EDUCAÇÃO E CYBERCULTURA - Pierre Lévy

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Hannah BLUE

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Nov 8, 2007, 12:15:49 PM11/8/07
to Midiateca da HannaH
EDUCAÇÃO E CYBERCULTURA
Pierre Lévy

Toda e qualquer reflexão séria sobre o devir dos sistemas de educação
e formação na cybercultura deve apoiar-se numa análise prévia da
mutação contemporânea da relação com o saber. A esse respeito, a
primeira constatação envolve a velocidade do surgimento e da renovação
dos saberes e do know-how. Pela primeira vez na história da
humanidade, a maioria das competências adquiridas por uma pessoa no
começo de seu percurso profissional serão obsoletas no fim de sua
carreira. A segunda constatação, fortemente ligada à primeira,
concerne à nova natureza do trabalho, na qual a parte de transação de
conhecimentos não pára de crescer. Trabalhar equivale cada vez mais a
aprender, transmitir saberes e produzir conhecimentos. Terceira
constatação: o ciberespaço suporta tecnologias intelectuais que
ampliam, exteriorizam e alteram muitas funções cognitivas humanas: a
memória (bancos de dados, hipertextos, fichários digitais [numéricos]
de todas as ordens), a imaginação (simulações), a percepção (sensores
digitais, telepresença, realidades virtuais), os raciocínios
(inteligência artificial, modelização de fenômenos complexos).

Tais tecnologias intelectuais favorecem novas formas de acesso à
informação, como: navegação hipertextual, caça de informações através
de motores de procura, knowbots, agentes de software, exploração
contextual por mapas dinâmicos de dados, novos estilos de raciocínio e
conhecimento, tais como a simulação, uma verdadeira industrialização
da experiência de pensamento, que não pertence nem à dedução lógica,
nem à indução a partir da experiência.

Devido ao fato de que essas tecnologias intelectuais, sobretudo as
memórias dinâmicas, são objetivadas em documentos numéricos (digitais)
ou em softwares disponíveis em rede (ou de fácil reprodução e
transferência), elas podem ser partilhadas entre um grande número de
indivíduos, incrementando, assim, o potencial de inteligência coletiva
dos grupos humanos.

O saber-fluxo, o saber-transação de conhecimento, as novas tecnologias
da inteligência individual e coletiva estão modificando profundamente
os dados do problema da educação e da formação. O que deve ser
aprendido não pode mais ser planejado, nem precisamente definido de
maneira antecipada. Os percursos e os perfis de competência são, todos
eles, singulares e está cada vez menos possível canalizar-se em
programas ou currículos que sejam válidos para todo o mundo. Devemos
construir novos modelos do espaço dos conhecimentos. A uma
representação em escalas lineares e paralelas, em pirâmides
estruturadas por «níveis», organizadas pela noção de pré-requisitos e
convergindo até saberes «superiores», tornou-se necessário doravante
preferir a imagem de espaços de conhecimentos emergentes, abertos,
contínuos, em fluxos, não-lineares, que se reorganizam conforme os
objetivos ou contextos e nos quais cada um ocupa uma posição singular
e evolutiva.

Assim sendo, tornam-se necessárias duas grandes reformas dos sistemas
de educação e formação. Primeiro, a adaptação dos dispositivos e do
espírito do aprendizado aberto e à distância (AAD) no cotidiano e no
ordinário da educação. É verdade que o AAD explora certas técnicas do
ensino à distância, inclusive a hipermídia, as redes interativas de
comunicação e todas as tecnologias intelectuais da cybercultura. O
essencial, porém, reside num novo estilo de pedagogia que favoreça, ao
mesmo tempo, os aprendizados personalizados e o aprendizado
cooperativo em rede. Nesse quadro, o docente vê-se chamado a tornar-se
um animador da inteligência coletiva de seus grupos de alunos, em vez
de um dispensador direto de conhecimentos.

A segundo reforma envolve o reconhecimento do aprendido. Ainda que as
pessoas aprendam em suas experiências profissionais e sociais, ainda
que a escola e a universidade estejam perdendo progressivamente seu
monopólio de criação e transmissão do conhecimento, os sistemas de
ensino públicos podem ao menos dar-se por nova missão a de orientar os
percursos individuais no saber e contribuir para o reconhecimento do
conjunto de know-how das pessoas, inclusive os saberes não-acadêmicos.
As ferramentas do ciberespaço permitem considerar amplos sistemas de
testes automatizados acessíveis a todo o momento e redes de transação
entre a oferta e a demanda de competência. Ao organizar a comunicação
entre empregadores, indivíduos e recursos de aprendizado de todas as
ordens, as universidades do futuro estariam contribuindo para a
animação de uma nova economia do conhecimento.

Este capítulo e o próximo desenvolvem as idéias que acabam de ser
expostas e propõem, a título de conclusão, certas soluções práticas
(as «árvores de conhecimentos»).

A articulação de uma multidão de pontos de vista sem ponto de vista de
Deus
Em um de meus cursos na Universidade Paris-8, intitulado "Tecnologias
digitais e mutações culturais", eu peço para cada estudante apresentar
uma exposição de dez minutos. Na véspera das exposições, devo receber
uma síntese de duas páginas, acompanhada de uma bibliografia, que
poderá eventualmente ser fotocopiada pelos outros estudantes que
desejem aprofundar a questão.

Em 1995, um deles me entregou suas duas páginas de resumo, dizendo com
um certo mistério: "Aqui está! Trata-se de uma exposição virtual!" Por
mais que eu leia seu trabalho sobre os instrumentos musicais digitais,
não vejo o que o diferencia das sínteses habituais: um título em
negrito, subtítulos, palavras sublinhadas num texto bastante bem
articulado, uma bibliografia. Divertido com meu ceticismo, leva-me até
a sala dos computadores e, acompanhados por outros estudantes, instala-
nos diante de um terminal. Descubro, então, que as duas páginas de
resumo a que eu havia recorrido no papel eram a projeção impressa de
páginas da Web.

