O enforcado - de novo

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Andrea Loparic

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Mar 23, 2020, 3:26:13 PM3/23/20
to Lista_Lógica
Que tal nos divertirmos com probleminhas interessantes nesse tempo de quarentena? Por exemplo, quem de vocês já passou horas quebrando a cuca com o chamado"paradoxo do enforcado"?  E quem acha que chegou a uma solução do mesmo?
Para quem não conhece ou não se lembra, lá vai o enunciado (à minha moda):
====================================================================
     Num reino distante, um rábula que ousara chamar o rei de "infame"    
     recebeu do rei a seguinte sentença condenatória:

          "Você será enforcado às 6 da manhã de um dia, entre segunda e 
          sábado da próximo semana,  mas só saberá qual deles às 5:50 do 
          próprio dia. quando o carrasco virá buscá-lo para a execução."

     O rábula então pensou com seus botões:

          "Essa sentença não pode ser integralmente cumprida! Pois sendo o  
          sábado o último dia da próxima semana, ele está excluido, uma vez 
          que como o carrasco não tivesse aparecido na sexta feira as 5:50,    
          a partir desse momento eu ia ficar sabendo que seria executado no
          dia seguinte. Mas, como o sábado fica excluido, o mesmo raciocínio
          vale para a sexta, que fica sendo o último dia, assim na quinta às  
          5:50, eu já ia ficar sabendo.  E assim por diante, podemos ir 
          eliminando cada um dos dias da mesma forma, portanto a  sentença 
          não poderá ser integralmente cumprida.  Ora, pelo paragrafo único 
          do artigo sexto do nosso Código Penal,  uma sentença que não pode
          ser  literalmente cumprida é nula de direito. Assim, posso ficar 
          tranquilo que não vou ser executado. "

     E assim ficou o rábula até as 5:50 da terça feira, quando o carrasco apareceu para conduzi-lo à forca.  
==================================================================

Aguardo comentários tranquilos e intranquilos!!!
Beijos (virtuais, é claro!)

Andréa (Antes confinada que só finada)
   

Rodrigo Freire

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Mar 24, 2020, 10:15:59 AM3/24/20
to Andrea Loparic, Lista_Lógica
Olá Andrea. A formulação da prova surpresa é mais familiar para mim. 

A sentença poderia ser reformulada com o axioma: 

*Você será enforcado na segunda ou na terça ou na quarta ou na quinta ou na sexta.*

Essa é a única informação da sentença. O resto tem o efeito de "sem mais informações" e é melhor entendida como uma frase da metalinguagem (sobre o sistema de informações, não como uma informação adicional). Uma incorporação do "sem mais informações" como uma informação positiva não gera um sistema confiável.

A interpretação que o rábula faz da sua sentença de morte incorpora em seu sistema de justificação a parte prescreve o que ele não saberá. Ou seja, ele interpreta, com ajuda da má formulação da sentença, uma ausência de informação como informação positiva.
Esse movimento incorpora na lógica do rábula uma modalidade metalinguística. O sistema resultante de justificação do rábula é baseado na própria noção de justificação que o sistema tenta capturar. Esse é um tipo de planificação da linguagem/metalinguagem é problemática e não gera um sistema dedutivo confiável. De qualquer modo, uma formalização simples desse sistema em logica modal resulta inconsistente.

É assim que vejo o problema.

Abraço
Rodrigo






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Andrea Loparic

unread,
Mar 24, 2020, 2:39:08 PM3/24/20
to Rodrigo Freire, Lista_Lógica
Oi Rodrigo,

Assim formulado, o problema é outro. O problema tradicional é uma questão
de lógica epistêmica. O não poder saber de véspera é parte da sentença
do problema tradicional. Eu não estou nesse momento podendo pegar meu
exemplar do "The ways of Paradox" do Quine, onde ele expõe o problema e
a solução que ele dá; se você ou algum colega tiver à mão esse livro, peço 
que copie aqui a formulação que lá aparece.
Abraços,
Andréa 

Livre de vírus. www.avast.com.

