Comunicação, divulgação científica e desconstrução
Glória Kreinz*
"A ciência exigia também que uma teoria da escritura viesse orientar a
pura descrição dos fatos - supondo-se que essa última expressão tenha
um sentido". (Derrida:1973:92)
A comunicação, e por conseqüência a divulgação científica, é um dos
conceitos examinado no livro Margens da Filosofia, por Jacques
Derrida, que afirma: "Parece evidente que o campo de equivocidade da
palavra "comunicação" se deixa maciçamente reduzir pelos limites do
que se chama noção de contexto. (Derrida, 1991:350).
Jacques Derrida situa seu arcabouço crítico no contexto da cultura
ocidental, poupando a cultura oriental de sua crítica, e também
elementos culturais de povos primitivos.
Outras organizações culturais são poupadas, mas na cultura ocidental
seus elementos organizacionais são revistos, sob a ótica da
desconstrução, pois representam, para o filósofo, uma forma
cristalizada de pensar a relação homem/mundo e Jacques Derrida só
entende um pensamento em movimento.
A cristalização representa a morte da comunicação, da divulgação
científica e da própria cultura. Ao relacionar comunicação e contexto
Derrida cria um elo difícil de ser trabalhado, pois o conceito de
contexto em Derrida liga-se ao não determinado.
O filósofo alemão Rainer Piepmeier, por exemplo, afirma que em Derrida
"o conceito de contexto não perde o sentido, mas passa a ser tido como
"jamais absolutamente determinável, possuidor de insaciabilidade
estrutural "(Piepmeier, 1991:138).
A conseqüência desta indeterminalidade do conceito de contexto leva,
como diz Derrida, "à disrupção, em última análise, da autoridade do
código como sistema fixo de regras; a destruição radical, no mesmo
lance, de todo o contexto como protocolo de código "(Derrida; 1991,
357).
Desta forma, contextualizar não é estabilizar, mas desestabilizar a
trama das convenções/contextualizaçãoes dos fenômenos culturais, e da
própria comunicação/divulgação científica.
É retirar do significante o significado estável. É questionar o
conceito de signo estável conforme visto por Saussure. Em Gramatologia
Derrida alerta: "Identificamos o logocentrismo e a metafísica da
presença como o desejo exigente, potente, sistemático e inexprimível,
de um tal significado" (Derrida; 1973:60).
Com a desconstrução do significado e do contexto tem-se também a
ruptura da presença , ou a ausência da presença "de qualquer
destinatário empiricamente determinado em geral". (Derrida; 1973:62)
É o que Jaques Derrida chama de morte do destinatário, acrescentando
que o que vale para o destinatário vale também, "pelas mesmas razões,
para o emissor , ou produtor". O que Derrida coloca em questão é a
autoridade do código e o poder da escritura, entendendo esta
autoridade como "exercício da violência". (Derrida; 1973:63)
Como se observa o conceito tradicional de comunicação foi questionado,
ficando em seu lugar a necessidade de revisão da teoria ligada à
conceitos tradicionais, que pressuponham um receptor passivo, diante
de um significado estabilizado no significante, que violentava o
próprio fluxo da significação, pois este fluxo está em movimento.
Christopher Johnson, autor do livro Derrida: A Cena da Escritura, da
Coleção Grandes Filosófos afirma que "a concepção de escritura de
Derrida desfamiliariza as distinções habituais feitas entre fala e
escritura, vida e morte, presença e ausência, humano e animal, humano
e tecnológico, e enfatiza, no lugar disso, sua necessária co-
implicação e continuidade. As várias filosofias (logocêntricas) da
presença que priorizam o vivente, humano, individual, consciente
(intencional) e tratam como simplesmente secundário e derivado
qualquer de suas mediações externas, precisamente requerem essas
distinções e demarcações a fim de manter sua ficção do sujeito puro e
integralmente autoconsciente que é habitualmente denominado "homem".
(Johnson; 2001:45)
Derrida critica este homem logocêntrico, que segundo ele representa o
protótipo do homem ocidental, fechado no autoritarismo de um código
que não tem legitimidade, pois é calcado na relação significante/
significado estáveis. O que tipifica o pensamento de Derrida em
relação à cultura ocidental é assinalar o lugar do contexto como o
lugar do logos , da estabilização.
Sua crítica se liga à crença na estabilidade do código, portanto da
comunicação. Ao desconstruir esta estabilidade, instaurando a
desconstextualização, Derrida coloca o movimento como proposta que
obriga a rever conceitos sedimentados culturalmente, entre eles a
comunicação e a divulgação científica.
Se pensarmos em culturas panteístas, onde Deus/Palavra/Lei não são o
núcleo estável, mas disseminado por toda a natureza, veremos que a
desconstrução critica, basicamente, a relação cultura/realidade que
tipifica a visão de mundo ocidental, e a organiza em termos de uma
estabilidade inexistente, pois o conceito de realidade, mais do que
nunca, se amplia e se redimensiona a cada dia, quanto mais o homem
reconhece e penetra nos domínios de um universo que ele não domina em
termos racionais, regido pela imprevisibilidade da ciência e leis do
caos.
Um dos fatos que se observa é que a desconstrução, segundo Derrida, é
movimento, sempre sujeito a novos contextos, novas leituras.
Johnson demonstra que "o traço ou o grammé, como o chama Derrida ( do
grego gramma, letra, escritura, um pequeno peso, daí "gramatologia"),
não é uma substância presente aqui e agora (não se pode ver, sentir ou
ouvir diferença): ele é diferença, isto é, diferença espacial e
diferença temporal (adiamento). Essa estrutura, ou melhor, esse
princípio estruturador, é comum a todos os sistemas complexos
envolvendo o registro, armazenamento e comunicação de informação".
