
de temas abordados. Temos o reexame do relacionamento de Artaud com o
Surrealismo (de volta do México ele voltaria a corresponder-se com
Breton, o qual por coincidência lá estivera na mesma época para
encontrar-se com Trotski e estabelecer novas alianças políticas). Além
disso, é colocada a questão da rebelião contra o Pai, de uma forma que
antecipa correntes modernas do pensamento psicanalítico, como muito
bem mostra Kristeva, apoiando-se em Lacan: a revolta de Artaud contra
o Pai é uma revolta contra o Superego e contra o discurso racional,
pela liberação da corporeidade, dá sexualidade e das forças do
inconsciente. Temos também as referências a uma nova rebelião juvenil,
fora dos quadros políticos tradicionais. Esta referência é profética,
pois semelhante rebelião juvenil só viria a ocorrer 30 anos depois,
sob forma de manifestação contracultural. Nas demais palestras e
artigos da estadia mexicana de Artaud estas questões são retomadas:
ele fala do "naturalismo em plena magia" da cultura índia; da sua
visão critica do marxismo, para ele um produto da civilização
ocidental; do teatro moderno francês, analisado à luz das suas
concepções sobre o Teatro da Crueldade.
Surrealismo e Revolução
(palestra pronunciada no México - 1936)
Participei do movimento surrealista de 1924 a 1926 e o acompanhei na
sua violência.
Falarei dele com o espírito que eu tinha naquela época; tentarei
ressuscitar para vocês esse espírito que se pretendia blasfematório e
sacrílego e que algumas vezes conseguiu sê-lo.
Mas, dizem vocês, esse espírito passou: ele pertence a 1926 e reagir a
ele seria reagir nos termos de 1926.
O surrealismo nasceu de um desespero e de um nojo e nasceu nos bancos
escolares.
Muito mais que movimento literário, foi uma revolta moral, o grito
orgânico do homem, as patadas do ser que existe em nós contra toda
coerção.
Em primeiro lugar, a coerção do Pai.
Todo o movimento surrealista foi uma revolta interior e profunda
contra todas as formas do Pai, contra a preponderância invasora do Pai
nos costumes e nas idéias.
Aqui está, a título puramente documental, o mais recente manifesto
surrealista, que mostra a nova orientação política do movimento:
CONTRA-ATAQUE
A PÁTRIA E A FAMÍLIA
Domingo, dia 5 de janeiro de 1936, às 21 horas no Armazém des
Augustins 7, rue des Grands Augustins (metrô Saint Michel)
CONTRA O ABANDONO DA POSIÇÃO REVOLUCIONÁRIA
MANIFESTAÇÃO DE PROTESTO
Um homem que aceita a pátria, um homem que luta pela família, é um
homem que trai. Aquilo que ele trai, para nós é uma razão para viver e
lutar.
A pátria se ergue entre o homem e a riqueza da terra. Ela exige que os
frutos do suor humano sejam transformados em canhões. Ela transforma o
ser humano em traidor do seu semelhante.
A família é afundamento da coerção social. A ausência de toda
fraternidade entre pai e filho serviu de modelo a todas as relações
sociais baseadas na autoridade e no desprezo dos patrões pelos seus
semelhantes.
Pai, pátria, patrão, esta a trilogia que serve de base à velha
sociedade patriarcal e, hoje em dia, à cachorrada fascista.
Os homens perdidos na angústia, abandonados a uma miséria e um
extermínio cujas causas não conseguem entender, se rebelarão um dia,
saturados. Então completarão a ruína da velha trilogia patriarcal:
eles fundarão a sociedade fraterna dos companheiros de trabalho, a
sociedade do poderio da solidariedade humana.5
Pode-se ver neste manifesto como o Surrealismo mantém, contra a
recente orientação stalinista, os objetivos essenciais do marxismo, ou
seja, todos os pontos virulentos pelos quais o marxismo toca o homem e
procura atingi-lo nos seus segredos; e deve-se reconhecer nesta
violência obstinada o velho estilo surrealista que só consegue existir
exasperadamente.
