O CORPO DO CIBORGUE
Hoje em dia a filosofia anda a reboque da ciência. Uma vergonha para
os filósofos. No século XVII a filosofia abria horizontes para o
conhecimento. Hoje, a ciência solapa a filosofia, obrigando-a a rever
ou fabricar novos conceitos às pressas.
Esse é o caso das novas propostas para a inteligência artificial nas
próximas décadas, que pregam a apropriação do biológico e sua mescla
com o artificial como solução para superar a complexidade do cérebro e
do corpo humano - um fator que poderia comprometer sua replicação.
Contudo, os defensores da era do pós-humano ou da volta dos ciborgues
parecem ter continuado com idéias e categorias obsoletas para pensar o
problema mente-cérebro, que também estaria presente no caso das
criaturas pós-orgânicas.
Em sua obra, Ray Kurzweil, autor do best-seller "The Age of Spiritual
Machines" e de outras alegorias futuristas sugere que no futuro nos
tornaremos máquinas espirituais. Mas na sua concepção continuaria
existindo um fantasma (a alma) dentro da máquina. Um fantasma (um
espírito ou um "ghost") que a comandaria exigindo uma interface entre
o físico e o mental. A interação entre mente e cérebro persistiria
sendo concebida através de um modelo mecânico.
Hoje em dia nosso corpo interfere na nossa mente através dos
medicamentos e drogas inventadas pela própria mente e, assim
medicamentos psiquiátricos tornaram-se uma espécie de interface ou
glândula pineal cartesiana. As futuras máquinas espirituais de
Kurzweil talvez poderão contar com interfaces mais sofisticadas, a
começar por uma correlação entre computação biológica e computação
tradicional o que permitiria a interação entre o vivo e o inanimado
das próteses, e, mais ainda, entre a mente e um corpo modificado
tornado tão eterno (pela reposição de peças) quanto sua alma (o
download de um software).
Mas será que ainda podemos pensar usando estas categorias? Será o
corpo do ciborgue um corpo material? Poderemos falar de uma mente
ciborgue por diferença ao corpo do ciborgue? Uma das coisas mais
interessantes notadas pelo filósofo inglês Andy Clark, no seu livro
"Natural Born Cyborgs" é o fato de que todos nós já estamos nos
tornando ciborgues e que faz tempo que ingressamos no mundo do pós-
orgânico. Isso significa que meu corpo pode não me pertencer mais:
posso ter me tornado um feixe de próteses e transplantes. Será que
posso me referir ao "meu" coração se este for um órgão transplantado?
E se todos os meus órgãos forem transplantados, será que ainda assim
poderei me referir ao meu corpo?
A idéia de "meu corpo" tem sido historicamente um dado imediato, um
dado que não precisa ser mediado por nenhum tipo de conceito ou de
conhecimento. Sei onde meu corpo começa e onde ele acaba, ninguém
precisa me ensinar isso. Mas será que isto continuará sendo verdadeiro
se quase tudo no meu corpo for protético? Não estarei eu, neste caso,
misturado com o mundo - com o mundo inorgânico que se espalha a minha
volta?
Tomemos um caso mais simples: o de andar permanentemente com uma
bengala e usá-la sempre que eu quiser tocar algum objeto. Com o tempo,
a extensão do meu corpo passará a ser a extensão da bengala. Este é o
fenômeno que os neurocientistas chamam de habituação. A habituação põe
em questão se os contornos do meu corpo são definíveis com precisão.
Mais recentemente este problema reaparece com a utilização dos
mecanismos de telepresença. Nestes, tecnologias de realidade virtual
são conectadas a sistemas robóticos que estão fisicamente presentes em
algum lugar distante. O corpo do participante vê e toca o lugar
distante graças às conexões com o robô. Poderíamos perguntar, a esta
altura: onde está o corpo conectado ao robô? Nas suas coordenadas
físicas ou nos espaços que ele vê e toca a distância, já que é a
percepção, em última instância que determina suas coordenadas
físicas?
