A LEITURA COMO FUNÇÃO TERAPÊUTICA: BIBLIOTERAPIA
Clarice Fortkamp Caldin
A biblioterapia clássica admite a possibilidade de terapia por meio da
leitura de textos literários. Contempla a leitura de histórias e os
comentários adicionais a ela. Propõe práticas de leitura que
proporcionem a interpretação do texto. O fundamento filosófico
essencial da biblioterapia é a "identidade dinâmica". O processo de
identificação do leitor/ouvinte vale-se da introjeção e da projeção.
Parte-se do pressuposto que toda experiência poética é catártica e que
a liberação da emoção produz uma reação de alívio da tensão e purifica
a psique, com valor terapêutico.
http://www.encontros-bibli.ufsc.br/Edicao_12/caldin.html
1 INTRODUÇÃO
A função terapêutica da leitura admite a possibilidade de a literatura
proporcionar a pacificação das emoções. Remontando a Aristóteles,
observa-se que o filósofo analisa a liberação da emoção resultante da
tragédia - a catarse. O ato de excitamento das emoções de piedade e
medo proporcionaria alívio prazeroso. A leitura do texto literário,
portanto, opera no leitor e no ouvinte o efeito de placidez, e a
literatura possui a virtude de ser sedativa e curativa.
A relação entre psique humana e literatura não é nova. Foi,
inicialmente, alicerçada pelas emblemáticas observações psicanalíticas
de Freud sobre a escrita como arte poética desde os gregos até alguns
de seus representantes modernos como Shakespeare e Dostoiewski.
Posteriormente, recebeu uma análise de Jung, que viu em Goethe,
Spitteler, Nietzche, Blake e Dante personalidades criativas e
transformadoras do mundo. Enfatizada, também, pela linhagem marxista
com Vygostky na psicologia infantil ou com a atividade de Sartre entre
a literatura e a filosofia existencial, essa relação foi se
confirmando em todo o século XX.
Ao considerar as teorias psicanalíticas do efeito literário, Wolfgang
Iser, expoente da Escola de Constança que organiza os princípios da
Estética da Recepção, discutiu criticamente os estudos de Norman
Holland e Simon Lesser sobre as reações dos leitores. Verificou que,
para ambos, a literatura tem um caráter compensatório. Muito embora
Iser nutrisse algumas restrições às análises efetuadas por eles a
respeito do significado dos textos literários, concluiu que "a idéia
de que os textos literários mudam, em um sentido terapêutico, o estado
psíquico do leitor que pode assim descobrir o verdadeiro significado
já é algo tanto trivial" (ISER, 1999, v. 1, p. 85).
Assim, pode-se dizer que existe uma terapia por meio de livros. Tal
terapia recebe o nome específico de biblioterapia, originada de dois
termos gregos biblion - livro, e therapeia - tratamento.
O presente artigo tem por finalidade fornecer um referencial teórico
da biblioterapia aos estudantes de biblioteconomia e bibliotecários
que nutram o desejo de trabalhar com a função terapêutica da leitura.
Para tanto, apresenta-se de forma didática, contemplando os conceitos
e objetivos da biblioterapia, seu fundamento filosófico, o método
biblioterapêutico, os componentes biblioterapêuticos e as aplicações
da biblioterapia.
2 CONCEITOS E OBJETIVOS DA BIBLIOTERAPIA
Alice Bryan (apud SHRODES, 1949), define biblioterapia como a
prescrição de materiais de leitura que auxiliem a desenvolver
maturidade e nutram e mantenham a saúde mental. Inclui na
biblioterapia; romances, poesias, peças, filosofia, ética, religião,
arte, história e livros científicos. Apresenta como objetivos:
permitir ao leitor verificar que há mais de uma solução para seu
problema; auxiliar o leitor a verificar suas emoções em paralelo às
emoções dos outros; ajudar o leitor a pensar na experiência vicária em
termos humanos e não materiais; proporcionar informações necessárias
para a solução dos problemas, e, encorajar o leitor a encarar sua
situação de forma realista de forma a conduzir à ação. Sua teoria é de
que os indivíduos são personalidades integradas e, portanto, a criança
deve ser vista como um todo e educada emocional e intelectualmente. Vê
a literatura ficcional como um meio de afetar o ajustamento total do
indivíduo. Recomenda a cooperação entre bibliotecários e psicólogos,
pois entende a biblioterapia como um dos serviços da biblioteca.