Mas o mistério do Surrealismo é como esta revolta; desde sua origem,
aprofundou-se no inconsciente.
Foi uma mística oculta. Um ocultismo de um novo gênero que, como toda
mística oculta, expressou-se alegoricamente, por larvas que tomaram a
aparência de poesia.
Tudo aquilo que tinha forma de reivindicação clara, o Surrealismo
descartou; ou então não conseguiu incorporar.
5 O manifesto foi escrito por Georges Bataille e também subscrito por
André Breton, Maurice Heine e Benjamin Péret. No entanto, representava
o grupo Contre-Attaque, uma proposta de Bataille da qual os
surrealistas logo em seguida se desligaram.
Agitava-nos um terrível fervilhar de revolta contra todas as formas de
opressão material ou espiritual, quando começou o Surrealismo: Pai,
Pátria, Religião, Família, nada havia contra que não
invectivássemos... e não invectivássemos muito mais com nossas almas
que com nossas palavras. Nesta revolta engajamos nossa alma e a
engajamos materialmente. No entanto, semelhante revolta, que tudo
atacava, era incapaz de destruir o que fosse, pelo menos na aparência.
Pois o segredo do Surrealismo é que ele ataca as coisas naquilo que
têm de secreto.
Para religar-se ao segredo das coisas, o Surrealismo tinha aberto um
caminho. Assim como do Deus Desconhecido dos Mistérios Cabiros, do Ain-
Sof, o vazio animado dos abismos na Cabala, do Nada, do Vazio, do Não-
Ser devorador feito do nada dos antigos Brâmanes e Vedas, pode-se
dizer do Surrealismo aquilo que ele não é, mas para dizer o que é,
torna-se necessário usar aproximações e imagens; por uma espécie de
encantação dirigida ao vazio, o espírito das antigas alegorias.
Há, é certo, elementos na poesia surrealista dos quais se consegue
falar e que podem ser identificados. Mas os demais gêneros de poesia
sempre nos levam a algum território, a algum país que não pode ser
confundido com os outros. Com o Surrealismo, pelo contrário, tem
início o caminho da perda, a tal ponto que nunca Podemos afirmar que
sua poesia está lá onde a vemos.
O Surrealismo tinha necessidade de sair para fora.
"Sair à luz do dia no primeiro capítulo?, como fala do Duplo do Homem
o Livro dos Mortos Egípcio.
E nós, surrealistas, tínhamos necessidade de sair, sempre
impulsionados por um mortal movimento de insatisfação; daí a violência
que não levava a lugar algum, mas que sempre manifestava,
subterraneamente, alguma coisa: violência que a mania de explicar as
coisas acabou chamando de desmoralização.
Recusa e Violência.
Violência e Recusa.
Estes dois pólos significativos de um estado de espírito impossível,
de uma misteriosa eletricidade, indicam o caráter anormal da poesia
dessa época, que não era mais poesia no sentido dado à palavra, porém
a emissão magnética de um sopro, uma estranha espécie de magia
instalada entre nós.
Recusa. Recusa desesperada de viver que, no entanto, tem que aceitar a
vida.
No surrealismo, o desespero esteve na ordem do dia e, com o desespero,
o suicídio. Porém, à questão levantada no número 2 do La Révolution
Surrealiste: O suicídio é uma solução? - não - responderam os
surrealistas, por um unânime movimento do coração - o suicídio ainda é
uma hipótese pois, segundo as palavras de Jouf-froy: "No suicídio
aquele que mata não é idêntico a quem é morto?.
Todas as manifestações surrealistas participaram desse espírito
suicida no qual não intervém o verdadeiro suicídio.
Destruição sobre destruição. Onde a poesia ataca as palavras, o
inconsciente ataca as imagens, mas um espírito mais secreto ainda
empenha-se em colar novamente os pedaços da estátua.