Em vez de um texto localizado, fixado num suporte de celulose, no
lugar de um pequeno território com um autor proprietário, um começo,
um fim, margens formando fronteiras, eu me via diante de um documento
dinâmico, aberto, onipresente, que me remetia para um corpus
praticamente infinito. O mesmo texto mudara de natureza. Fala-se em
«página» em ambos os casos, mas a primeira página é um pagus, um campo
delimitado, apropriado, semeado de sinais arraigados, a outra é uma
unidade de fluxos, sujeita às obrigações do caudal nas redes. Mesmo
referindo-se a artigos ou livros, a primeira página está fisicamente
fechada. A segunda, ao contrário, conecta-nos técnica e imediatamente
a páginas de outros documentos, espalhadas por todo o planeta, que por
sua vez nos remetem indefinidamente a outras páginas, a outras gotas
do mesmo oceano mundial de sinais flutuantes.

A partir da invenção de uma pequena equipe do CERN, a World Wide Web
propagou-se como pólvora entre os usuários da internet para tornar-se,
em poucos anos, um dos principais eixos de desenvolvimento do
ciberespaço. Talvez isso não expresse mais do que uma tendência
provisória. Mas, pelos laços que ela lança para o resto da rede, pelos
cruzamentos ou as bifurcações que propõe, constitui-se também numa
seleção organizadora, um agente estruturante, uma filtragem desse
corpus. Cada elemento desse incircunscritível novelo é, ao mesmo
tempo, um pacote de informação e um instrumento de navegação, uma
parte do estoque e um ponto de vista original sobre o referido
estoque. Numa face, a página Web forma a gotinha de um tudo fugidio,
enquanto na outra face propõe um filtro peculiar do oceano de
informações.

Na Web, tudo está no mesmo plano. Não obstante, tudo está
diferenciado. Não há nenhuma hierarquia absoluta, e cada sítio é um
agente de seleção, de encaminhamento ou de hierarquização parcial.
Longe de ser uma massa amorfa, a Web articula uma multidão aberta de
pontos de vista; porém, essa articulação opera-se transversalmente, em
rizoma, sem ponto de vista de Deus, sem unificação superior. Que esse
estado de coisas gera confusão, cada um o reconhece. Novos
instrumentos de indexação e pesquisa precisam ser inventados, conforme
atesta a riqueza dos trabalhos atuais sobre a cartografia dinâmica dos
espaços de dados, os "agentes" inteligentes ou a filtragem cooperativa
das informações. Ainda assim, quaisquer que sejam os progressos
vindouros das técnicas de navegação, é muito provável que o
ciberespaço conserve sempre seu caráter profuso, aberto, radicalmente
heterogêneo e não-totalizável.

O segundo dilúvio e a inacessibilidade do tudo
Sem fechamento semântico ou estrutural, a Web tampouco está parada no
tempo. Aumenta, mexe-se e transforma-se sem parar. A World Wide Web
está fluindo, escoando. Suas inumeráveis fontes, suas turbulências,
sua irresistível ascensão oferecem uma fantástica imagem da cheia
contemporânea de informação. Cada reserva de memória, cada grupo, cada
indivíduo, cada objeto pode tornar-se emissor e aumentar o fluxo. A
esse respeito e de maneira colorida, Roy Ascott fala do segundo
dilúvio. O dilúvio de informações. Para o melhor ou o pior, esse
dilúvio não será acompanhado por nenhum refluxo. Devemos acostumarmo-
nos a essa profusão e a essa desordem. A não ser alguma catástrofe
cultural, nenhum grande reordenamento, nenhuma autoridade central nos
levará de volta à terra firme, nem às paisagens estáveis e bem
balizadas anteriores à inundação.

O ponto da virada histórica da relação com o saber situa-se
provavelmente no fim do século XVIII, naquele momento de frágil
equilíbrio em que o mundo antigo brilhava com suas melhores luzes,
enquanto as fumaças da revolução industrial começavam a mudar a cor do
céu. Quando Diderot e d'Alembert publicavam sua grande Enciclopédia.
Até aquele momento, então, um pequeno grupo de homens podia ter a
esperança de dominar a totalidade dos saberes (ou ao menos os
principais) e propor aos outros o ideal desse domínio. O conhecimento
ainda podia ser totalizado, somado. A partir do século XIX, com a
ampliação do mundo, com a progressiva descoberta de sua diversidade,
com o crescimento cada vez mais rápido dos conhecimentos científicos e
técnicos, o projeto de domínio do saber por um indivíduo ou um pequeno
grupo tornou-se cada vez mais ilusório. Tornou-se hoje evidente,
tangível para todos, que o conhecimento passou definitivamente para o
lado do não-totalizável, do indominável. Não podemos senão desistir.

A emergência do ciberespaço não significa em absoluto que "tudo"
esteja enfim acessível, mas que o tudo está definitivamente fora de
alcance. O que salvar do dilúvio? O que é que colocaremos na arca?
Pensar que poderíamos construir uma arca que contivesse o "principal"
seria precisamente ceder à ilusão da totalidade. Todos nós,
instituições, comunidades, grupos humanos, indivíduos, necessitamos
construir um significado, providenciar zonas de familiaridade,
domesticar o caos ambiente. Mas, por um lado, cada um deve reconstruir
à sua maneira totalidades parciais, de acordo com seus próprios
critérios de pertinência. Por outro lado, essas zonas apropriadas de
significado deverão necessariamente ser móveis, mutantes, em devir. De
modo que, à imagem da grande arca, devemos substituir a flotilha de
pequenas arcas, botes ou sampanas, uma miríade de pequenas
totalidades, diferentes, abertas e provisórias, segregadas por
filtragem ativa, perpetuamente retomadas pelos coletivos inteligentes
que se cruzam, se chamam, se chocam ou se misturam nas grandes águas
do dilúvio informacional.