Livre de vírus. www.avast.com.

Rodrigo Freire

unread,
Mar 24, 2020, 2:48:59 PM3/24/20
to Andrea Loparic, Lista_Lógica
Oi Andrea,

Sim, meu ponto é que a teoria epistêmica resultante não é confiável (se formalizada será contraditória). Por isso sugiro que "não saberá de véspera" não deve ser interpretada como uma nova informação e internalizada através de uma linguagem epistêmica, mas apenas como a metainformação "sem mais informações". O problema se dissolve se interpretado desse modo. 

Abraço
Rodrigo 



Andrea Loparic

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Mar 24, 2020, 3:08:48 PM3/24/20
to Rodrigo Freire, Lista_Lógica
Bem o que você está dizendo é que o probema tradicional é um 
falso problema, ou seja, que a sentença não tem modelo. Você 
concorda então com o rábula! E seria contraditado na terça
feira, quando fosse surpreendido pela chegada do carrasco 
pra te buscar as 5:50 !

Livre de vírus. www.avast.com.

Rodrigo Freire

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Mar 24, 2020, 3:48:05 PM3/24/20
to Andrea Loparic, Lista_Lógica
Ao contrário, discordo do raciocínio do rábula. O rábula raciocina em um sistema que usa o raciocínio do rábula (o próprio sistema, portanto) na linguagem objeto. Esse sistema é contraditório, dele qualquer coisa se segue. Não se pode usar esse sistema.

Antonio Marmo

unread,
Mar 24, 2020, 4:50:56 PM3/24/20
to Rodrigo Freire, logi...@dimap.ufrn.br
Pois é preciso dizer antes em quais termos se coloca o problema para pensar a solução. Ainda assim, isto não garante que alguém não o resolva pensando “fora da caixa”.

A lenda do nó górdio é um exemplo óbvio. Alexandre o Grande teria sido o único que resolveu o problema passando a espada, ao passo que todos antes dele pressupuseram que a proposta era desfazer o nó sem partir a corda.

Voltando ao problema específico: as Cortes de Lisboa determinam que El-rei D. João VI deve voltar à Lisboa. O monarca responde: “um dia eu volto, hoje não.” Como vamos analisar o problema? Usando alguma lógica epistêmica conhecida, como T ou D? Usando da simples lógica proposicional clássica? Ou vamos observar como as pessoas intuitivamente reagem ao problema?

No caso do exemplo histórico, os deputados portugueses não se surpreenderam com o retorno de D. João VI quando aconteceu. Na verdade, ao ouvirem dele que regressaria algum dia, mas sem uma data marcada, entenderam que ele não regressaria e o pressionaram até que anunciasse sua partida do Rio de Janeiro. Qual era a lógica que guiou a intuição política nesse caso? Houve uma lógica nisso?

Por isso é que questões em lógica não se limitam à parte técnica. Não existe a técnica sem a indispensável reflexão filosófica. É no bojo dela que os problemas se formulam. Obviamente, admitimos que ad soluções quando nos chegam podem estar fora da caixa, mas neste caso é outrossim necessário ter ciência de que a reflexão se deslocou para outros termos. Só com a reflexão clara entendemos direito o que significam os problemas e as soluções propostas.

Most problems of teaching are not problems of growth but helping cultivate growth. As far as I know, and this is only from personal experience in teaching, I think about ninety percent of the problem in teaching, or maybe ninety-eight percent, is just to help the students get interested. 
Noam Chomsky 

On 24 Mar 2020, at 16:48, Rodrigo Freire <freir...@gmail.com> wrote:



Andrea Loparic

unread,
Mar 24, 2020, 5:14:56 PM3/24/20
to Antonio Marmo, Rodrigo Freire, Lista_Lógica
Então não entendi sua posição antes.  Deixe ver agora:
Na sua opinião, a sentença do rei é sustentável e
é o raciocínio do rábula que não é?
E você estava mostrando por que a argumentação do 
rábula está furada, é isso?