Estes mecanismos põem em questão se a idéia de "situação espacial",
uma das características centrais dos objetos que compõem o mundo
físico, é também aplicável ao nosso corpo. Terá o corpo uma situação
espacial definível - uma situação que permita concebe-lo da mesma
maneira que concebemos os outros objetos físicos a nossa volta? A
noção de corpo vai, assim tornando-se cada vez mais problemática e
contra-intuitiva. Ela se torna muito mais uma representação vaga do
que uma coisa. E isto poderia, num primeiro momento, nos forçar a
rever nosso modo de conceber o problema mente cérebro (que
originalmente era o problema mente-corpo). A espacialidade,
característica central dos objetos físicos segundo Descartes, vai se
tornando, no caso do corpo pós-orgânico, uma espacialidade difusa.
A substituição progressiva de partes do corpo por próteses pode nos
encaminhar para uma situação ainda mais paradoxal. O caso-limite do
ciborgue seria o experimento mental no qual os filósofos da mente
imaginam uma situação na qual todo nosso cérebro seja substituído por
chips que executem rigorosamente as mesmas funções de nossos neurônios
e nossas sinapses. Poderá este cérebro pensar? E, mais importante
ainda, poderá ele ter consciência? (Ou adquirir consciência, como é o
caso de Hall de 2001 - Uma odisséia no Espaço).
Certamente muitas coisas interessantes surgiriam dessa situação
inusitada. Lembrar-se, para esse cérebro passaria a ser "retrieval",
algo como colocar um dado no teatro (ou na tela?) do mental.
Poderíamos também aperfeiçoar esse cérebro, implantando-lhe, por
exemplo, um chip que contivesse toda informação da biblioteca de
Washington. Esse cérebro poderia assim, lembrar-se de algo que nunca
soube ou tenha visto. Uma lembrança que provavelmente seria
acompanhada pela estranheza de uma sensação de "dejá vue".
Os filósofos da mente se dividem acerca da questão da emergência da
consciência no cérebro artificial. O americano John Searle nega
enfaticamente esta possibilidade. Searle diz que depois da
substituição estar completa, esse cérebro não terá consciência - não
terá alma, não terá a quintessência que os filósofos dizem existir.
Mas o que seria isto? Searle sugere que a quintessência falta ao
papagaio, mas não ao humano quando este fala.
Searle provavelmente está errado. Falar de uma alma ou de uma
quintessência como algo emergente ou algo que é mais que a somatória
das partes, soa suspeito. Haveria mesmo algo mais, uma organização
invisível por trás das partes, uma organização que se revelaria a nós
da mesma maneira que uma figura de Gestalt? Não seria o pressuposto
deste raciocínio que "o todo é maior do que as partes" ou seja, não
seria este um raciocínio baseado numa proposição falsa? E se
estivermos mesmo diante de uma figura de Gestalt quem a estaria
interpretando?
O corpo difuso do ciborgue não traria inovação se anão pudéssemos
conceber também uma alma difusa: uma alma difusa pelo corpo. O que é
estranho é que paradoxalmente situamos a alma, falamos de uma sede da
alma. A idéia de espacialidade é sorrateiramente pressuposta nesse
experimento mental. Paradoxalmente, Descartes que tanto defendeu a
imaterialidade do mental com base na sua falta de espacialidade, situa
o pensamento no espaço: situa-o no cérebro. Aliás, Descartes foi o
primeiro a defender esta posição que aparece em algumas passagens de
sua obra póstuma os "Princípios da Filosofia". Aparentemente, situar a
alma não seria um problema nem para os cartesianos nem para os
futuristas que apostam no corpo pós-orgânico. Questionar este
pressuposto é que pode levar efetivamente a necessidade de uma revisão
na formulação do problema mente-cérebro - uma revisão motivada pela
nossa reflexão sobre o corpo do ciborgue.
