Artigo - A cidadela sociológica - A Arte da Palavra
Rolando Lazarte*
Em momentos em que o saber sobre a sociedade aparece mais
despudoradamente ao serviço da exploração e da alienação do homem, é
necessário revisar os fundamentos e a prática sociológicos. Aqui,
tentarei dar uma espiada pelas janelas da cidadela da ciência, para
ver o que se encontra mais além de seus muros. Não da ciência em
geral, mas da sociologia. E não de toda a sociologia, mas do que
chamarei de "modo sociológico predominante de ver o mundo".
O texto a seguir é um tanto indisciplinado. Por momentos a frase
termina na beira de um abismo, ou numa rua sem saída, sem conclusão
aparente. Longe de se tratar de falhas na redação ou no raciocínio,
elas refletem meu esforço por destruir na prática a imobilidade e
segurança de um estilo moribundo de fazer ciência que, alinhavando
logicamente palavras, conceitos e argumentos, pretende se apossar do
real de maneira definitiva, concludente, eliminando o paradoxo, a
contradição, o inacabamento, a inapreensibilidade completa do que nos
rodeia. É como se se pretendesse, com o rigor lógico e o autoritarismo
lingüístico, banir, exorcizando, o mistério da realidade de que
fazemos parte.
Minha tentativa é a de me adentrar num estilo de fazer sociologia que,
em nome de uma certa racionalidade científica, esmaga a multiplicidade
do homem e de sua sociabilidade, condenando ao quintal do irrelevante
--com as mais diversas argumentações-- as dimensões humanas mais
sutis, precisamente aquelas que nos constituem como algo mais que
realidade quantificável, material, logicamente apreensível. Pensar
nesse algo mais, naquilo específicamente humano, desperta em alguns
cientistas atuais a santa ira que em outras épocas os inquisidores
católicos sentiram frente às tentativas de explicar cientificamente a
vida, o homem, o mundo. Se o anátema dos antigos inquisidores era
exercido em defesa do monop'plio da verdade e da explicação segundo as
regras e os modos do saber teológico, os novos donos do saber, os
senhores da ciência, lançam suas condenações em defesa de algo que
também querem único: não já alguma verdade, uma vez que a mentalidade
sociológica dominante a descartou há tempos, por desconfiar que sob
suas vestes viessem de contrabando os velhos demônios e deuses que a
tanto custo se exorcizara.
A inquisição a que me refiro pretende, muito mais pobremente, ser o
único saber tido como legítimo no contexto mais ou menos restrito da
chamada comunidade acadêmica. A preocupação com uma verdade objetiva
foi abandonada, pela suspeita de que ela poderia ter resquícios das
velhas cosmogonias, tão temidas como abominadas, do passado pré-
científico da humanidade. A nova inquisição é inimiga do
específicamente humano, desse ser humano que corta e recorta até
transformá-lo em abstração ou, o que é mais comum, numa caricatura de
homem pomposamente recoberta de pesados conceitos provistos pelo
jargão científico. E, por incrível que possa parecer aos menos
avisados, o brado de guerra desses defensores da cidadela
cientificista frente às tentativas de recuperar a totalidade humana
no contexto da ciência é ... Irracionalismo! [3].
A razão que se tornou irracional ao amputar do estudo do humano
precisamente o que o constitui como tal - sua essência, seu ser em
sentido próprio--, essa razão que se tornou seu oposto ao desprezar o
lado não lógico, não predicável, intuitivo, da conduta e da
consciência humana, essa razão irracionalizada se defende dos que não
se resignam a uma sociologia reduzida a ciência de coisas (homens
coisificados), ameaçando com o estigma mais temido no interior das
paredes da cidadela: Irracionalismo!.