A idéia é estilhaçar o real, desorientar os sentidos, desmoralizar ao
máximo as aparências, mas sempre com uma noção do concreto. Do seu
obstinado massacre, o Surrealismo sempre se empenha em extrair algo.
Pois, para ele, o inconsciente é físico e o Ilógico é o segredo de uma
ordem na qual se expressa um segredo da vida.
Depois de ter estilhaçado os manequins, de ter tumultuado a paisagem,
os refaz, porém de um modo que provoque gargalhadas, ou então que
ressuscite este fundo de imagens terríveis que nadam no Inconsciente.
Isto significa que ele escarnece da razão, que retira dos sentidos as
suas imagens para restituí-las ao seu sentido mais profundo.
Isto significa que os escritores da época pressentiram um conhecimento
dos fundamentos ocultos do homem, perdido imemorialmente.
E o Surrealismo liberou vida, descongestionou fisicamente a vida,
permitiu que um filamento de preciosa eletricidade viesse animar as
pedras, os sedimentos inanimados.
A vida desorganizada se reforma, reagindo à anarquia caótica imposta
aos objetos que se vê.
O mundo surrealista é concreto, concreto para que não possam confundi-
lo.
Tudo que é abstrato, tudo que não é inquietante pelo trágico ou pelo
cômico, tudo que não manifesta um estado orgânico, que não é uma
espécie de transpiração física da inquietação do espírito, não provém
desse movimento. O Surrealismo inventou a escrita automática, que é
uma intoxicação do espírito. A mão, liberta do cérebro, vai onde a
caneta a conduz; e, principalmente, um espantoso enfeitiçamento guia a
caneta de forma a tornara viva; tendo perdido todo contato com a
lógica, esta mão, assim reconstruída, retoma o contato com o
inconsciente.
Por esse milagre, é negada a estúpida contradição das escolas, entre
espírito e matéria, entre matéria e espírito.
*
Toda vez que a vida é tocada, reage através do sonho e de fantasmas.
Isto significa que o Inconsciente geral foi sondado por alguma coisa.
Ele devolve aquilo que conservava.
Quando uma mulher concebeu, sonha sem saber que concebeu. Quando um
homem foi ferido, está para ficar doente, vai entrar em agonia, sonha.
Ao lado dos sonhos do homem há sonhos de grupos e sonhos de nações.
Não sei quantos dentre nós, surrealistas, já sentimos que liberávamos,
através dos nossos sonhos, uma espécie de ferida de grupo, uma ferida
da vida.
Junto com a obsessão pelo sonho, em face do ódio pela realidade, o
Surrealismo teve uma obsessão de nobreza, uma idéia fixa de pureza.
O mais puro, o mais desesperado entre nós, dizia-se freqüentemente
deste ou daquele surrealista. Para nós, só era puro quem fosse
desesperado.
Pouco importa que este fogo de pureza tenha-se limitado a consumir-se.
Queríamos, sinceramente, ser puros. E semelhante pureza foi procurada
em todos os planos possíveis: do amor, do espírito, da sexualidade.
*
"O pai - diz Saint-Yves d'Alveydre, nas Chaves do Oriente, - o pai, é
preciso dizê-lo, é destruidor".
Um espírito desesperado de rigor que, para pensar, coloca-se no plano
superelevado da natureza, sente o Pai como inimigo. O Mito de Tântalo,
o da Megera, o de Atreu, contêm, em termos fabulosos, esse segredo,
essa espécie de verdade desumana a cuja acomodação os homens dedicam
sua busca.
O movimento natural do Pai contra o Filho, contra a Família, é de
ódio; um ódio que a filosofia chinesa não distingue do amor.
E cada pai em particular, no seu íntimo, tenta acomodar-se a esta
verdade.