L.H. Tweffort (apud SHRODES, 1949), conceitua biblioterapia como sendo
um método subsidiário da psicoterapia; um auxílio no tratamento que,
através da leitura, busca a aquisição de um conhecimento melhor de si
mesmo e das reações dos outros, resultando em um melhor ajustamento à
vida. Lista como objetivos da biblioterapia: introspecção para o
crescimento emocional; melhor entendimento das emoções; verbalizar e
exteriorizar os problemas; ver objetivamente os problemas, afastar a
sensação de isolamento; verificar falhas alheias semelhantes às suas;
aferir valores; realizar movimentos criativos e estimular novos
interesses. Recomenda livros de higiene mental e classifica-os de
acordo com as fases da vida: infância, adolescência e idade adulta.
Para Kenneth Appel (apud SHRODES, 1949), biblioterapia é o uso de
livros, artigos e panfletos como coadjuvantes no tratamento
psiquiátrico. Elenca como objetivos: adquirir informação sobre a
psicologia e a fisiologia do comportamento humano; capacitar o
indivíduo a se conhecer melhor; criar interesse em algo exterior ao
indivíduo; proporcionar a familiarização com a realidade externa;
provocar a liberação dos processos inconscientes; oferecer a
oportunidade de identificação e compensação; clarificar as
dificuldades individuais; realizar as experiências do outro para obter
a cura e auxiliar o indivíduo a viver mais efetivamente. Appel
observa, como critérios para a seleção de livros, as necessidades
terapêuticas e educacionais do paciente.
Segundo Louis Gottschalk (apud SHRODES, 1949), constituem objetivos da
biblioterapia: auxiliar o paciente a entender melhor suas reações
psicológicas e físicas de frustração e conflito; ajudar o paciente a
conversar sobre seus problemas; favorecer a diminuição do conflito
pelo aumento da auto-estima ao perceber que seu problema já foi vivido
por outros; prestar auxílio ao paciente na análise do seu
comportamento; proporcionar experiência ao leitor sem que o mesmo
passe pelos perigos reais; reforçar padrões culturais e sociais
aceitáveis, e, estimular a imaginação.
Louise Rosenblatt (apud SHRODES, 1949) analisa a literatura ficcional
como ajuda para o ajustamento social e pessoal. Sua teoria é de que a
literatura imaginativa é útil para ajustar o indivíduo tanto em
relação aos seus conflitos íntimos como em conflitos com outros. Para
a Autora, pensamento e sentimento estão interligados. Por isso,
acredita que o processo de pensamento reflexivo estimulado pela
leitura seja um prelúdio para a ação. Apresenta os perigos da leitura
de escape, que age como uma droga, aumentando o desejo de fugir da
realidade, pois uma falsa imagem da vida é encontrada nesse tipo de
literatura. Divide os objetivos em de cura e de prevenção. Rosenblatt
considera objetivos de cura: aumentar a sensibilidade social; ajudar o
indivíduo a se libertar dos medos e das obsessões de culpa:
proporcionar a sublimação por meio da catarse, e, levar o ser humano a
um entendimento de suas reações emocionais. Como objetivos de
prevenção, aponta: prevenir o crescimento de tendências neuróticas e,
conduzir a uma melhor administração dos conflitos.
Caroline Shrodes, desde 1943 já desenvolvia estudos sobre a aplicação
da literatura com fins terapêuticos. Em 1949, defendeu tese obtendo
título de Doutora em Filosofia e Educação na Universidade de Berkeley,
na Califórnia, com o trabalho Bibliotheray: a theoretical and clinica-
experimental study. Baseando sua tese nos autores acima citados,
formulou o conceito de biblioterapia como sendo um processo dinâmico
de interação entre a personalidade do leitor e a literatura
imaginativa, que pode atrair as emoções do leitor e liberá-las para o
uso consciente e produtivo. Para a Autora, a literatura ficcional é a
mais indicada para garantir uma experiência emocional do leitor,
efetivando a terapia de introspecção capaz de efetuar mudanças.