Esta acusação, capaz de acabar com muitas carreiras intelectuais,
pende como uma espada de Dâmocles sobre a cabeça dos sociólogos mais
sensíveis, menos bitolados no academicismo. Se quiseres ser um de nós
--parece querer dizer-- deverás deixar de lado todo calor humano, todo
riso, todo sentimento, todo gesto ou palavra suspeitos de
irracionalidade.
Irracional, na fala dominante, quer dizer: qualquer referência ao ser
e, ainda mais, ao Ser. Em ambos os casos, quero me referir à realidade
profunda do ser humano (e não meramente ao lado repetitivo de sua
conduta --ações e reações explícitas, observáveis--, ao lado
estruturado dessa mesma conduta --motivações, ideologias--, que é o
que com mais facilidade costuma ficar na malha grossa da sociologia
dominante), bem como da existente fora dele (a continuidade entre o
que costumamos chamar de indivíduo e isso que está fora do mesmo, e
que é postulado por algumas filosofias como a Vedanta, certas
cosmovisões como a Tolteca descrita por Carlos Castañeda em Uma
estranha realidade e, mais recentemente, por visões da nova física,
tal como nos chegam nas obras de Jean-François Sharon, Fritjof Capra e
G. Zukau).
O sociólogo que aspira a ser respeitado como cientista deverá deixar
as cores (as próprias, bem como as dos outros por ele estudados) que
não possam ser reduzidas ao cinza de uma teoria ou --na falta desta, o
que é comum entre nós-- ao menos a uma argumentação medianamente
coerente com os autores, as escolas ou as modas do momento.
O aprendiz de sociólogo tem que se habituar a inibir sua sensibilidade
para se tornar compreensível e aceitável pelos donos do saber
consagrado na academia, já habituados a separar de sue ofício essas
incômodas coisas chamadas intuições, emoções, sentimentos,
criatividade, que tanto atrapalham a rotina sem surpresas da produção
do saber, com o gostam de se referir quando falam de seu ofício.
Aliás, o abandono das formas próprias de expressão representa outro
passo imprescindível na iniciação do noviço: gestos, palavras, formas
de pensar não-convencionais e --como bem diz Feyerabend-- o humor,
deverão ser apagados do repertório expressivo do aprendiz de
feiticeiro. Adotar em lugar da fala própria o jargão especializado, o
sociologuês que C. Wright Mills chamava de soclíngua.
Entretanto, se a sociologia há de ser algo mais do que um discurso
erudito, acadêmico, tecnocrático, intelectualista, de costas para uma
realidade humana que cada vez mais parece definhar no sem sentido de
uma vida meramente animal, coisificada, alienada, então se impõe uma
parada para revisar o que estamos fazendo. Rever o sentido (os
sentidos) de uma prática científica e de um discurso que se nos
apresentam com a frieza e o distanciamento de um gesto mecânico,
automático, eletrônico, técnico (não são sinônimos, aclaramos para o
Zé Ninguém sociológico que por acaso ler isto).
A necessidade humana de ser plenamente, em todas as dimensões
materiais, psíquicas e espirituais, foi deixada de lado pela
sociologia dominante. Esta se ocupa do social coisificado, feito
estruturas, processos, organizações, em que o homem em sua
singularidade desaparece.
De uns anos para cá, provavelmente como uma reação a esta tendência, o
interesse de parte dos sociólogos voltou-se para temáticas micro e
perspectivas de abordagem menos duras (ou devo dizer quadradas?) que
as prevalecentes no main stream [4] teórico-sociológico (marxismo,
estruturalismo, funcionalismo),tais como a etnometodologia, o
interacionismo simbólico, certo marxismo pouco ortodoxo (Agnes Heller,
Erich Fromm, Alejandro Serrano Caldera, Karel Kosik) e as linhas
qualitativistas em geral.