Para situar onde está o pensamento precisamos senti-lo. Em outras
palavras, para ouvir nossas vozes interiores temos que ouvi-las, mesmo
que virtualmente - algo que não deixa de ser um tipo de sentir. O
pensamento é qualia (sensação bruta) não proposição. Proposições são o
que se diz acerca dos qualia. É a sensação de que estamos pensando que
nos permite saber que estamos pensando. E é esse sentir que nos dá a
sensação de que pensamos com o cérebro. Ou seja, sentimos o pensar
como algo ocorrendo no cérebro e é isto que nos faz localizar o
pensamento na cabeça, e não, por exemplo, nos joelhos.
Mas será esta uma sensação confiável? Por exemplo, representamos o
tempo por uma linha reta - mas não será esta uma falsa representação,
pois a física nos diz que o tempo é curvo? A idéia de tempo é a
sensação da sucessão no psiquismo. É a sucessão que produz a falsa
metáfora da reta. Não seria esta uma representação (ou uma sensação)
tão falsa como a torre que ao longe nos parece pequena; a torre de que
nos falava Descartes?
O que significará, por exemplo, pensar depressa ou pensar devagar se a
velocidade do pensamento deve ser uma única: a das reações físico-
químicas que ocorrem no cérebro? Como saber se o tempo da lógica e o
tempo do pensamento são os mesmos? Esta deve ser também uma falsa
representação da natureza do pensamento, da mesma maneira que podemos
estar equivocados ao achar que pensamos com o cérebro e não com o
corpo.
O corpo seria o "corpo pensante", ou a verdadeira substância pensante,
se quisermos continuar a usar o vocabulário cartesiano. Descartes
teria, efetivamente, cometido um erro ao separar corpo e alma, como
nos diz o neurobiólogo Antonio Damásio. Nosso pensamento é um processo
de mutirão que conta com a inervação que o cérebro tem espalhado por
toda a extensão do corpo - um processo do qual participam reações
hormonais oriundas de várias partes. Nosso cérebro (ou nossa mente?)
não é o timoneiro do navio - uma metáfora que também (pasmem!) o
próprio Descartes rejeitou.
O corpo do ciborgue, com sua espacialidade difusa que mais o aproxima
de uma representação do que de um objeto físico no sentido tradicional
convida-nos a repensar os pólos da equação tradicional (não-resolvida)
segundo a qual a mente só pode ser definida ou por identidade ou por
diferença absoluta em relação ao corpo (ou ao cérebro). Uma identidade
que ainda é problemática, pois a neurociência contemporânea manteve
uma temática cartesiana invertida, assumindo, sem conseguir provar, a
materialidade do mental. Nesta pseudo-inovação, o problema mente -
cérebro é o que continua no horizonte, pois não conseguimos ainda
provar que todo mental é redutível ao físico. Em outras palavras, a
neurociência não solapou as categorias habituais com as quais pensamos
nossos próprios corpos e nossa suposta diferença com o mundo físico.
Ela tem sido apenas um "materialismo cartesiano".
O corpo do ciborgue nos permite propor algo alternativo: que o pólo
"corpo" na equação mente = corpo é uma construção lingüística derivada
de uma representação herdada, qual seja, a de um corpo dividido em
partes ou em órgãos. A linguagem é o instrumento deste mapeamento,
desta partição. O problema mente-cérebro passa inevitavelmente pela
questão lingüística. Mas não no sentido que lhe deram Carnap ou Ryle
que viam na existência do vocabulário mentalista todos os problemas da
psicologia e a própria origem da questão mente-cérebro, que seria um
pseudo-problema a ser dissolvido pela terapia da linguagem. A questão
é conceber um corpo anterior à linguagem, um corpo não particionado
pela nomenclatura de seus órgãos, um corpo que seria uma representação
uniforme e contínua, apesar de suas diferenças morfológicas. Esse é um
corpo sem órgãos, pois a linguagem ainda não os inventou. Esse é o
corpo pensante, que não pensa apenas com o cérebro, pois nele ainda
não foi demarcado um cérebro ou uma cabeça.
