Contra o conto da INCLUSÃO
Ralf Rickli
1. Deus, o Diabo e o parece-mas-não-é 1
2. Existe exclusão? (atravessando um questionamento que não é o nosso)
2
3. O que eu faço quando incluo 4
4. A verdadeira negação do excluir 4
5. Um olhar sobre algumas expressões relacionadas 4
Educação Inclusiva 4
Exclusividade 5
Igreja, discriminação, convívio 5
6. Rápido diálogo sobre O QUE FAZER 5
7. PS: "Volte para o seu lar!" (Arnaldo Antunes) 5
Referências bibliográficas 5
1. Deus, o Diabo e o parece-mas-não-é
É uma imagem que vem nos servindo há anos e em situações as mais
diversas: sempre que Deus apresenta uma boa idéia que poderia ajudar a
espécie humana a existir com menos dor, no ato aparece o Diabo com
sugestões de uso fora das intenções originais, ou então com uma
contrafação: uma imitação que parece ser a mesma coisa em uma versão
ainda um pouco mais brilhante, mas cujos efeitos são outros - e a
proposta acaba sendo implementada em uma forma que, em lugar de
diminuir, termina renovando a já não pequena coleção de dores da
humanidade.
De distorção do uso, dificilmente haverá exemplo mais óbvio que o
dinheiro: uma forma brilhantemente simples de quem planta alfaces
compensar o tempo de trabalho de quem lhe faz enxadas mas não gosta de
alface: "vale tanto de trabalho humano". Mais que depressa, começam a
aparecer as mais inventivas e aparentemente justas explicações de por
quê o meu tempo de trabalho vale duas, dez, cem, um bilhão de vezes o
seu... além de todas as fantásticas possibilidades que se abrem se eu
acumular vastas quantidades desses "vales" na minha mão.
Para um exemplo do "parece mais não é", podemos imaginar que Deus
tenha dito aos primeiros humanos: "se vocês se juntarem em círculos e
harmonizarem seus planos de modo que o círculo possa agir como se
fosse uma pessoa só, vai ser bem mais fácil superar as suas
dificuldades." E aí entra o Diabo: "Isso! E se um grupo de 12, de 30,
de 60 já pode tanto, já imaginaram então uma massa de milhões pensando
como uma pessoa só? Aliás, alguém aqui se oferece para liderar?"
Para entrar no nosso assunto com a mesma imagem, às vezes imaginamos
que Deus tenha dito aos humanos do fim do século XX: "Mas o que é que
vocês andam fazendo? Excluir a maior parte das irmãs e irmãos humanos
do desfrute das conquistas da humanidade, não percebem que isso é um
pecado?" E o Diabo: "Isso! Vocês não têm que excluir os outros, vocês
têm que incluir."
2. Existe exclusão? (atravessando um questionamento que não é o nosso)
Muitos já vêm questionando a propriedade de falar de inclusão e de
exclusão de pessoas, sobretudo entre os que pensam predominantemente
em bases marxistas: não haveria excluídos. O capitalismo burguês, para
funcionar, depende de que haja pessoas exploradas e inclusive
desempregadas (o famoso "exército de reserva de mão-de-obra"); então,
longe de estarem excluídos, os oprimidos estariam incluidíssimos no
sistema total; não há nada fora, está tudo dentro.
Temos que admitir que esse discurso é verdadeiro - mas ao mesmo tempo
não nega a realidade de "inclusão" e de "exclusão" em outros
discursos; somente um pensar apressado, insuficientemente sistemático,
verá contradição aí.
"Excluir" e "incluir" algo significam literalmente "trancar algo para
o lado de fora" e "trancar algo para o lado de dentro", onde se impõe
imediatamente a pergunta "para o lado de fora ou para o lado de dentro
de quê?" Recorrendo à limitada mas ainda útil linguagem dos
gramáticos: inclui-se uma coisa (objeto direto) em outra, o que não é
um mero "complemento circunstancial de lugar", e sim um complemento
verbal indireto obrigatório, sem o qual esse verbo não faz sentido
nenhum.