Vivi até os vinte e sete anos com o ódio obscuro do Pai, do meu pai
particular. Até o dia em que o vi falecer. Então o rigor desumano, com
o qual eu o acusava de oprimir-me, cedeu. Outro ser saiu daquele
corpo. E, pela primeira vez na vida, esse pai me estendeu a mão. E eu,
que me sinto incomodado pelo meu corpo, compreendi que toda a sua vida
ele fora incomodado pelo seu corpo e que há uma mentira do ser contra
a qual nascemos para protestar.
*
No dia 10 de dezembro de 1926, às 9 da noite, no café "Profeta", em
Paris, os surrealistas reúnem-se em congresso.
Tratava-se de saber o que, diante da revolução social que estrondeava,
o Surrealismo iria fazer do seu próprio movimento.
Para mim, dado o que já se sabia do comunismo marxista, ao qual
pretendiam aderir, a questão nem se colocava.
Será que Artaud pouco se importa com a revolução?, perguntaram-me.
Pouco me importo com a de vocês, não com a minha - respondi,
abandonando o Surrealismo, pois o Surrealismo também havia se
transformado num partido.
Esta revolta pelo surrealismo, que a revolução surrealista pretendia,
nada tinha a ver com uma revolução que pretende já conhecer o homem e
o torna prisioneiro no quadro das suas mais grosseiras necessidades.
Os pontos de vista do Surrealismo e do marxismo eram irreconciliáveis.
E não demoraram muito para percebê-lo quando alguns surrealistas
notórios se filiaram ao partido. Ou seja, à sucursal francesa da
Terceira Internacional de Moscou.
Você é surrealista ou marxista? - perguntaram a André Breton, e se é
marxista, para que precisa ser surrealista?
Em suma, tratava-se para o Surrealismo de descer até o marxismo, mas
teria sido bonito ver o marxismo tentar elevar-se até o Surrealismo.
Em 1926, o antagonismo não podia resolver-se, pois a História ainda
não havia caminhado o suficiente. Hoje, penso que a História caminhou
e que há um fato novo na França. Este fato é a aparição de uma idéia
histórica na consciência da juventude, e esta idéia, que pretendo
desenvolver, a chamaria de reconciliação da Cultura com o Destino. Na
consciência desesperada da juventude nasceu uma nova idéia do homem.
Ela não aceita a separação entre a vida do homem e a vida dos
acontecimentos. Ela quer que penetremos na sensibilidade interior do
Homem que joga, também, com os acontecimentos.
A nova juventude é anti-capitalista e anti-burguesa e, como o próprio
Marx, sentiu o desequilíbrio de uma época na qual cresce a monstruosa
personalidade dos Pás, baseada na terra e no dinheiro. Quando acusam
Marx de querer suprimir a família: "A família responde ele -, mas
vocês já a destruíram; onde estão suas antigas virtudes? Fora de toda
virtude, só vejo matéria; e a matéria, eu a organizo técnica e
coercitivamente". Pode-se dizer que, dos antigos valores do Homem,
Marx organiza aquilo que a Burguesia deixou.
Mais que exaltação de uma realidade superior, o Surrealismo era uma
critica dos fatos e do movimento da razão nos fatos.
Entre mim e o real, existimos eu e minha deformação pessoal dos
fantasmas da realidade.
E a juventude, no seu eu atual, considera que Marx partiu de um fato,
mas que ficou nesse fato sem chegar até a Natureza. Ele extraiu uma
metafísica de um fato, mas não a elevou até uma metafísica da Natureza
e a juventude agora quer elevar-se até a natureza em vez de deixar-se
abater pela parte econômica dos fatos.
Se a juventude é a favor de que se organize a matéria, também é a
favor de que se organize simultaneamente o espírito.
A organização materialista de Lenin é considerada uma organização
transitória e punitiva e ela acha que semelhante organização
materialista e punitiva é aplicada por Lenin na Rússia com a devida
crueldade. Mas, espírito-
matéria, matéria-espírito, ela afirma a interdependência destes dois
aspectos do seu ser. Pois ela come ao mesmo tempo que sente; e pensa
ao mesmo tempo que come. Ela acusa a Europa moderna de inventar um
antagonismo que não existe nos fatos. E, se condena Marx, o condena
como europeu, pois esta juventude ama o Homem, mas o Homem total, para
salvá-lo do Homem.