Hoje, pois, as metáforas centrais da relação com o saber são a
navegação e o surfe, que implicam uma capacidade para enfrentar as
ondas, os turbilhões, as correntes e os ventos contrários numa
extensão plana, sem fronteiras e sempre mutante. Em contrapartida, as
velhas metáforas da pirâmide (escalar a pirâmide do saber), da escala
ou do curso (já todo traçado) têm aquele cheiro gostoso das
hierarquias imóveis de outrora.

Quem sabe? A reencarnação do saber
As páginas Web expressam as idéias, os desejos, os saberes, as ofertas
de transação de pessoas e grupos humanos. Atrás do grande hipertexto
está borbulhando a multidão e suas relações. No ciberespaço, o saber
não pode mais ser concebido como algo abstrato ou transcendente. Está
se tornando cada vez mais evidente - e até tangível em tempo real -
que esse saber expressa uma população. Não só as páginas Web são
assinadas, igualmente às páginas de papel, como também costumam
desembocar numa comunicação direta, interativa, via correio digital,
fórum eletrônico, ou outras formas de comunicação por mundos virtuais,
como os MUDs ou os MOOs. Assim, ao contrário do que a vulgata
mediática deixa crer sobre a pretensa "frieza" do ciberespaço, as
redes digitais interativas são potentes fatores de personalização ou
encarnação do conhecimento.

Devemos lembrar sem cansar a inanidade do esquema da substituição. Da
mesma maneira que a comunicação pelo telefone não tem impedido as
pessoas de encontrarem-se fisicamente, pois usamos o telefone para
marcar nossos encontros, a comunicação por mensagens eletrônicas
muitas vezes prepara viagens físicas, colóquios ou reuniões de
negócio. Mesmo quando não acompanha algum encontro material, a
interação no ciberespaço não deixa de ser uma forma de comunicação.
Ouve-se às vezes, porém, o argumento de que certas pessoas passam
horas "frente à tela", isolando-se dos outros. Não resta dúvida de que
não podemos encorajar os excessos. Mas será que dizemos de quem lê que
ele "passa horas diante de papel"? Não. Porque a pessoa que lê não
está se relacionando com uma folha de celulose, mas está em contato
com um discurso, com vozes, com um universo de significado que ela
contribui para construir, para habitar com sua leitura. Que o texto
esteja numa tela não muda em nada o fundo da questão. Trata-se ainda
de leitura, embora, conforme vimos, as modalidades da leitura tendam a
transformar-se com os hipertextos e a interconexão geral.

Ainda que os suportes de informação não determinem automaticamente tal
ou qual conteúdo de conhecimento, eles não deixam de contribuir para
estruturar fortemente a «ecologia cognitiva» das sociedades. Pensamos
com e em grupos e instituições que tendem a reproduzir suas
idiossincrasias impregnando-nos com seu clima emocional e seus
funcionamentos cognitivos. Nossas faculdades para conhecer trabalham
com línguas, sistemas de sinais e procedimentos intelectuais
fornecidos por uma cultura. Não se multiplica da mesma maneira com
cordas, nós, pedras, números romanos, números arábicos, ábacos, réguas
de cálculo ou calculadoras. Ao não oferecer as mesmas imagens do
mundo, os vitrais das catedrais e as telas de televisor não suscitam
os mesmos imaginários. Certas representações não podem sobreviver por
muito tempo numa sociedade sem escrita (números, tabelas, listas),
enquanto é fácil arquivá-las graças às memórias artificiais. Para
codificar seus saberes, as sociedades sem escrita desenvolveram
técnicas de memória apoiadas no ritmo, no relato, na identificação, na
participação do corpo e na emoção coletiva. Com a ascensão da escrita,
ao contrário, o saber pôde desvencilhar-se parcialmente das
identidades pessoais ou coletivas, tornar-se mais «crítico», almejar
uma certa objetividade e um alcance teórico «universal». Não são
apenas os modos de conhecimento que dependem dos suportes de
informação e das técnicas de comunicação. Também são, pelo intermédio
das ecologias cognitivas que elas condicionam, os valores e os
critérios de julgamentos das sociedades. Ora, são precisamente os
critérios de avaliação do saber (no sentido mais amplo da palavra) que
entram no jogo com a extensão da cybercultura, com o provável, já
observável, declínio dos valores vigentes na civilização estruturada
pela escrita estática. Não é que esses valores sejam chamados a
desaparecer, mas tornar-se-ão secundários, perderão seu poder de
comando.

Mais importante talvez do que os gêneros de conhecimentos e os
critérios de valor que as polarizam, cada ecologia cognitiva favorece
certos atores, postos no centro dos processos de assimilação e
exploração do saber. Aqui a questão não é mais «como?», nem «segundo
que critérios?», mas «quem?».

Nas sociedades anteriores à escrita, o saber prático, mítico e real é
encarnado pela comunidade viva. A morte de um velho é uma biblioteca
em chamas. Com o advento da escrita, o saber é carregado pelo livro. O
livro, único, indefinidamente interpretável, transcendente, que contém
supostamente tudo: a Bíblia, o Alcorão, os textos sacros, os
clássicos, Confúcio, Aristóteles... No caso, o intérprete é que domina o
conhecimento. Desde a prensa até esta manhã, um terceiro tipo de
conhecimento vê-se assombrado pela figura do cientista, do científico.
No caso, o saber não é mais carregado pelo livro, mas sim pela
biblioteca. A Enciclopédia de Diderot e d'Alembert é menos um livro do
que uma biblioteca. O saber é estruturado por uma série de remissões,
assombrado, talvez desde sempre, pelo hipertexto. O conceito, a
abstração ou o sistema servem, então, para condensar a memória e
garantir um domínio intelectual que a inflação dos conhecimentos já
está pondo em perigo.