E no entanto hoje vemos falar o tempo todo de "os excluídos" sem
definir "excluídos de quê", ou da importância da inclusão, sem
precisar "inclusão no quê"... Como é possível?
Ora, se houvermos reconhecido que o verbo não faz sentido sem essa
definição, quase salta aos olhos que se pode estar querendo auferir
benefícios da indefinição: havendo necessidade, o elemento deixado
indefinido no discurso geral pode ser definido de um modo diferente em
cada situação particular, conforme a conveniência. Sem falar de que
você pode ter sido levado a trabalhar para uma coisa pensando que é
outra...
Parece-nos estar em presença do que Marilena CHAUÍ (1980) chama de
"discurso lacunar", como uma das estratégias da ideologia, entendida
essa como discurso de dissimulação do real. E neste momento um
marxista simplista poderia intervir: "Eu não disse? Na verdade nem é
preciso definir esse objeto indireto: não há outra coisa, hoje, de que
alguém pudesse ser excluído ou incluído, senão o sistema capitalista"
- no que estaria subentendido "pois todo e qualquer dado da realidade
humana não passa de manifestação derivada e dependente (epifenômeno)
de uma realidade única, o modo-de-produção".
E aqui já não estaríamos de acordo... Antes de mais nada pelo que já
nos atrevemos a objetar à caracterização de ideologia da própria
Marilena CHAUÍ (sem estarmos com isso chamando-a de simplista!): "a
afirmação de que toda universalização de um particular é a
universalização de um interesse de classe é ela mesma a
universalização de um particular - desnudando assim o preciso ponto em
que o discurso científico marxista (que temos fortes motivos para
respeitar) se converte em discurso ideológico marxista", pois
"consideramos a ideologia uma estratégia do impulso de dominação de
modo absolutamente geral, e não podemos deixar de ver a estruturação
da sociedade em classes como apenas uma das formas de realização desse
impulso - uma forma de gigantesca importância histórica, sociológica e
econômica, porém de nenhum modo a única". (RICKLI 2005, cap. 0.4)
Independente disso, nem a mais simplista das simplificações feitas do
pensamento de Marx ousaria negar que o seu Todo Socioeconômico seja
internamente diferenciado, com mobilidade das partes e com inter-
relações tópicas (ou localizadas) entre essas - ou voltaríamos aos
paradoxos dos eleatas: "não há movimento, porque o ser só poderia se
mover no ser, mas o ser se confunde com o ser"... Mas sejamos simples
- a observação dos casos concretos de qualquer princípio costuma
purgar os desvarios de que o pensar abstrato é capaz: o fato de a
matéria do meu corpo não poder ser excluída da Terra não significa que
não possa ser excluída desta ou daquela casa, cidade ou país.
Voltando ao socioeconômico, recordemos o pedreiro da canção de Zé
Geraldo, o qual trabalhou na construção de um edifício e agora é
impedido não só de entrar mas até mesmo de admirá-lo. É verdade que
nem haveria quem pudesse pagar para morar naquele edifício se não
houvesse ao mesmo tempo massas forçadas a viver em condições
precárias, não importa se na mesma cidade ou em outro continente - de
modo que de fato existe uma relação de pertença mútua entre os
barracos da favela a os edifícios de luxo.
Mas se olharmos agora não para o conjunto, mas para aquele pedreiro
(ou, melhor ainda, da posição daquele pedreiro), poderemos negar que
ele esteja sendo excluído do acesso a certos setores da realidade?
Ora, a própria placa de vendas do edifício diz "exclusivo", que
significa precisamente "excludente", "exclusor".
É verdade que, na situação da canção, ele não está sendo excluído de
um setor aleatório da realidade, e sim do desfrute de bens que ele
ajudou a produzir - mas é importante notar que esse é um segundo
nível, uma segunda questão. A primeira é se alguma pessoa tem o
direito de excluir outra de qualquer lugar ou situação.