Explorou a teoria da catarse de Aristóteles e utilizou a teoria
psicanalítica de Freud dos determinantes inconscientes do
comportamento para estudar a reação dos leitores à literatura
ficcional. Viu a arte como um meio de proporcionar um tipo de
reconciliação entre o princípio do prazer e o princípio da realidade,
em que o leitor se deixa seduzir e deriva prazer, mesmo de forma
inconsciente - chamado por Freud de "princípio do prazer". Defendeu,
na tese, que o processo de identificação do leitor à obra de arte vale-
se da introjeção - em que certos objetos são absorvidos pelo ego, e da
projeção - quando a dor dentro do ego é empurrada para o exterior. Sua
tese configura-se como o trabalho pioneiro experimental da
biblioterapia, sendo aceita como autoridade até os dias de hoje.
A Associação das Bibliotecas de Instituições e Hospitais dos Estados
Unidos (MOOD; LIMPER, 1973), adotou como definições de biblioterapia:
a utilização de materiais de leitura selecionados como coadjuvante
terapêutico na medicina e na psiquiatria ; a orientação na solução de
problemas pessoais por meio da leitura dirigida; o tratamento do mal
ajustado para promover sua recuperação à sociedade.
Para Orsini (1982), a biblioterapia é uma técnica que pode ser
utilizada para fins de diagnóstico, tratamento e prevenção de
moléstias e de problemas pessoais. Classificou os objetivos como sendo
de nível intelectual, nível social, nível emocional e nível
comportamental. Assim, a biblioterapia auxilia o auto-conhecimento
pela reflexão, reforça padrões sociais desejáveis, proporciona
desenvolvimento emocional pelas experiências vicárias e auxilia na
mudança de comportamento.
De acordo com Mattews; Lonsdale (1992), a biblioterapia constitui-se
em uma terapia de leitura imaginativa, que compreende a identificação
com uma personagem, a projeção (o leitor discerne a ligação da
personagem com o seu caso), a introspecção (o leitor entende e educa
suas emoções), e a catarse (a resposta emocional). Seus estudos
basearam-se na tese de doutorado de Caroline Shrodes, que continua
sendo o referencial teórico básico das pesquisas sobre biblioterapia.
Distinguiram, entretanto, três tipos a terapia de leitura: a de
crescimento (cujo objetivo é divertir e educar), a factual (cujo
objetivo é informar e preparar o paciente para o tratamento
hospitalar) e a imaginativa (cujo objetivo é explorar os sentimentos e
tratar os problemas emocionais).
Caldin (2001), baseando seus estudos na tese de Caroline Shrodes,
definiu biblioterapia como leitura dirigida e discussão em grupo, que
favorece a interação entre as pessoas, levando-as a expressarem seus
sentimentos: os receios, as angústias e os anseios. Dessa forma, o
homem não está mais solitário para resolver seus problemas; ele os
partilha com seus semelhantes, em uma troca de experiências e valores.
Direcionando a biblioterapia para a infância, apresentou como
objetivos básicos da função terapêutica da leitura, o proporcionar uma
forma de as crianças comunicarem-se, de perderem a timidez, de exporem
seus problemas emocionais e quiçá físicos. Entendeu a biblioterapia
como catarse, que vale-se da identificação (pela projeção e pela
introjeção), da introspecção e do humor. Verificou, na recepção do
texto literário para a infância, a validade de tal texto oferecer
moderação das emoções às crianças.
3 FUNDAMENTO FILOSÓFICO DA BIBLIOTERAPIA
De acordo com Marc-Alain Ouaknin (1996, p. 97), a tese central da
biblioterapia é que o ser humano, como criação contínua e em movimento
constante, "encontra suas forças no processo narrativo-interpretativo
da atividade da leitura".
A leitura implica uma interpretação - que é em si mesma uma terapia,
posto que evoca a idéia de liberdade - pois permite a atribuição de
vários sentidos ao texto. O leitor rejeita o que lhe desgosta e
valoriza o que lhe apraz, dando vida e movimento às palavras, numa
contestação ao caminho já traçado e numa busca de novos caminhos. A
biblioterapia contempla não apenas a leitura, mas também o comentário
que lhe é adicional. Assim, as palavras se seguem umas às outras -
texto escrito e oralidade, o dito e o desdito, a afirmação e a
negação, o fazer e o desfazer, o ler e o falar - em uma imbricação que
conduz à reflexão, ao encontro das múltiplas verdades, em que o curar
se configura como o abrir-se a uma outra dimensão.