(Johnson; 2001:44)
Quanto ao aspecto contextual o autor diz:
"Embora a concepção de escritura de Derrida seja num certo sentido
transcendental, isto é, situe a instância da escritura além ou por
trás do cenário de nossa experiência cotidiana dos fenômenos, ela não
é uma abstração ou especulação filosófica, e menos ainda uma
referência quase teológica a uma essência inefável extratemporal. A
"não-presença" do grammé, como Derrida a descreve aqui, em contraste
com o transcendentalismo filosófico clássico, está situada na
história, aquela da evolução do traço, uma evolução que precede mesmo
o processo da chamada história "natural". Deste modo, a teoria da
escritura de Derrida é, ao mesmo tempo, estrutural (descrevendo a
essência da escritura como inscrição (violenta), diferença e
adiamento) e histórica (descrevendo o continuum do traço desde o pré-
biológico ao bioantropológico até as diversas articulações e extensões
do bioantropológico)." (Johnson; 2001:45)
O próprio J. Derrida discute a afirmação que propõe que "a escritura
sendo totalmente histórica é ao mesmo tempo natural", concluindo que
"é surpreendente que o interesse científico pela escritura tenha
sempre tomado a forma de uma história da escritura."(Derrida:
1973:32)
Colocando também em discussão o discurso da divulgação científica
Derrida afirma:"a ciência exigia também que uma teoria da escritura
viesse orientar a pura descrição dos fatos - supondo-se que essa
última expressão tenha um sentido". (Derrida:1973:92)
Para Johnson estes conceitos de estrutural e histórico seriam a base
trabalhada por J.Derrida para construir sua teoria da escritura.
Há ainda uma reflexão de Johnson sobre Derrida que discute o método
filosófico do autor de Gramatologia, primeiro, pelo processo de
diálogo e em seguida, por meio de uma negociação lingüística de
"escritura" que envolve a pluralização de seus atributos em vez de sua
fixação e substanciação.
Jonhson discute este método de trabalho em relação ao discurso
filosófico tradicional e conclui:
"Sua formulação da teoria da escritura, por exemplo, não se conforma
aos cânones do que poderia ser caracterizado como discurso filosófico
tradicional. De fato, não se encontra em parte alguma, ali, uma
definição sistemática de escritura no sentido geral da palavra.
Derrida não constrói sua teoria da escrita axiomaticamente, de baixo
para cima, mas antes de cima para baixo: primeiro, pelo processo de
diálogo notado acima, desmantelando e deslocando as infra-estruturas
conceituais da metafísica tradicional; em seguida, por meio de uma
negociação lingüística de "escritura" que envolve a pluralização de
seus atributos em vez de sua fixação e substanciação. Chega-se assim a
um complexo de termos associados que constituem não tanto uma
descrição de "escritura" mas uma aproximação de sua essência
problemática: inscrição-violência-traço(écart)-arquiescritura-grammè-
diferença (différance)." (Johnson; 2001:48)
Ainda, segundo Jonhson, "esta estratégia de dispersão lingüística
poderia ser tida como a característica central da desconstrução, que
tenta circundar, se não transcender, o discurso essencializador da
metafísica tradicional." (Johnson; 2001:48).
Jacques Derrida, conforme se observou, examina as bases da cultura
ocidental, propondo a desconstrução de toda as significações contidas
na significação de logos, entendido como núcleo estável, tais como
razão, signo, discurso, palavra de Deus, e Verdade.
A comunicação, por exemplo, um dos elementos mais discutidos em termos
de globalização na cultura ocidental, é analisada criticamente, quando
Derrida propõe a relação comunicação/ contexto, conforme se observou
desde o início deste ensaio.
Um elemento porém permanece estável na discussão de Jacques Derrida,
ou seja, a referência à cultura ocidental em relação a outras formas
culturais, base de sua crítica desconstrutivista. O lugar do contexto
se identifica com o lugar do logos, e este com a violência da palavra
entendida como lei.
A desconstrução critica, basicamente, a relação cultura/realidade que
tipifica a visão de mundo ocidental, e a organiza em termos de uma
estabilidade inexistente, tanto na comunicação/divulgação científica,
como no próprio relacionamento homem/mundo.
Bibliografia
Arrojo, Rosemary (org.). O Signo Desconstruído. Campinas, Pontes
Editores, 1992.
Derrida, Jacques. Gramatologia. São Paulo, Perspectiva, 1973.
Derrida, Jacques. Margens da Filosofia. Campinas, Papirus, 1991.
Dictionnaire des Philosophes. Paris, Albin Michel. 1998.
Foucault, M. L'Ordre du Discours. Paris, Éditions Gallimard, 1971.
Johnson, Christopher. Derrida: a cena da escritura. São Paulo, UNESP,
2001.
Saussure, F. de. Curso de Lingüística Geral. São Paulo, Cultrix, 1972.
Piepmeier, R. "Finis hominis? Filosofias pós-modernas e a questão da
ciência e da técnica". Munique, Milhelm Fink, 1991, pp.132-140
(tradução apostilada - Ciro Marcondes)
*Glória Kreinz é jornalista , doutora em ciências da comunicação,
autora, com Crodowaldo Pavan, do livro "José Reis, jornalista,
cientista, divulgador científico". E-mail:
gkr...@hotmail.com
Fonte:
http://www.eca.usp.br/nucleos/njr/espiral/tecno9.htm