Para nosso último passo, reafirmamos nossa liberdade de descrer do
dogma de que não haja na realidade humana nenhuma dimensão
significativa além da socioeconômica, ou de que os fatos culturais
sejam, sem exceção, apenas epifenômenos do modo-de-produção.
E tomaremos como exemplo uma situação que na sociedade atual vem
conseguindo bastante visibilidade porém uma aceitação ainda bastante
relativa, embora haja indicações de que tenha existido em todas as
sociedades e em todos os tempos: um casal de pessoas do mesmo sexo. O
fato de ser constituído por um vínculo de desejo homo-orientado não
significa necessariamente que qualquer um dos componentes repudie o
modo de vida e valores de sua família de origem.
Podemos então imaginar um dos membros desse casal desejando
ansiosamente participar de uma celebração em sua família original (o
nascimento de um sobrinho, um enterro, um simples almoço de domingo -
talvez inclusive para rever pessoas que sente como importantes na
constituição de sua própria identidade), isso porém sem deixar de fora
outra parte essencial de sua vida, que é a pessoa com quem compartilha
o cotidiano atual. Numa situação assim ainda é alta a probabilidade de
esse casal se ver rechaçado quer por uma, quer pelas duas famílias de
origem - e teremos aqui uma efetiva experiência existencial de
exclusão dentro de um campo outro que o dos determinantes e
conseqüências econômicas.
(Não faltará, é claro, quem venha dizer que isso decorre das
características da família patriarcal, a qual também teria se
constituído apenas por razões econômicas... Embora vejamos nisso um
reducionismo, não vemos nenhuma necessidade de contestar ou retificar.
Mas não duvidamos que haja também quem critique o próprio casal
dizendo que seu interesse por vínculos de afeto familiares não passa
de apego a valores pequeno-burgueses ou algo assim - e aí com certeza
abandonaríamos o debate para chorar que pessoas possam ser de tal modo
absorvidas por um pensar abstrato que cheguem a perder a conexão com o
que existe de mais ancestral e essencialmente humano dentro de si).
Concluindo: há que agradecer ao pensamento marxista por nos haver
chamado a atenção para a necessidade de definir o "onde" da inclusão e
da exclusão - mas há também que aperfeiçoar a declaração de que "não
existe exclusão", talvez dizendo: de fato não existe a exclusão, no
singular, mas existem sim exclusões.
3. O que eu faço quando incluo
Admitido que haja exclusões (conforme a seção anterior), e que não
sejam boas, por que sugerimos que a idéia de incluir é um engodo, uma
pista falsa?
Temos visto pessoas da maior honestidade intelectual e existencial
dizerem coisas como: "essa pessoa foi excluída do desfrute do bem
social; o que podemos fazer para incluí-la?"
O problema aqui é extremamente simples... e imenso: se eu vou incluí-
la, o sujeito da ação sou eu, ela é objeto. Tão objeto como quando a
excluíram.
Nos dois casos está sendo expropriada do direito de decidir por si
mesma onde quer estar. Ou, no nosso ver: expropriada da essência mesma
de sua condição de humano/a.
Em outras palavras: o problema do excluir uma pessoa é menos o de que
ela deixe de desfrutar alguma coisa externa a si, e mais o fato de ser
um ato de dominação, o que, como tentativa de expropriação da própria
humanidade do outro, pode ser entendido como uma espécie de "tentativa
de assassinato espiritual".
Problema de que tampouco está isento o incluir.
4. A verdadeira negação do excluir
Depois de chegarmos à percepção acima pelo caminho conceitual, ainda
levamos anos para perceber que o problema do "incluir" estava patente
na própria palavra: não o fato de ser ex- ou in-, mas de ser cluir,
isto é: fechar, trancar. Alguns cognatos: italiano chiùdere, inglês
close (fechar); latim clavis e francês clef (chave, tranca); clausura,
claustro.
Ao passar de "excluir" para "incluir", o verbo em si não foi negado:
existe apenas uma mudança no sentido do empurrão que dou ao outro
antes de cerceá-lo; se o obrigo a ser dos meus ou o obrigo a não ser
dos meus.