Para Ouaknin (1996, p. 198), "a biblioterapia é primariamente uma
filosofia existencial e uma filosofia do livro", que sublinha que o
homem é um "ser dotado de uma relação com o livro". Dessa forma, essa
relação com o livro - a leitura - permite ao homem compreender o texto
e se compreender. O leitor, ao interpretar, passa a fazer parte do
texto interpretado. A interpretação é a junção da explicação objetiva
do texto e da sua compreensão subjetiva. A interpretação descobre um
outro mundo, o mundo do texto, com "as variações imaginativas que a
literatura opera sobre o real" (OUAKNIN, 1996, p. 200). A
biblioterapia, portanto, propõe práticas de leitura que proporcionem a
interpretação dos textos.
O fundamento filosófico essencial da biblioterapia é "a identidade em
movimento" ou a 'identidade dinâmica". Segundo Ouaknin (1996, p. 98,
99), "para a biblioterapia, a identidade é um não lugar", pois o "ser
humano é um 'ser de caminho, um homem em marcha". Assim, ao lado da
identidade estável, as marcas distintivas do homem - caráter, nome,
profissão, posição social - existe a identidade construída pelas
identificações adquiridas nos modelos, heróis ou valores nos quais a
pessoa se reconhece, que poderia ser chamada de identidade dinâmica.
As histórias, contadas ou lidas, propõem ao ouvinte ou leitor a
possibilidade de "mudança de direção da trajetória inicial de sua
história" (OUAKNIN, 1996, p. 106). Dessa forma, as personagens,
situações ou intrigas que aparecem nas histórias ficcionais permitem
ao ouvinte ou leitor identificações literárias construídas a partir da
identidade narrativa que circula entre o texto e a ação.
4 O MÉTODO BIBLIOTERAPÊUTICO
O método biblioterapêutico consiste em uma dinamização e ativação
existencial por meio da dinamização e ativação da linguagem. As
palavras não são neutras. A linguagem metafórica conduz o homem para
além de si mesmo; ele se torna outro, livre no pensamento e na ação.
A linguagem em movimento, o diálogo, é o fundamento da biblioterapia.
O plurarismo interpretativo dos comentários aos textos deixa claro que
cada um pode manifestar sua verdade e ter sua visão do mundo. Entre os
parceiros do diálogo há o texto, que funciona como objeto
intermediário. No diálogo biblioterapêutico é o texto que abre espaço
para os comentários e interpretações que propõem uma escolha de
pensamento e de comportamento. Assim, as diversas interpretações
permitem a existência da alteridade e a criação de novos sentidos. A
biblioterapia não se confunde com a psicoterapia, posto que esta
última é o encontro entre paciente e terapeuta e a primeira se
configura como o encontro entre ouvinte e leitor em que o texto
desempenha o papel de terapeuta. Além da leitura, os comentários, os
gestos, os sorrisos, os encontros são também terapêuticos à medida que
fornecessem a garantia de que não estamos sozinhos. O texto une o
grupo.
5 COMPONENTES BIBLIOTERAPÊUTICOS
5.1 A catarse
Ao enfocar a leitura como função terapêutica, defende-se a idéia de
terapia por meio de textos literários. Muito embora a palavra terapia,
em termos restritivos, possua um sentido curativo, na realidade
envolve muito mais do que a cura - implica em uma atitude preventiva.
Assim é que o sentido primário da palavra terapeuta é aquele que
cuida, consistindo os primeiros terapeutas em médicos e filósofos -os
que cuidam do corpo e do espírito.
É certo que as palavras são o instrumento essencial do tratamento do
espírito. Convencem, emocionam, influenciam - e pode-se inferir aqui o
sentido da catarse aristotélica.