Talvez a desterritorialização da biblioteca a que estamos presenciando
hoje não seja senão o prelúdio do surgimento de um quarto tipo de
relação com o conhecimento. Por uma espécie de volta em espiral até a
oralidade das origens, o saber poderia novamente ser carregado pelas
coletividades humanas vivas, do que por suportes separados, servidos
por intérpretes ou cientistas. Só que, dessa vez, ao contrário da
oralidade arcaica, o carregador direto do saber não seria mais a
comunidade física e sua memória carnal, mas sim o ciberespaço, a
região dos mundos virtuais pelo intermédio dos quais as comunidades
descobrem e constroem seus objetos e se conhecem como coletivos
inteligentes.

Os sistemas e os conceitos estão doravante cedendo terreno aos finos
mapas das singularidades, à descrição detalhada dos grandes objetos
cósmicos, dos fenômenos da vida ou das matérias humanas. Tomemos todos
os grandes projetos tecnico-científicos contemporâneos: física das
partículas, astrofísica, genoma humano, espaço, nanotecnologias,
acompanhamento das ecologias e dos climas... estão todos suspensos ao
ciberespaço e às suas ferramentas. Os bancos de dados de imagens, as
simulações interativas e as conferências eletrônicas permitem um
melhor conhecimento do mundo do que a abstração teórica, relegada ao
segundo plano. Ou melhor, eles definem a nova norma do conhecimento.
Além disso, tais ferramentas permitem uma eficaz coordenação dos
produtores de saber, enquanto teorias e sistemas suscitavam antes a
adesão ou o conflito. É impressionante constatar que certas
experiências realizadas nos grandes aceleradores de partículas
mobilizam tantos recursos, são tão complexas e difíceis de interpretar
que elas mal ocorrem mais de uma vez. Cada experiência é quase que
singular. Isso parece contradizer o ideal de reprodutibilidade da
ciência clássica. Ainda assim, essas experiências continuam
universais; porém, de outra maneira que não a possibilidade de
reprodução. Delas participam uma multidão de cientistas de todos os
países, que formam uma espécie de microcosmo ou de projeção da
comunidade internacional. Mas, e sobretudo, o contato direto com a
experiência praticamente desapareceu em proveito da produção em massa
de dados numéricos. Ora, esses dados podem ser consultados e
processados num grande número de laboratórios espalhados, graças aos
instrumentos de comunicação e processamento do ciberespaço. Assim, o
conjunto da comunidade científica pode participar dessas experiências
muito particulares, as quais são outros tantos eventos. A universidade
apóia-se, pois, sobre a interconexão em tempo real da comunidade
científica, sua participação cooperativa nos eventos que lhe
concernem, mais do que sobre a depreciação do evento singular que
caracterizava a antiga universalidade das ciências exatas.

A simulação: um modo de conhecimento próprio da cybercultura
Entre os novos gêneros de conhecimento carregados pela cybercultura, a
simulação ocupa um lugar central. Numa palavra, trata-se de uma
tecnologia intelectual que decuplica a imaginação individual (aumento
da inteligência) e permite que grupos partilhem, negociem e refinem
modelos mentais comuns, qualquer que seja a complexidade de tais
modelos (aumento da inteligência coletiva). Para incrementar e
transformar certas capacidades cognitivas humanas (a memória, a
imaginação, o cálculo, o raciocínio expert), a informática exterioriza
parcialmente essas faculdades em suportes numéricos. Ora, ao serem
exteriorizados e reificados, esses processos cognitivos tornam-se
partilháveis, reforçando, portanto, os processos de inteligência
coletiva... desde que as técnicas sejam utilizadas com discernimento.

Até os sistemas experts (ou sistemas baseados em conhecimentos),
tradicionalmente postos na categoria «inteligência artificial»,
deveriam ser considerados como técnicas de comunicação e mobilização
rápida dos know-how de práticas nas organizações, mais do que como
duplicações de experts humanos. Tanto no plano cognitivo quanto na
organização do trabalho, as tecnologias intelectuais devem ser
pensadas em termos de articulação e postas em sinergia, mais do que de
acordo com o esquema da substituição.

As técnicas de simulação, em particular as que envolvem imagens
interativas, não substituem os raciocínios humanos, mas prolongam e
transformam as capacidades de imaginação e pensamento. Com efeito,
nossa memória de longo prazo tem a capacidade para armazenar uma
quantidade muito grande de informações e conhecimentos. Nossa memória
de curto prazo, que contém as representações mentais às quais
prestamos deliberadamente nossa atenção, possui, ao contrário,
capacidades muito limitadas. Para nós é impossível, por exemplo,
representarmos clara e distintamente mais de uma dezena de objetos em
interações.

Embora possamos evocar mentalmente a imagem do castelo de Versalhes,
não conseguimos contar suas janelas «em nossa cabeça». O grau de
resolução da imagem mental não é suficiente. Para chegar a esse nível
de detalhe, necessitamos de uma memória auxiliar externa (gravura,
fotografias, pintura), graças à qual poderemos efetuar novas operações
cognitivas: contar, medir, comparar, etc. A simulação é uma ajuda para
a memória de curto prazo que envolve não imagens fixas, textos ou
tabelas de números, e sim dinâmicas complexas. A capacidade de fazer
variar facilmente os parâmetros de um modelo e observar de imediato e
visualmente as conseqüências dessa variação constitui-se numa
verdadeira ampliação da imaginação.