Mas... se o que quero é negar que alguém seja obrigado a ficar fora,
por quê, em lugar de enfiá-lo para dentro, simplesmente não me
abstenho de fechar a porta, deixando com ele a liberdade (ou seja, sua
condição de sujeito) para entrar e sair se e quando quiser?
Difícil? Para negarmos o verbo nos basta a palavra "não": "não
excluir", "não exclusão".
Ou, se quisermos ser enfáticos, podemos optar pela fórmula moriniana
que extingue a exclusão por suicídio: "excluir a exclusão".
Só que, para esse ato tão mais simples que "incluir", eu terei
largado a maçaneta da porta, ou seja:
... terei aberto mão de um poder.
5. Um olhar sobre algumas expressões relacionadas
EDUCAÇÃO INCLUSIVA
Este foi o nome dado à extinção, imposta por lei, das antigas salas
de Educação Especial e à transferência dos alunos portadores de
deficiências para as salas de aula comuns. Não estamos aqui defendendo
o modelo anterior, apenas observando que foi, mais uma vez, uma
decisão imposta de cima para baixo por uma classe que combina em si o
estilo burocrático e o acadêmico de prepotência...
Houvesse sido uma decisão construída lentamente com efetiva
participação de todos os envolvidos - pais, professores, os próprios
alunos -, teria sido esse mesmo o resultado? Talvez se tivesse
encontrado um caminho novo.
Mas estava pré-definido onde era preciso chegar. E, devido à época e
ao estilo do processo, suspeitamos fortemente que menos por razões
pedagógicas ou humanitárias que pela imposição de cortes nos gastos
públicos feita pelo modelo neo-liberal.
Deixando claro: com certeza há pessoas extremamente sinceras e bem-
intencionadas trabalhando por algo decente que tenha traços em comum
com o que vem sendo chamado Educação Inclusiva. O que estamos dizendo
é que implantações por atacado e por decreto são via-de-regra exemplos
de "parece-mas-não-é", seja porque o que acaba surgindo na prática
nunca corresponderá ao projeto geral dos altos gabinetes (e isso não
por qualquer deficiência, mas por características intrínsecas da
realidade, como vem sendo investigado pela Teoria do Caos ), seja
porque as intenções últimas não são as declaradas - como, no caso, o
enxugamento (quando não desmantelamento) dos serviços públicos.
EXCLUSIVIDADE
Não se entenda que nossa rejeição à palavra "inclusão" represente
qualquer mínimo de simpatia pela exclusão - manifestação, juntamente
com a exploração e com a opressão gratuita, do que consideramos o
grande vilão da humanidade, a tentação da dominação.
Nesse sentido, merece atenção a atribuição de valor positivo à
palavra "exclusivo" na sociedade atual - significando literalmente
"isso é bom porque é só seu e deixa os outros de fora". Esse fato nos
parece um sinal trágico de o quanto, como sociedade, ainda estamos
longe de haver desenvolvido uma sensibilidade ética: houvéssemos, e
essa palavra seria insuportável aos nossos ouvidos; soaria mais brutal
que o mais obsceno dos palavrões.
IGREJA, DISCRIMINAÇÃO, CONVÍVIO
Como todos sabem, "igreja" vem do grego ekklesía, mas poucos se
perguntam sobre o que isso poderia significar em grego à parte o
sentido cristão. Consta que vem do verbo ek-kaléo, convocar, chamar
para fora, sugerindo portanto um grupo convocado a se destacar, a sair
do meio dos outros. Ou teria (também) a ver com ek-kléio, excluir,
impedir, proibir?
De qualquer modo, é instigante pensar que ek-klesía poderia ter
passado ao latim como "exclúsia"... mesmo se a idéia inicial é menos a
da exclusão de outros e mais a de uma auto-exclusão em relação ao
geral: todos que têm escolhido para si o nome "igreja" têm se visto
como um grupo destacado do mundo por mais perfeito ou mais avançado -
talvez um pouco à maneira do conto O Alienista, de Machado de Assis,
onde os loucos, por mais numerosos, terminam soltos pelo mundo,
enquanto os sãos ficam isolados no hospício.