Generalizando o efeito catártico, é possível substituir o teatro pelos
textos literários, visto que os mesmos também provocam emoções e
paixões. Cumpre lembrar que Aristóteles concebeu o espetáculo trágico
como capaz de transformar o medo e a piedade em prazer estético e isto
porque tais emoções são despertadas por uma representação artística,
já tendo perdido, assim, sua força nociva (ARISTÓTELES, 1966).
Processa-se da mesma forma a catarse por meio dos textos literários -
uma "alegria serena" de que fala Aristóteles (1996) - advém da leitura
de narrativas que transformam em fruição a piedade e o temor. Partindo
do pressuposto que toda experiência poética é catártica, vale lembrar
que o filósofo tomou de empréstimo o vocábulo médico que indica
purificação do corpo de elementos nocivos e utilizou-o no sentido de
purificação psicológica e intelectual. Ao assim fazer, estendeu o
alcance do termo para incorporá-lo também ao fenômeno estético. Dessa
forma, catarse pode ser entendida como pacificação, serenidade e
alívio das emoções. É nessa perspectiva que se enfoca a leitura de
textos literários como desempenhando uma função catártica. Não está,
portanto, em desacordo com a moderna concepção de catarse, em que o
termo é utilizado com referência à função libertadora da arte.
5.2 O humor
Textos que privilegiem o humor constituem um exemplo de possibilidade
terapêutica por meio da leitura. Ao buscar em Freud apoio teórico para
a compreensão do humor, observa-se que o humor se configura como um
triunfo do narcisismo, posto quer o ego se recusa a sofrer. O humor é,
pois, a rebelião do ego contra as circunstâncias adversas,
transformando o que poderia ser objeto de dor em objeto de prazer. É a
ação do superego agindo sobre o ego a fim de protegê-lo contra a dor.
(FREUD, 1969).
5.3 A identificação
A identificação - fator importante na teoria freudiana do
desenvolvimento da personalidade - começa cedo na nossa vida. As
crianças se identificam com os pais, com pessoas que admiram e com os
animais. Segundo o Vocabulário de Psicanálise (LAPLANCHE; PONTALIS,
1994, p. 226), a identificação é "um processo psicológico pelo qual um
sujeito assimila um aspecto, uma propriedade, um atributo do outro e
se transforma, total ou parcialmente, segundo o modelo desse outro".
5.4 A introjeção
A introjeção constitui-se em um processo evidenciado pela investigação
analítica: "o sujeito faz passar, de um modo fantasístico, de 'fora'
para dentro', objetos e qualidades inerentes a esses
objetos" (LAPLANCHE; PONTALIS, 1994, p. 248). Está estreitamente
relacionada com a identificação.
5.5 A projeção
A projeção é a transferência aos outros de nossas idéias, sentimentos,
intenções, expectativas e desejos. Segundo Laplanche; Pontalis (1994,
p. 374), a projeção é, "no sentido propriamente dito, operação pela
qual o sujeito expulsa de si e localiza no outro - pessoa ou coisa -
qualidades, sentimentos, desejos e mesmo 'objetos' que lê, desconhece,
ou recusa nele.
5.6 A introspecção
A introspeção, segundo Michaelis (1998, p. 699), é a "descrição da
experiência pessoal em termos de elementos e atitudes" a "observação,
por uma determinada pessoa, de seus próprios processos mentais". Dessa
forma, a leitura, ao favorecer a introspecção, leva o indivíduo a
refletir sobre os seus sentimentos - o que é terapêutico, pois sempre
desponta a possibilidade de mudança comportamental..
6 APLICAÇÕES DA BIBLIOTERAPIA
A biblioterapia tem sido utilizada em hospitais, prisões, asilos, e no
tratamento de problemas psicológicos em crianças, jovens, adultos,
deficientes físicos, doentes crônicos e viciados.