Nessa nova idéia de cultura há uma idéia contra o progresso. A ciência
moderna nos ensina que nunca houve matéria e volta, quatrocentos anos
depois, à velha concepção alquimíca dos três principias, o enxofre, o
mercúrio e o sal, agora chamados energia, movimento e massa. Podemos
dizer, portanto, que não havia necessidade de se falar em progresso.
E em tudo isso se manifesta uma idéia superior de cultura, mas para
que uma tal cultura venha a bom termo, há idéias que devem ser
destruídas, idéias que são ídolos, e se estamos decididos a derrubar
os velhos ídolos, não é para fazer nascerem novos ídolos sob nossos
pés.
Essa juventude não quer mais ser lograda e quando dizemos que os
tempos mudaram e que hoje em dia um poeta ou um intelectual não podem
mais ignorar seu tempo, ela responde que há erros a propósito dos
intelectuais e do seu tempo.
A juventude não separa os intelectuais do seu tempo e os intelectuais
não se separam do seu tempo e, assim como seu tempo, eles acham que o
espírito não é uma coisa vazia e que a arte só tem valor por ser
necessária. Mas para eles esta idéia de necessidade não significa
prostituição da ação.
Há uma maneira de entrar no seu tempo sem se vender às potências do
tempo, sem prostituir nossas forças de ação às palavras de ordem da
propaganda: ?guerra à guerra, frente única, frente unitária, frente
comum, guerra ao fascismo, frente anti-imperialista, contra o fascismo
e a guerra, luta de classes, classe por classe, classe contra classe,
etc., etc.?
Há ídolos de bestificação que só servem ao jargão da propaganda. A
propaganda é a prostituição da ação e, para mim e para a juventude, os
intelectuais que fazem literatura de propaganda são cadáveres
condenados pela força da sua própria ação.
Um intelectual age sobre o indivíduo e sobre a massa e na sua ação há
uma concepção cultural das forças do indivíduo. A juventude quer uma
idéia da economia das forças do Homem sem sua ação sobre os
indivíduos. Há uma técnica para liberar as forças do homem assim como
na medicina chinesa existe uma técnica para curar o fígado, o baço, a
medula ou os intestinos, tocando, em toda a extensão do corpo físico,
pontos igualmente físicos porém distantes do fígado, do estômago, do
baço ou dos intestinos.
Assim como o mundo tem uma geografia, também o homem interior tem sua
geografia e esta é uma coisa material. Porém o materialismo dialético
de Lenin teme esta maneira profunda de conhecer a geografia.
No entanto, uma cultura profunda não teme geografia alguma, mesmo que
a exploração dos continentes desconhecidos do homem conduza à vertigem
na qual se chega à imaterialidade da vida.
A verdadeira cultura ajuda a sondar a vida e a juventude, que quer
restabelecer uma idéia universal de cultura, acha que há lugares
predestinados para fazer jorrar as fontes da vida e por isso volta-se
para o Tibet e o México. A cultura do Tibet só serve para aqueles que,
no Livro dos Mortos do Egito, são chamados de cadáveres, os
Derrubados. Pelo contrário, a antiga cultura mexicana serve para fazer
irromper o sentido interior, atravessando sua barreira. Ela produz
ressuscitados.
Toda verdadeira cultura se apóia na raça e no sangue. O sangue índio
do México guarda um antigo segredo da raça e, antes que a raça se
perca, acho que deveriam pedir-lhe a força desse antigo segredo. Onde
o México atual copia a Europa, para mim é a civilização da Europa que
devia pedir a revelação de um segredo ao México. A cultura
racionalista da Europa já faliu e eu vim à terra mexicana para
procurar as bases de uma cultura mágica que ainda pode brotar das
forças do solo índio.

http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2007/08/391738.shtml

Email:: advog...@correioweb.com.br

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