O verdadeiro interesse da reflexão sobre essa palavra não nos parece,
porém, a possibilidade de criticar igrejas e outros grupos com práxis
semelhante, e sim a percepção de que na verdade não é fácil determinar
qual lado é o de dentro, qual o de fora - de modo que, no limite,
excluir é simplesmente discriminar, é colocar uma barreira entre si e
o outro (enquanto que incluir é de certa forma forçar o outro a estar
consigo).
Cabe observar aqui que é na idéia de con-vívio que vemos a superação
tanto da exclusão quanto da inclusão, ou seja: a idéia que tomamos
como categoria central tanto do nosso trabalho prático quanto do
teórico: a Pedagogia e a Filosofia do Convívio.
6. Rápido diálogo sobre O QUE FAZER
- Se minha opção não for por nenhum tipo de trancar, e sim por uma
sociedade aberta, o que terei a fazer diante de pessoas excluídas?
- Simplesmente deixar de excluí-las (ou seja: de fechar as portas
diante delas).
- Mas, se não for eu o agente exclusor, o que posso fazer?
- Tentar contribuir de um modo ou de outro para que deixem de excluí-
la.
- Mas para isso eu teria que, de certa forma, enfrentar o exclusor,
em lugar de trabalhar com o excluído...
- Pois é, não? O mesmo que enfrentar a causa (no mínimo
intermediária) e não o efeito... O que com toda probabilidade é mais
difícil...
- Quer dizer que não há nada a fazer junto aos excluídos?
- Eu não disse isso... Seria até mesmo cínico não levar em conta que
um período de exclusão ou sob qualquer tipo de dominação deixa
seqüelas - por exemplo, desvantagens educacionais, danos à auto-estima
etc., de modo que é provável que uma pessoa ex-excluída não se veja em
condições de desfrutar da liberdade, seja no sentido de buscar incluir-
se, seja no de combater o sistema ou no que for.
- E aí: podemos intervir? Devemos?
- Minha aposta é que podemos e devemos... até onde isso não
represente um novo golpe de estado nos domínios pessoais desse colega-
de-humanidade: sua própria pessoa.
- O que, então?
- Olha, acho que podemos e devemos oferecer apoio à retomada de sua
condição de sujeito, alimento e estímulo à sua autonomia, colaborar na
luta de abrir caminhos e mantê-los abertos... colocar à disposição o
conhecimento de que eu disponha... quem sabe até apontar
possibilidades, fazer sugestões... mas não decidir ou realizar seu
passo em seu lugar.
- Sim, mas... Puxa, não sei se tenho condições de oferecer tanto!
- Mas de decidir pela inclusão do outro no lugar dele você achava que
tinha, não?
- É que aí... existia algum modelo a oferecer, não? Se funcionava não
sei, mas pelo menos existia...
- Sei, aí você vendia o modelo, e deixava a tentativa de pôr em
prática por conta dele; e também o malogro, de preferência quando você
já estivesse longe...
- Não me ponha em crise! Quem disse que eu tenho escolhas?
- Ah, você se sente assim... quem sabe também não é um excluído, de
certa forma?
- Isso, isso, claro que sim!
- Então por que não fala com eles de excluído para excluído? Quem
sabe aí vocês se reconhecem mutuamente... e talvez até se decidam por
uma ação conjunta, em lugar de você ficar fazendo do outro um objeto
da sua ação...
- Puxa, verdade: parece que assim as coisas fazem mais sentido, até
me vem um certo impulso, um quê de entusiasmo...
- Verdade... mas não pense que as questões acabaram. Por que você
acha que aquele excluído lá vai se identificar com a sua luta pessoal,
a ponto de vocês juntarem forças? Você acha que vai conseguir isso se
for inteiramente transparente não só quanto às suas idéias mas também
quanto à sua pessoa, sua história, seus desejos? Ou acha legítimo
recorrer a um discurso de tipo propagandístico?