Shrodes (1949) realizou, com sua investigação, um detalhamento da
aplicação da biblioterapia, mencionando alguns autores, que serão
listados a seguir. Moore fez uma abordagem da biblioterapia como
tratamento de delinquentes juvenis, apresentando seus estudos nesse
campo com resultados positivos. Menninger descreveu os propósitos do
Programa de Biblioterapia na Clínica Menninger: oportunizar recreação
e interação social; encorajar o indivíduo a criar interesse externo e
assisti-lo na obtenção de contato com a realidade externa; propiciar a
introspecção dos problemas e conduzir a uma gratificação narcisística
com o fortalecimento do ego. Como bases para a prescrição de livros
são avaliadas a necessidade terapêutica presente, a base do indivíduo
e a apresentação sintomática. Schenek, que também atuou na Clínica
Menninger, utilizou a biblioterapia como auxílio psicológico no
tratamento hipoglicêmico da esquizofrenia e no tratamento da
depressão. Trabalhando com pacientes dementes, Quint usou a leitura
nos seus momentos de lucidez, como método de trazê-los de volta à
realidade. A utilização da biblioterapia nas escolas é defendida por
Kircher, que acredita no alívio psicológico através do vivenciar as
emoções do herói como um meio de liberar as emoções do leitor, mesmo
que a leitura não produza uma reação imediata e sim, atrasada.
Auerbach indicou a leitura como higiene mental e sua teoria é que a
biblioterapia não funciona com indivíduos severamente neuróticos ou
perturbados emocionalmente.
Caroline Shrodes (1949), como metodologia para o estudo clínico-
experimental da biblioterapia, utilizou o estudo de casos individuais,
sob uma base holística de psicologia dinâmica. A seleção incidiu sobre
um grupo de cinqüenta estudantes inscritos em um Curso de Comunicação
Básica. Escolheu cinco estudantes como amostra da pesquisa, um dos
quais recebeu atenção especial, pelas suas reações-respostas à
biblioterapia. Seu estudo explorou a teoria e a prática da
biblioterapia em jovens e adultos saudáveis.
Mildred T. Mood, presidenta do Comitê sobre Biblioteapia e Hilda K.
Limper, presidenta do Sub-Comitê sobre a Criança em Dificuldade,
motivadas pelo workshop interdisciplinar sobre biblioterapia realizado
em 1964 em Saint-Louis, publicaram o livro Bibliotherapy: methods and
mateirals (1973), patrocinado pela Association of Hospital and
Institution Libraries. Na Parte I, o Comitê de Biblioterapia examinou
os aspectos da terapia da leitura às pessoas hospitalizadas com
problemas diversos e, na Parte II, o Sub-comitê sobre a Criança em
Dificuldade escolheu as áreas com problemas evidentes e selecionou
títulos específicos que poderiam ser úteis para os orientadores de
crianças e jovens com dificuldade de adaptação.
Maurice Barker (1979), psicólogo clínico do Hôpital Sainte-Justine em
Montréal, por meio de conferências na Université de Montréal, na
Université McGill, no Congrès de l'ASTED e de um artigo publicado na
Revista Documentation et Bibliothèques, na década de setenta, mostrou
preocupação com a leitura para jovens. No artigo Bibliothèques et
lectures pour jeunes, apresentou uma proposta para a biblioterapia de
adolescentes. Lamentou o fato de os autores não se preocuparem muito
com essa faixa etária, o que dificulta o uso do livro com finalidade
terapêutica para esse público.
Alves (1982) discutiu o papel da biblioterapia nas prisões. Considerou
necessário à reeducação do presidiário, o direito à leitura como fonte
de informação e como fator de diminuição do stress advindo da situação
de perda de liberdade. Aliou à terapia convencional - o trabalho e o
lazer - a biblioterapia, que deveria ser realizada por um
bibliotecário em parceria com o psicólogo e o assistente social do
presídio.
O estudo de Fernández Vasquez (1989), ao executar um trabalho de
biblioterapia para idosos no Lar da Previdência Carneiro da Cunha, em
João Pessoa, relatou os resultados obtidos pela leitura de textos
ficcionais em sessões de leitura em grupo e sessões de leitura
individual. Objetivou informar sobre a importância da atividade
biblioterapêutica a uma clientela específica: os idosos. Através de um
programa de leituras dirigidas, procurou despertar o gosto pela
leitura e melhorar o quadro psíquico e mental da clientela. Propôs,
adicionalmente, a implantação de um programa permanente de
biblioterapia aos residentes no asilo, pois constatou uma diminuição
dos quadros de ansiedade e depressão da população estudada, após as
sessões de leitura dirigida.