Hoje em dia, a simulação exerce um papel crescente nas atividades de
pesquisa científica, de concepção industrial, de gestão, de
aprendizado, mas também para o jogo e a diversão (em especial os jogos
interativos na tela). Em teoria, em experiência, a maneira de
industrialização da experiência de pensamento - a simulação - é um
modo especial de conhecimento, próprio da cybercultura nascente. Na
pesquisa, seu principal interesse não está, evidentemente, na
substituição da experiência, nem em fazer as vezes de realidades, mas
em permitir a formulação e a rápida exploração de um grande número de
hipóteses. Sob o ângulo da inteligência coletiva, ela permite a
colocação em imagens e a partilha de mundos virtuais e de universos de
significado de uma grande complexidade.

Doravante, os saberes são codificados em bancos de dados acessíveis em
linha, em mapas alimentados em tempo real pelos fenômenos do mundo e
em simulações interativas. A eficiência, a fecundidade heurística, o
poder de mutação e bifurcação, a pertinência temporal e contextual dos
modelos estão suplantando os antigos critérios de objetividade e
universalidade abstrata. Está presente, no entanto, uma forma mais
concreta de universalidade pela capacidades de conexão, o respeito de
padrões ou formatos, a compatibilidade ou a interpolaridade
planetária.

Da interconexão caótica à inteligência coletiva
Destotalizado, o saber flutua. Donde vem um violento sentimento de
desorientação. Deveremo-nos crispar nos procedimentos e esquemas que
garantiam a antiga ordem do saber? Não devermos, ao contrário, dar um
pulo e penetrar em cheio na nova cultura, que oferece remédios
específicos para os males que a mesma gera? É certo que a interconexão
em tempo real de todos com todos é a causa da desordem. Mas ela é
também a condição de possibilidade das soluções práticas para os
problemas de orientação e aprendizado no universo do saber em fluxo.
Com efeito, essa interconexão favorece os processos de inteligência
coletiva nas comunidades virtuais, graças a que o indivíduo vê-se
menos desprovido frente ao casos informacional.

Mais precisamente, o ideal mobilizador da informática não é mais a
inteligência artificial (tornar uma máquina tão inteligente, mais
inteligente até, quanto um homem), mas sim a inteligência coletiva,
isto é, a valorização, a utilização otimizada e a colocação em
sinergia das competências, imaginações e energias intelectuais,
independentemente de sua diversidade qualitativa e de sua localização.
Esse ideal da inteligência coletiva passa evidentemente pela colocação
em comum da memória, da imaginação e da experiência, por uma prática
banalizada do intercâmbio de conhecimentos, por novas formas,
flexíveis e em tempo real, de organização e coordenação. Embora as
novas técnicas de comunicação favoreçam o funcionamento, em
inteligência coletiva, dos grupos humanos, cabe repetir que elas não o
determinam de maneira automática. A defesa de poderes executivos, das
rigidezes institucionais, a inércia das mentalidades e das culturas
podem evidentemente levar a utilizações sociais das novas tecnologias
muito menos positivas, conforme critérios humanistas.
O ciberespaço, interconexão dos computadores do planeta, tende a
tornar-se a maior infra-estrutura da produção, da gestão, da transação
econômica. Em breve, constituirá o principal equipamento coletivo
internacional da memória, do pensamento e da comunicação. Em suma,
daqui a algumas décadas, o ciberespaço, suas comunidades virtuais,
suas reservas de imagens, suas simulações interativas, sua
irreprimível profusão de textos e sinais serão o mediador essencial da
inteligência coletiva da humanidade. Com esse novo suporte de
informação e comunicação, estão emergindo gêneros de conhecimentos
inéditos, critérios de avaliação inéditos para orientar o saber, os
novos atores na produção e no processamento dos conhecimentos. Toda e
qualquer política de educação deverá levá-lo em consideração.

Mutações da educação e economia do saber
Aprendizado aberto e à distância

Os sistemas de educação estão sofrendo hoje novas obrigações de
quantidade, diversidade e velocidade de evolução dos saberes. Num
plano puramente quantitativo, jamais foi tão maciça a demanda por
formação. Em muitos países, a maioria de uma classe etária é que
recebe um ensino de segundo grau. As universidades estão mais do que
lotadas. Os dispositivos de formação profissional e contínua estão
saturados. A título de imagem, dir-se-á que metade da sociedade está,
ou gostaria de estar, na escola.

Será impossível aumentar o número de professores proporcionalmente à
demanda de formação que é, em todos os países do mundo, cada vez mais
diversa e maciça. A questão do custo do ensino surge mais
especialmente nos países pobres. Ou seja, será necessário decidir-se a
encontrar soluções que apelem para técnicas capazes de multiplicar o
esforço pedagógico dos professores e dos formadores. Audiovisual,
«multimídia» interativa, ensino assistido por computador, televisão
educativa, cabo, técnicas clássicas de ensino à distância
fundamentadas essencialmente na escrita, monitorado por telefone, fax
ou internet... Todas essas possibilidades técnicas, de uma maior ou
menor pertinência conforme seu conteúdo, a situação, as necessidades
do «aprendiz», podem ser consideradas e já têm sido amplamente
testadas e experimentadas. Tanto no plano das infra-estruturas
materiais quanto no dos custos de operação, escolas e universidades
«virtuais» custam menos do que as escolas e universidades que
ministram em «presencial».