- Puxa, lá vem você de novo confundir minha cabeça...
- Mas deve valer a pena: já imaginou a hora que, literalmente, não
houver mais muros e portas e...
- O quê? Você também não vai querer que essa gente venha literalmente
para dentro da minha casa, né?
- Bom...
- E tem mais: quem é que vai me pagar para fazer isso?
- É, essa é realmente difícil... Pois onde é que existiria uma fonte
com dinheiro apesar de estar realmente contra a continuidade do
sistema atual?
- Tá vendo?
- Quer dizer que você acha melhor deixar como está?
- Ah, isso também não!
- E o quê, então?
- . . .
7. PS: "Volte para o seu lar!" (Arnaldo Antunes)
Após uns bons anos de convívio com a população da periferia de São
Paulo e da Baixada Santista (e temos razões para crer que não seja
muito diferente na maior parte das cidades brasileiras de certo
porte), ainda não encontramos texto que expresse esse universo humano
de modo tão denso e certeiro quanto esta letra de canção de Arnaldo
Antunes - anos-luz acima de clichês folclorizantes, ideológicos e
outros mais. Não importa se a forma da canção e se o autor procedem
de outras classes: servem aqui de canal transparente a um discurso
autêntico; em nenhuma outra canção reconhecemos o homem ou mulher
dessa população postado frente a nós como sujeito com tamanha
inteireza, como se não houvesse as camadas de máscaras usuais no
encontro inter-sujeitos e inter-classes.
Temos tratado esta letra como um desafio a toda pessoa que pretenda
trabalhar com jovens e/ou com as classes periféricas; o que exprime
não é alguma deficiência que caiba ao educador sanar - e muito menos
uma resistência que caiba ao educador quebrar! -, mas uma forma-de-ser
própria (ou especificidade cultural), que cabe ao educador reconhecer
e respeitar... e usar como estímulo para encontrar caminhos possíveis
para o encontro e intercâmbio humano sem perda desse respeito. Em
outras palavras: o educador não deveria se atrever a tentar intervir
sem antes encontrar em si atitudes-resposta adequadas frente ao
expresso nessa letra.
VOLTE PARA O SEU LAR
(Arnaldo Antunes)
Aqui nessa casa ninguém quer a sua boa educação
Nos dias que tem comida comemos comida com a mão
E quando a polícia a doença a distância
ou alguma discussão
Nos separam de um irmão
Sentimos que nunca acaba de caber mais dor
no coração
- mas não choramos à toa
Aqui nesta tribo ninguém quer a sua catequização
Falamos a sua língua mas não entendemos seu sermão
Nós rimos alto, bebemos e falamos palavrão
- mas não sorrimos à toa
Aqui neste barco ninguém quer a sua orientação
Não temos perspectiva mas o vento nos dá a direção
A vida que vai à deriva é a nossa condução
- mas não seguimos à toa
Volte para o seu lar! Volte para lá!
Volte para o seu lar! Volte para lá!
[In]Concluído em
Santos, 24.09.2006
Referências bibliográficas
ANTUNES, Arnaldo (1990). Volte para o seu lar. Em: Marisa Monte. Mais
(disco). São Paulo: EMI.
CHAUÍ, Marilena (1980). Ideologia e educação. In Revista Educação e
Sociedade, nº 5. São Paulo.
MORIN, Edgar (2005). O método 6. Ética. Porto Alegre: Sulina.
RICKLI, Ralf (2005). Mestres humanos ou crias de Frankenstein:
contribuições para a criação holográfica do par interdependente
"democracia viável" e "formação profissional conseqüente em educação".
São Paulo: Trópis. Também em
www.tropis.org/biblioteca
- (2006). O fantasma de Aristóteles e a Ética, Método e Educação de
que precisamos hoje. Santos: Trópis. Em
www.tropis.org/biblioteca
STEWART, Ian (1991). Será que Deus joga dados? A nova matemática do
caos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.