Livre de vírus. www.avast.com.

Rodrigo Freire

unread,
Mar 24, 2020, 5:27:24 PM3/24/20
to Andrea Loparic, Antonio Marmo, Lista_Lógica
A sentença do rei é mais que sustentável, ela de fato ocorre, não é?
O raciocínio do rábula não é sustentável, como não são alguns raciocínios que contém a noção metalinguística de "verdade" na linguagem objeto. Ele poderia, por exemplo, dizer ao rei: "se o que estou a dizer é verdade, então sou inocente". O rei teria que concluir que essa frase é verdadeira, portanto que o rábula é inocente. É essa analogia que faço.
No caso em questão, o raciocínio contém a noção metalinguística de "saber" na linguagem objeto. 
Meu ponto é que isso gera um sistema inconsistente, como a inclusão da noção metalinguística de "verdade" na linguagem objeto. 



Antonio Marmo

unread,
Mar 24, 2020, 5:48:02 PM3/24/20
to Rodrigo Freire, logi...@dimap.ufrn.br
Rodrigo,

A que semântica você se refere quando diz isso?

Suponha que numa lógica epistêmica o operador K faz o modal “quadradinho”. Numa semântica como a de Scott-Montague, Kp então quer dizer que o conjunto de mundos da proposição p está na vizinhança de um mundo de referência w. Por que isso seria inconsistente de dizer?


On 24 Mar 2020, at 18:27, Rodrigo Freire <freir...@gmail.com> wrote:



Andrea Loparic

unread,
Mar 24, 2020, 5:54:03 PM3/24/20
to Rodrigo Freire, Antonio Marmo, Lista_Lógica
Ah, tá. Eu não tinha entendido sua primeira msg.
Também acho que o furo do rábula tem a ver com "saber" e 
que já a eliminação do último dia não se sustenta, ou seja, o
"se eu fosse morrer no sábado, eu saberia na sexta que 
ia morrer no sábado" é falso e ele não poderia impugnar
a sentença na sexta dizendo algo como "eu não vou morrer 
amanhã pois eu estou sabendo hoje que vocês vão me matar 
amanhã"... 

Rodrigo Freire

unread,
Mar 24, 2020, 6:35:40 PM3/24/20
to Andrea Loparic, Antonio Marmo, Lista_Lógica
Não é a lógica (modal) que é inconsistente, é a teoria modal em que o rábula raciocina. Vamos analisar esse raciocínio para tentar esclarecer.

Seja K o operador de conhecimento de véspera, ~ o operador de negação, p1 a proposição que diz que o enforcamento será na segunda, ..., p5 a proposição que diz que o enforcamento será na sexta.

O rábula admite como axiomas

A: (p1 e ~K(p1)) ou ... ou (p5 e ~K(p5)). [a interpretação dele da sentença]


B1: p1 implica ~p2 e ... e ~p5
 .
 .
 . 
B5: p5 implica ~p1 e ... e ~p4

C: p5 implica K(p5)

D: K(~p5) implica (p4 implica K(p4))

E: (K(~p5) e K(~p4)) implica (p3 implica K(p3))

F: (K(~p5) e K(~p4) e K(~p3)) implica (p2 implica K(p2))

G: (K(~p5) e K(~p4) e K(~p3) e K(~p2)) implica (p1 implica K(p1))

Agora o raciocínio:

- A partir de C, de B5 e de A, conclui-se ~p5. Da necessitação, que o rábula assume pois o que ele deduz ele considera como conhecimento de véspera, K(~p5).

- A partir de K(~p5), de B4, de D e de A, conclui-se ~p4.  Da necessitação, que o rábula assume pois o que ele deduz ele considera como conhecimento de véspera, K(~p4).