A demanda por formação não só está passando por um enorme crescimento
quantitativo, como também está sofrendo uma profunda mutação
qualitativa, no sentido de uma crescente necessidade de diversificação
e personalização. Os indivíduos suportam cada vez menos acompanhar
cursos uniformes ou rígidos que não correspondem às suas reais
necessidades e à especificidade de seus trajetos de vida. Uma resposta
ao crescimento da demanda por uma massificação da oferta (mais da
mesma coisa, com o fim de alcançar economias de escala) seria uma
resposta «industrialista» à antiga, inadaptada à flexibilidade e à
diversidade futuramente requeridas.

Vê-se como o novo paradigma da navegação (em oposição ao do «cursus»),
que se está desenvolvendo nas práticas de coleta de informação e de
aprendizado cooperativo no seio do ciberespaço, mostra a via de um
acesso ao mesmo tempo maciço e personalizado ao conhecimento.

As universidades e, cada vez mais, as escolas de primeiro e segundo
graus oferecem aos estudantes a possibilidade de navegar sobre o
oceano de informação e conhecimento acessível pela internet. Programas
educativos podem ser seguidos à distância pela World Wide Web. Os
correios e as conferências eletrônicas servem para a monitorização
inteligente e são postos ao serviço de dispositivos de aprendizado
cooperativo. Os suportes hipermídia (CD-ROM, bancos de dados
multimídia interativos e em linha) permitem acessos intuitivos rápidos
e atrativos a grandes conjuntos de informação. Sistemas de simulação
permitem que os aprendizes se familiarizem de maneira prática e barata
com objetos ou fenômenos complexos sem, por isso, sujeitarem-se a
situações perigosas ou difíceis de controlar.

Os especialistas da área reconhecem que a distinção entre ensino «em
presencial» e ensino «à distância» será cada vez menos pertinente,
pois o uso das redes de telecomunicação e dos suportes multimídia
interativos está integrando-se progressivamente às formas de ensino
mais clássicas (1). O aprendizado à distância tem sido durante muito
tempo o «estepe» do ensino e, em breve, tornar-se-á, se não a norma,
ao menos a cabeça pesquisadora. Com efeito, as características do AAD
são semelhantes às da sociedade da informação em seu conjunto
(sociedade de rede, de velocidade, de personalização, etc.). Além
disso, esse tipo de ensino está em sinergia com as «organizações
aprendizes» que uma nova geração de administradores está procurando
implantar nas sociedades.

O aprendizado cooperativo e o novo papel dos docentes
O ponto essencial aqui é a mudança qualitativa nos processos de
aprendizado. Procura-se menos transferir cursos clássicos em formatos
hipermídia interativos ou «abolir a distância» do que implementar
novos paradigmas de aquisição dos conhecimentos e de constituição dos
saberes. A direção mais promissora, que aliás traduz a perspectiva da
inteligência coletiva no campo educativo, é a do aprendizado
cooperativo.

Certos dispositivos informatizados de aprendizado de grupo foram
especialmente concebidos para a partilha de diversos bancos de dados e
o uso de conferências e mensagens eletrônicas. Fala-se, então, em
aprendizado cooperativo assistido por computador (em inglês: Computer
Supported Cooperative Learning ou CSCL). Nos novos «campos virtuais»,
professores e estudantes põem em comum os recursos materiais e
informacionais à sua disposição. Os professores aprendem ao mesmo
tempo que os estudantes e atualizam continuamente tanto seus saberes
«disciplinares» quanto suas competências pedagógicas. (A formação
contínua dos docentes é uma das aplicações mais evidentes dos métodos
do aprendizado aberto e à distância).

As últimas informações atualizadas tornam-se fácil e diretamente
acessíveis por intermédio dos bancos de dados em linha e a www. Os
estudantes podem participar de conferências eletrônicas
desterritorializadas, nas quais intervêm os melhores pesquisadores de
sua disciplina. Assim sendo, a função-mor do docente não pode mais ser
uma «difusão dos conhecimentos», executada doravante com uma eficácia
maior por outros meios. Sua competência deve deslocar-se para o lado
do incentivo para aprender e pensar. O docente torna-se um animador da
inteligência coletiva dos grupos dos quais se encarregou. Sua
atividade terá como centro o acompanhamento e o gerenciamento dos
aprendizados: incitação ao intercâmbio dos saberes, mediação
relacional e simbólica, pilotagem personalizada dos percursos de
aprendizado, etc.

Rumo a uma regulação pública da economia do conhecimento
As reflexões e as práticas sobre a incidência das novas tecnologias na
educação têm-se desenvolvido em diversos eixos. Muitos trabalhos, por
exemplo, foram realizados sobre a «multimídia», enquanto suporte de
ensino, ou sobre os computadores, como substitutos incansáveis dos
professores (ensino assistido por computador ou EAC). Nessa visão -
extremamente clássica - a informática oferece máquinas de ensinar.
Seguido outra abordagem, os computadores são considerados como
instrumentos de comunicação, de pesquisa, de informação, de cálculo,
de produção de mensagens (textos, imagens ou som) a serem postos nas
mãos dos «aprendizes». A perspectiva aqui adotada também é diferente.
O uso crescente das tecnologias digitais e das redes de comunicação
interativa está acompanhando e ampliando uma profunda mutação da
relação com o saber, da qual tentei traçar as grandes linhas neste
capítulo. Ao prolongar certas capacidades cognitivas humanas (memória,
imaginação, percepção), as tecnologias intelectuais com suporte
digital estão redefinindo seu alcance, seu significado, às vezes até
sua natureza. As novas possibilidades de criação coletiva distribuída,
de aprendizado cooperativo e de colaboração em rede propiciada pelo
ciberespaço estão questionando o funcionamento das instituições e os
modos habituais de divisão do trabalho, tanto nas empresas quanto nas
escolas.