Um corpo sem órgãos - esse ponto de fuga em direção ao miasma
originário do qual viemos - seria um corpo ainda não particionado pela
linguagem e pela cultura. É o corpo que ainda não está
territorializado pela divisão de funções; o corpo pré-lingüístico que
ainda não foi inventado nem pela civilização nem pela medicina. Por
isso ele não localiza o pensamento no cérebro, como aprendemos a
fazer. A questão mente-cérebro desfaz-se pela ausência de um
território cerebral específico e torna-se novamente na questão mente-
corpo, mas desta vez deixando de ser um problema.
Sentimos o pensar no cérebro, mas quem (ou o que) pensa é o corpo -
como já o sugeriu uma vez o psicólogo francês Pierre Janet, que via a
ocorrência do pensamento na cabeça como apenas o topo do iceberg.
(Mais recentemente a idéia foi também explorada pela filósofa
finlandesa Suzana Paasonen). O corpo pré-lingüístico é só movimento,
só "anima", corpo intencional ou puro desejo que se manifesta como
movimento, expressão de uma sexualidade polimorfa que não tem gênero
(isto é, tem os dois) nem cujo prazer tenha sido predominantemente
genitalizado. A demarcação do erógeno vem com a civilização e com a
linguagem.
O corpo sem órgãos (nesta alusão a Deleuze e Guattari, mas não no
sentido que estes lhe conferem na esquizoanálise) é o corpo real,
indivisível, o corpo que escapou do truque metodológico cartesiano de
dividir o composto em partes para poder analisá-lo. Não seríamos
máquinas espirituais como quer Kurzweil, mas máquinas desejantes. Pois
o corpo sem órgãos é o oposto da ontologia do corpo virtualizado - o
corpo imortal dos anjos e das próteses - que hoje querem nos fazer
crer que poderemos ter.
Ora, não será o corpo sem órgãos que a nova robótica, a robótica do
século XXI já estará tentando replicar? Afinal não é à toa que ela
abandonou a metáfora do timoneiro no navio e opta cada vez mais por
arquiteturas descentralizadas. Arquiteturas estas onde os robôs não
têm mais a clássica distinção entre um "cérebro" (uma CPU) e seus
periféricos, que seriam seu corpo.
Mas ainda há muitos caminhos para nos misturarmos com o mundo
inorgânico.Poderemos também, caminhando na direção inversa do
ciborgue, apossarmo-nos de cérebros de criaturas inferiores e tornar
suas sinapses portas lógicas. Com isto estenderemos nosso corpo e
incorporaremos a ele outros seres vivos num processo de simbiose
ampliada. Os verdadeiros super-computadores surgirão através da
mistura entre o silício e orgânico. Quem pensa que a inteligência
artificial acabou, está muito enganado. Ela apenas começou.
O que mais nos inquieta nela, não é a possibilidade de que o homem pós-
orgânico seja o final da vida tal como a conhecemos, mas o fim da
morte. Esse era o temor de Heidegger. O temor de Darwin seria o de que
os ciborgues nos extinguissem - ou seja, transformassem os humanos
apenas num nicho evolucionário feliz ou num tipo de curiosidade
histórica como ocorreu com baratas, ratos e crocodilos, que
sobreviveram ao homem até hoje.
Texto de João Teixeira
Mente, Cérebro e Consciência: João de Fernandes Teixeira é professor
no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Carlos.
Autor de diversos livros na área de filosofia da mente e ciência
cognitiva, dentre os quais destacam-se "Mente, Cérebro e
Cognição" (Vozes, 2000), "Filosofia e Ciência Cognitiva" (Vozes, 2004)
e "Filosofia da Mente: neurociência, cognição e
comportamento" (Claraluz, 2005).
fonte:
http://www.redepsi.com.br/portal/modules/soapbox/article.php?articleID=62