- A partir de K(~p5), K(~p4), de B3, de E e de A, conclui-se ~p3.  Da necessitação, que o rábula assume pois o que ele deduz ele considera como conhecimento de véspera, K(~p3).

- A partir de K(~p5), K(~p4), K(~p3), de B2, de F e de A, conclui-se ~p2.  Da necessitação, que o rábula assume pois o que ele deduz ele considera como conhecimento de véspera, K(~p2).

- A partir de  K(~p5), K(~p4), K(~p3), K(~p2), de B1, de G e de A, conclui-se ~p1. 

- A partir de  ~p5, ~p4, ~p3, ~p2, ~p1 e de A, conclui-se bottom.

Abraço



Antonio Marmo

unread,
Mar 24, 2020, 7:13:19 PM3/24/20
to Rodrigo Freire, logi...@dimap.ufrn.br
Caro Rodrigo,

Obrigado pela sua resposta.
Entendi agora qual é o caminho que você está vendo.

Como há mais pessoas lendo essa discussão,  se me permite, vou apenas dizer algo sobre a literatura: esse problema do enforcado apareceu, conforme já disse a professora Andreia, num livro de Quine, cujo título é “Ways of Paradox”. No primeiro capítulo desse livro, Quine faz uma exposição da distinção entre falácia e paradoxo. No segundo capítulo, páginas 21 a 23, ele aborda esse problema dando a entender que não é um paradoxo de verdade, mas apenas um caso de um sujeito que raciocinou errado sobre uma proposição. Vale a pena ler o livro só por esses dois capítulos.


On 24 Mar 2020, at 19:35, Rodrigo Freire <freir...@gmail.com> wrote:



Andrea Loparic

unread,
Mar 24, 2020, 8:32:28 PM3/24/20
to Antonio Marmo, Rodrigo Freire, Lista_Lógica
Muito legal, Rodrigo! 
Eu estou sem poder hoje, mas amanã vou sentar e seguir
passo a passo sua dedução.
Valeu!!
 

Juan Meleiro

unread,
Mar 25, 2020, 12:31:11 PM3/25/20
to Antonio Marmo, Andrea Loparic, Rodrigo Freire, 'Samuel Gomes' via LOGICA-L
Caros,

Queria pontuar algo sobre as colocações do Prof. Rodrigo. Sentenças em linguagem natural muitas vezes admitem diversas formalizações. O que o prof. está argumentando é que a formalização escolhida pelo rábula gera uma teoria inconsistente, mas que uma interpretação alternativa é consitente.

O problema é que a escolha das sentenças, em oposição ao caso em que o réu diz algo sobre ser inocente se estiver dizendo a verdade—a escolha das sentenças foi do juiz. Nesse caso, a interpretação escolhida deve, de acordo com o código penal, ser “a mais benéfica ao réu” [1]. O fato do rábula ter sido executado é verdadeiro mas está em contradição com o (nosso) código penal.

A falha de raciocínio do rábula, no caso, é de acreditar que as leis seriam seguidas. Ou seja, que o que deve ser será.

Sei que o argumento não é propriamente lógico, mas parece que a real questão é uma de como interpretar a linguagem natural – essencialmente pré-lógica.

[1]. Não sou jurista, então não acreditem em mim. Mas já ouvi falar desse princípio e pesquisando rapidamente encontrei o seguinte: https://tj-ro.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/753877788/apelacao-apl-17002120168220015-ro-0001700-2120168220015?ref=serp


Abs.

-- 
Juan F. Meleiro
Em 24 de mar de 2020 21:32 -0300, Andrea Loparic <alop...@gmail.com>, escreveu:
Muito legal, Rodrigo! 
Eu estou sem poder hoje, mas amanã vou sentar e seguir
passo a passo sua dedução.
Valeu!!
 
--
Você recebeu essa mensagem porque está inscrito no grupo "LOGICA-L" dos Grupos do Google.
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