Como manter as práticas pedagógicas em fase com processos de transação
de conhecimento em via de rápida transformação e, no futuro,
densamente divulgados na sociedade? Não se trata aqui de utilizar a
qualquer custo as tecnologias, mas sim de acompanhar consciente e
deliberadamente uma mudança de civilização que está questionando
profundamente as formas institucionais, as mentalidades e a cultura
dos sistemas educativos tradicionais e, notadamente, os papéis de
professor e aluno.

O que está em jogo na cybercultura, tanto no plano da redução dos
custos como no do acesso de todos à educação, não é tanto a passagem
do «presencial» para a «distância» e, tampouco, da escrita e do oral
tradicionais para a «multimídia». É sim a transição entre uma educação
e uma formação estritamente institucionalizada (escola, universidade)
e uma situação de intercâmbio generalizado dos saberes, de ensino da
sociedade por ela mesma, de reconhecimento autogerido, móvel e
contextual das competências. Nesse quadro, o papel do poder público
haveria de ser:

1) garantir a cada um uma formação elementar de qualidade (2);
2) permitir para todos um acesso aberto e gratuito a mediatecas,
centros de orientação, documentação e autoformação, a pontos de
entrada no ciberespaço, sem negligenciar a indispensável mediação
humana do acesso ao conhecimento;
3) regular e animar uma nova economia do conhecimento, na qual cada
indivíduo, cada grupo, cada organização sejam considerados como
recursos potenciais de aprendizado ao serviço de percursos de formação
contínuos e personalizados.

Saber-fluxo e dissolução das separações
Desde o fim dos anos 60 do presente século, os seres humanos têm
começado a experimentar uma relação com os conhecimentos e os know-how
que seus ancestrais desconheciam. Com efeito, antes deste período, as
competências adquiridas na juventude via de regra continuavam em uso
no fim da vida ativa. Tais competências até eram transmitidas de
maneira quase idêntica para os jovens ou aprendizes. A bem da verdade,
novos procedimentos, novas técnicas surgiam. Contudo, inovações que se
destacassem num fundo de estabilidade eram a exceção. Na escala de uma
vida humana, a maior parte dos know-how úteis sutis eram perenes. Ora,
em nossos dias, a situação mudou radicalmente, pois a maioria dos
saberes adquiridos no começo de uma carreira estarão obsoletos no fim
de um percurso profissional, até mesmo antes. As desordens da
economia, assim como o ritmo precipitado das evoluções científicas e
técnicas, determinam uma aceleração generalizada da temporalidade
social. Por causa disso é que os indivíduos e os grupos não se deparam
mais com saberes estáveis, com classificações de conhecimentos
herdadas e confortadas pela tradição, mas sim como um saber-fluxo
caótico, cujo curso é difícil de prever e no qual a questão agora é
aprender a navegar. A relação intensa com o aprendizado, com a
transmissão e a produção de conhecimentos não está mais reservado para
uma elite, mas diz respeito à massa das pessoas em sua vida diária e
em seu trabalho.

Portanto, está superado o velho esquema segundo o qual se aprende na
juventude um ofício que será exercido pelo resto da vida. Os
indivíduos são chamados a mudar de profissão várias vezes em sua
carreira e a própria noção de ofício está tornando-se cada vez mais
problemática. Melhor seria raciocinar em termos de competências
variadas, das quais cada um possuiria uma coleção singular. Cabe às
pessoas, então, manterem e enriquecerem sua coleção de competência ao
longo de sua vida. Essa abordagem leva a questionar a divisão clássica
entre período de aprendizado e período de trabalho (pois se aprende o
tempo todo), bem como o ofício enquanto principal modo de
identificação econômica e social das pessoas.
Com a formação contínua, a formação em alternância, os dispositivos de
aprendizado na empresa, a participação na vida associativa, sindical,
etc., está constituindo-se um continuum entre tempo de formação, por
um lado, e tempos de experiência profissional e social por outro.
Dentro desse continuum, um lugar está sendo aberto para todas as
modalidades de aquisição de competências (inclusive a autodidaxia).

Para uma parcela crescente da população, o trabalho não é mais a
execução repetitiva de uma tarefa prescrita, mas sim uma atividade
complexa, na qual a resolução inventiva de problemas, a coordenação
dentro de equipes e a gestão de relações humanas ocupam lugares não-
desprezíveis. A transação de informações e conhecimentos (produção de
saberes, aprendizado, transmissão) é parte integrante da atividade
profissional. Com o uso da hipermídia, dos sistemas de simulação e das
redes cooperativas de aprendizado cada vez mais integrados aos postos
de trabalho, a formação profissional das empresas tende a integrar-se
à produção.

A antiga relação com a competência era substancial e territorial. Os
indivíduos reconheciam-se por seus diplomas, estes últimos ligados a
disciplinas. Os empregados de escritório eram identificados por
postos, que declinavam ofícios, que preenchiam funções. No futuro,
tratar-se-á muito mais de gerir processos, trajetos e cooperações. As
competências variadas, adquiridas pelas pessoas de acordo com seus
percursos particulares, irão alimentar memórias coletivas. Acessíveis
em linha, essas memórias dinâmicas em suportes numéricos atenderão,
por sua vez, a necessidades concretas, aqui e agora, de indivíduos e
grupos em situação de trabalho ou aprendizado (é a mesma coisa).
Assim, à virtualização das organizações empresas «em rede»
corresponderá em breve uma virtualização da relação com o
conhecimento.

O reconhecimento do adquirido
Evidentemente, é para esse novo universo do trabalho que a educação
deve preparar. Simetricamente, no entanto, deve-se admitir também o
caráter educativo ou formador de muitas atividades econômicas e
sociais, o que levanta evidentemente o problema de seu reconhecimento
ou validação oficial, sendo que o sistema de diplomas parece cada vez
menos adequado. Por outro lado, o tempo necessário para a homologação
de novos diplomas e para a constituição dos currículos que levam a
eles não está mais em fase com o ritmo de evolução dos conhecimentos.