O Fundo de Pesquisa da Bibliografia Nacional Britânica patrocinou, em
1990, um projeto de pesquisa sobre a terapia da leitura com crianças
no hospital. O relatório da pesquisa, apresentado no ano seguinte,
apontou, por meio de questionários, entrevistas estruturadas e debates
com os membros da equipe em hospitais de diferentes partes da
Inglaterra e Wales, que 73% utilizavam livros, fitas, vídeos e
gravuras para fins terapêuticos em crianças, como meio de comunicação
e preparação para o tratamento e para lidar com sentimentos tais como
raiva e frustração. O relatório incluiu também dados de pesquisas
sobre o assunto, a maioria realizada nos Estados Unidos, Reino Unido e
Alemanha. Constatou-se a existência de considerável literatura sobre a
terapia de leitura em crianças autistas, com medo do escuro, situação
de morte e luto, filhos de pais divorciados e alcoólatras, além de
doentes mentais (MATTEWS; LONSDALE, 1992).
Têm-se, também na Paraíba, o estudo de Pereira (1996), que desenvolveu
um trabalho pioneiro no Brasil, com a biblioterapia para deficientes
visuais em João Pessoa. Preocupada com a preparação educacional e a
especialização profissional do deficiente visual que auxiliariam sua
integração na sociedade, propôs a implantação de um programa de
biblioterapia para portadores de deficiência visual em bibliotecas
públicas.
Seitz (2000), priorizou a biblioterapia com pacientes internados na
Clínica Médica do Hospital Universitário da Universidade Federal de
Santa Catarina. Verificou que a prática biblioterapêutica foi útil no
processo de hospitalização, como fonte de lazer e de informação, na
interação entre bibliotecário/paciente/enfermeiros e no processo de
socialização dos pacientes. Enfocou a biblioterapia como lazer e
humanização do hospital e do tratamento das doenças..
Caldin (2001) analisou o projeto Literatura infantil e Medicina
pediátrica: uma aproximação de integração humana, desenvolvido pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e cinco sub-
projetos vinculados ao projeto-matriz Por uma Política de Incentivo à
Leitura, da Universidade da Região de Joinville. Tais projetos,
desenvolvidos por formandos e coordenados por professoras do Curso de
Letras das referidas universidades, desenvolveram trabalho de terapia
por meio da leitura na ala pediátrica de hospitais de Porto Alegre e
de Joinville. Constatou que as histórias lidas às crianças amenizaram
sua situação incapacitante e proporcionaram alívio temporário das
dores e dos medos advindos da doença e do ambiente hospitalar. O
resgate do sonho, do imaginário e do lúdico forneceu um suporte
emocional às crianças enfermas. Os registros dos leitores de histórias
corroboraram a eficácia da biblioterapia em explorar a literatura
infantil como integradora no processo de cura que envolve mente e
corpo.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A biblioterapia constitui-se em uma atividade interdisciplinar,
podendo ser desenvolvida em parceria com a Biblioteconomia, a
Literatura, a Educação, a Medicina, a Psicologia e a Enfermagem. Tal
interdisciplinaridade confere-lhe um lugar de destaque no cenário dos
estudos culturais. É um lugar estratégico que permite buscar aliados
em vários campos e um exercício aberto a críticas, contribuições e
parceiras.
A terapia ocorre pelo próprio texto, sujeito a interpretações
diferentes por pessoas diferentes. Tanto é o texto que "cura", que já
foi sugerido, inclusive, o uso do termo literapia, unindo literatura e
terapia, com ênfase no literário e no ficcional. Permanece,
entretanto, o uso do termo tradicional, biblioterapia.
Vale destacar que não é a designação o mais importante na atividade de
terapia da leitura, mas, o resultado obtido.
Abstract
The classic bibliotherapy admits the possibility of therapy by means
of reading of literary texts. It contemplates the reading of stories
and commentaries about them. It considers the practical f reading that
provides text interpretation. The philosophical essential of
bibliotherapy is their "dynamic identity". The process of
identification of the reader and or listening, uses the introjection
and the projection. It estimates that all poetical experience is
cathartic and that the clearing of emotions produces a reaction of
relief of tensions, purifying the psique, with therapeutical value.
Key word: bibliotherapy; therapeutical function of reading; catharsis
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http://www.encontros-bibli.ufsc.br/Edicao_12/caldin.html