Recebendo salário para ser mal-educado

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Hannah BLUE

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Nov 7, 2007, 8:24:06 AM11/7/07
to Midiateca da HannaH
Toques digitais
Recebendo salário para ser mal-educado
06/11/2007 16h03

Uma das palavras mais antipáticas da língua portuguesa é "crítico".
Raramente me identifico a alguém como "crítico de música". Em inglês
eles têm um eufemismo mais agradável, e condizente, com o que fazemos:
"music writer". Mas não é o termo, e sim a função, o que irrita a
terceiros, principalmente músicos e fãs. Recentemente, depois de um
comentário, meio ácido, admito, a Jorge Vercilo, uma admiradora do
cantor, me mandou um i-mêiu, indignadíssima. Entre outros ataques,
afirmou que eu devo ter "alguma frustração por não ter tido um caso
com Vercilo". Quase que respondo, dizendo que, mesmo se eu fosse
chegado a homem, Jorge Vercilo jamais faria meu tipo. Mas tergiverso.

Certa noite, há uns cinco anos, na casa de Gil Vicente, o pintor,
estava por lá o baterista Will Calhoun, do Living Colour. Fomos
apresentados, e alguém, não lembro mais quem, disse a Calhoun que eu
era crítico de música. Ele me olhou e falou, com aquele inglês de
cinema, dos que têm sotaque de Manhattan: "Em Nova Iorque, olha o que
fazemos com críticos!". Falou isto com a mão imitando uma pistola.
Dedos indicador e médio, um cano do 38 apontado para o que vos tecla
(pela raiva da crítica, Calhoun deveria estar pensando num 45). Mas
foi até legal com o "crítico", porque conversamos um bocado, e ele
acabou me presenteando com dois discos.

É natural que não se goste de críticos. Que recebamos i-mêius
desaforados, quando baixamos a ripa (modo de dizer, porque procuro ser
o mais diplomático, e menos pessoal, possível nos meus comentários).
Parecida com a reação dos fãs de Jorge Vercilo, foi a de de metaleiros
(perdão, headbangers), quando malhei uma performance de Edu Falaschi,
num DVD, com a Angra. Enviaram-me dezenas de i-mêius. Só não me
chamaram de arroz doce. O próprio Falaschi me mandou um i-mêiu.
Reconhecia que meus comentários tinham a ver, mas que eu tinha batido
muito forte. Não sabe ele, como bateram forte de volta, seus fãs.

Numa sociedade onde a regra é não falar mal do próximo. Na realidade,
fala-se mal, mas sempre na surdina, baixinho, raramente diante da
pessoa criticada. Pois bem, em tal sociedade, em que o elogio faz
parte da boa educação (li outro dia, um ótimo ensaio sobre o assunto
no New York Times), o crítico é o "mal-educado". Aquele, ou aquela,
que aponta os defeitos de terceiros, e publicamente. No nosso caso,
que escrevemos sobre música em geral (no meu, pouco sobre a erudita,
pelo fato de preferir a música popular), é complicado. Somos uma
espécie de clínico geral, escrevendo para especialistas em setores
específicos da anatomia sonora.

A partir de meados dos anos 80, a música popular, sobretudo o pop/rock
fragmentou-se em mil estilhaços. O heavy metal, por exemplo. Nos anos
70, devia ser teta escrever sobre HM. Contavam-se nos dedos os grupos
do gênero. E metal era metal e priu! Mas aí o HM foi dividindo-se em
dezenas de subgêneros, o thrash, o speed, o grind, o death, und so
weiter (um pouco de pedantismo de vez em quando pega bem. Ou não?).
Pode-se escrever um livro, dos grossos, somente sobre alguns destes
subgêneros do metal. Ou até mesmo a respeito de determinados
gravadoras que só lançam, vamos dizer, death metal. Assim quando se
escreve sobre algum disco desta turma precisa-se ter o maior cuidado.
O curtidor do negócio é daqueles especialistas que sabem tudo sobre o
quase nada, conhece os mínimos detalhes, declina de cor, a formação
original da bandinha (perdão, pelo diminutivo) quase desconhecida,
fundada num cidadezinha nos cafundós da Dinamarca (perdão, a Dinamarca
é tão rica, que não deve ter cafundós por lá).

Depois tem a parada das gravadoras. Com as facilidades do CD, a
disseminação de estúdios bons e, relativamente, baratos, deve haver
tantos selos quanto estrelas na via-láctea. Isto faz com que se tenha
tornado impossível se escutar tudo que nos é enviado. Chega coisa boa,
e muita coisa terrível. E complicando mais ainda, é que crítico bom é
o que faz críticas favoráveis ao livro, filme, disco etc. Autocrítica
é um dom raríssimo. Mal comparando, artista é feito motorista. Todos
se acham ótimos, e sobem pelas paredes se lhe apontam defeitos, mesmo
que estes defeitos estejam mais que óbvios. Enfim, pense numa
tarefinha árdua. Este texto me foi inspirado, quando me preparava para
ouvir uma pilha de discos, alguns legais, outros certamente horríveis,
porém de audição, pra mim, obrigatória, já que nunca indiquei, ou
deixei de indicar um disco que não ouvi.

Falando em ouvir, possíveis leitores virtuais, desculpem, mas tenho
que ir embora, existem mil CDs precisando ser escutados. Como diria
Roberto Carlos, em O calhambeque: Bye, bye!


http://jc.uol.com.br/tvjornal/2007/11/06/not_138784.php

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