Pode parecer banal afirmar que todos os tipos de aprendizado e
formação devem poder dar lugar a uma qualificação ou a uma validação
socialmente reconhecida. Atualmente, entretanto, estamos muito longe
disso. Um grande número de processos vigentes em curso por meio de
dispositivos formais de formação contínua, para falarmos apenas das
competências adquiridas durante as experiências sociais e
profissionais dos indivíduos, não geram hoje nenhuma qualificação. A
relação com o saber emergente, cujas grandes linhas eu esbocei, traz o
questionamento da estreita associação entre duas funções dos sistemas
educativos: o ensino e o reconhecimento dos saberes. Como os
indivíduos aprendem cada vez mais fora das fileiras acadêmicas, cabe
aos sistemas de educação implantarem procedimentos de reconhecimento
dos saberes e know-how adquiridos na vida social e profissional. Para
esse fim, serviços públicos que explorassem em grande escala as
tecnologias da multimídia (testes automatizados, exames em
simuladores) e da rede interativa (possibilidade de fazer testes ou
fazer reconhecer suas aquisições com a ajuda de orientadores,
monitores e examinadores em linha) poderiam aliviar os docentes e as
instituições educacionais clássicas de uma tarefa de controle e
validação menos «nobre» - mas ainda necessária - do que o
acompanhamento dos aprendizados. Graças a esse grande serviço
descentralizado e aberto de reconhecimento e validação dos saberes,
todos os processos, todos os dispositivos de aprendizado, até os menos
formais, poderiam ser sancionados por uma qualificação dos
indivíduos.

A evolução do sistema de formação não pode ser dissociada da evolução
do sistema de reconhecimento dos saberes que o acompanha e pilota. A
título de exemplo, sabe-se que os exames é que estruturam, a jusante,
os programas de ensino. Utilizar todas as tecnologias novas na
educação e formação sem nada mudar nos mecanismos de validação dos
aprendizados equivale, ao mesmo tempo, a aumentar os músculos da
instituição escolar e a bloquear o desenvolvimento de seus sentidos e
cérebro.

Uma desregulação controlada do atual sistema de reconhecimento dos
saberes poderia favorecer o desenvolvimento das formações alternadas e
de todas as formações que conferissem um lugar importante à
experiência profissional. Ao autorizar a invenção de modos originais
de validação, tal desregulação encorajaria também as pedagogias pela
exploração coletiva e todas as formas de iniciativas a meia distância
entre a experimentação social e a formação explícita.

Semelhante evolução não deixaria de gerar interessantes retroefeitos
para certos modos de formação de tipo escolar, freqüentemente
bloqueados em estilos de pedagogia pouco aptos para mobilizar a
iniciativa, por orientar-se apenas pela sanção final do diploma. Numa
perspectiva ainda mais ampla, a desregulação controlada do
reconhecimento dos saberes aqui referida estimularia uma socialização
das funções públicas da escola. Com efeito, ela permitiria que todas
as forças disponíveis concorressem ao acompanhamento de trajetos de
aprendizados personalizados, adaptados aos objetivos e às diversas
necessidades dos indivíduos e das comunidades implicadas.

Os desempenhos industriais e comerciais das empresas, das regiões, das
grandes zonas geopolíticas estão em estreita correlação com políticas
de gestão do saber. Conhecimentos, know-how, competências são hoje a
principal fonte da riqueza das empresas, das grandes metrópoles, das
nações. Ora, vive-se hoje importantes dificuldades na gestão dessas
competências, tanto no nível de pequenas comunidades como no das
regiões. Do lado da demanda, observa-se uma inadequação crescente
entre as competências disponíveis e a demanda econômica. Do lado da
oferta, um grande número de competências não são nem reconhecidas, nem
identificadas, mais especialmente entre os que não possuem um diploma.
Esses fenômenos são particularmente sensíveis nas situações de
reconversões industriais ou de atraso de desenvolvimento de regiões
inteiras. Deve-se, paralelamente aos diplomas, imaginar modos de
reconhecimento dos saberes que possam prestar-se para uma visualização
em rede da oferta de competência e a uma pilotagem dinâmica retroativa
da oferta pela demanda. Para tanto, a comunicação através do
ciberespaço pode ser uma grande ajuda.
Uma vez aceito o princípio segundo o qual toda e qualquer aquisição de
competência deve poder dar lugar a um explícito reconhecimento social,
os problemas da gestão das competências, tanto na empresa como no
nível das coletividades locais, estarão a caminho, se não de sua
solução, ao menos de sua mitigação.

(1) Open and Distance Learning, Critical Success Factors. Accès à la
formatoin à distance: clés pour un développement durable. Editors:
Gordon Davies & David Tinsley. Atas, Conferência Internacional,
Genebra, 10 a 12 de outubro de 1994, 203 páginas.
(2) Todos os especialistas das políticas de educação reconhecem o
papel essencial da qualidade e da universalidade do ensino elementar
para o nível geral de educação de uma população. Além disso, o ensino
elementar abarca todas as crianças, enquanto o ensino do segundo grau
e, sobretudo, o superior envolvem apenas parte dos jovens. Ora, o
segundo grau e o superior públicos, que custam muito mais do que o
ensino elementar, são financiados pela totalidade dos contribuintes.
Existe aí uma fonte de desigualdade particularmente gritante nos
países pobres. Ver mais especialmente, de Sylvain Lourié, Ecole et
tiers monde, [Escola e Terceiro Mundo], Ed. Flammarion, Paris, 1993.

* Trecho da obra «Cybercultura» a ser publicada a 21 de novembro pela
editora Odile Jacob (frança).

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