Há, no bojo destas correntes alternativas, uma revalorização de certas
formas de conhecimento que a prepotência cientificista banira para o
lixão cognoscitivo: sobre tudo o tão combatido senso comum e a arte --
nunca de todo aceita na academia como forma de conhecimento sério. E,
dos anos 70 para cá, apareceram novas correntes como o anarquismo
cognoscitivo de Paul Feyerabend, a sociologia transcendental de Ken
Wilber, e o holismo de Fritjof Capra et alii, em que se tenta apagar
as fronteiras --tão rigidamente mantidas pelos positivismos de
distinta cor-- entre ciência e não-ciência, abrindo caminho para o des-
disciplinamento do saber.
Rolando Lazarte
rolando...@uol.com.br
Rolando Lazarte, é sociólogo, poeta y pintor
[1] Versões deste texto, em espanhol, foram publicadas na Revista
Paraguaya de Sociología, vol. 26, n. 76, 1989, (Asunción) pp. 91-108 e
Relaciones. Revista al Tema del Hombre (Montevideo), n. 68/69, pp.
10-13. Com o título "Ser e Ciência", foi publicado também pela revista
Humanidades, vol. 7, n. 2, 1991 (Brasília, UnB), pp. 134-143, e nos
Cadernos de Textos, n. 14, maio de 1990 (Mestrado em Ciências Sociais/
Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa). Agradeço os comentários
e críticas dos/as colegas do CEBRAP , e dos alunos da UFPb.
[2] Sociólogo y escritor. Doutor em ciencia (USP), Mestre em
Sociología (IUPERJ), Licenciado em Sociología (UNCuyo). Autor de "Max
Weber: Ciência e valores"(S.Paulo: Corte, 2001, 2a. ed), Colaborador
de La Insígnia
www.lainsignia.org Colaborou com Portal Popular
www.projetoadia.com.br La Nacion Line Los Andes On Line e A Arte da
Palavra.
[3] Poderia ter ensinado muito uma leitura atenta, mínimamente lúcida,
de certa nota da "Ética protestante e o espírito do capitalismo", em
que Max Weber, com a humildade típica dos grandes, ensina o que nenhum
arrotador de citações jamais poderá perceber. Por mais que leia em
alemão e consiga eternizar seu nome em qualquer programa de qualquer
coisa que diga respeito ao fantástico sábio profético que ria dos
"últimos homens", nulidades sem alma que imaginam ter alcançado
pináculos de glória. Por mais que possa engolir toneladas de citações
do último prestidigitador exportado pela França ou os Estados Unidos
para consumo da intelligentzia neocolonial latinoamericana. E que dirá
a canalha sociológica tão bem descrita por Miriam Limoeiro na sua
palestra no auditório da Reitoria da UFPb, esse ghetto medíocre que
medra à sombra da perpetuidade burocrática universitária ou ainda
"informal" -pois não há institucionalidade que garanta criatividade,
gente-. Os mandarins eternamente bolsistas do CNPq, eternamente
financiados pelas agências internacionais, eternamente repetidos nos
mesmos programas, nos mesmos eventos, com os mesmos temas de há 20
anos atrás. Graças às manobras de segregação com que preservam o
monopólio da anémica fala monocorde com que se convencem a sí
próprios, numa espécie de autohipnose, de serem as maiores excelências
da paróquia acadêmica.
[4] Devo a Sedi Hirano a acertadíssima observação a respeito da
imprescindível necessidade de uma sociologia quadrada para a
elaboração de um quadro conceitual e prático alternativo, uma
sociologia mais redonda, mais perecível, mais ancorada no instante. A
minha dívida intelectual e humana para com o Professor Hirano excede
o meramente profissional, uma vez que no longo e difícil trabalho de
orientação doutoral que transformou toda esta pirotecnia num texto
mínimamente apresentável frente à banca examinadora da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo,
intitulado "Simpatia pelo Daimon: Max Weber, ciência e
valores" (mimeo, 1993), tive a oportunidade de ratificar a
possibilidade prática de uma militância sociológica plural,
respeitadora das diferenças..
http://www.aartedapalavra.com.br/16ensaioacidadelasocilogica.htm